O romance de Bernardo Kucinski

 

O gênero romance pode refletir a história, inda que o romancista arbitre a versão que dá aos episódios. Em K., o jornalista Bernardo Kucinski dá conta do recado e confirma os atributos do ficcionista. Arbitra a própria versão da “desaparição” de sua irmã, Ana Rosa Kucinski, em abril de 1974. “Desaparição”, o substantivo que permeia a narrativa, dá substância ao enredo de mistério, é usado de uma ponta a outra do romance; ele resgata a evaporação em que se converteu o sumiço da professora de química da USP. Ela e o marido, Wilson Silva. 

 

Os 28 capítulos não se entrelaçam ou não têm unidade orgânica, mas se bicam com a presença física ou o espectro de K., à procura da filha dileta dos Kucinski. O autor, sem intentos subjacentes, não se finge de historiador; embute-se na redoma de romancista ao advertir: “Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu.” Ana está morta, o sistema sabe e se mantém indiferente ao rumo que deram a seu corpo. A compreensão do fato se dá com a interpretação do autor às reiteradas correspondências  ao antigo endereço da professora. “Ele é a síntese do sistema, da solidez fingida em mármore; o banco que não negocia com rostos e pessoas, e sim com listagens de computador.”

Há aqui a síntese do observador, amarga, profunda. Se a indiferença do sistema mostra-se no silêncio, nem tanto quanto aos responsáveis pela “desaparição” de Ana; porquanto, ainda hoje, estão imbricados nos órgãos de informações. K., ao acercar-se de pistas dando conta de onde a filha poderia estar enterrada, recebe telefonemas informando-o de “novas descobertas.” Distinguindo o passado, mas com os pés no presente, arremata o narrador referindo-se a K.: “Ele não podia saber que quarenta anos depois esse muro ainda estará de pé, intocado. Mas já sabia que estava tudo muito amarrado, para ninguém saber de nada.”

O livro termina com o Post Scriptum; não é peça de ficção, posto que informa sobre o telefonema de uma brasileira no Canadá, que teria encontrado Ana numa roda de amigos num restaurante. “O telefonema da suposta turista brasileira veio do sistema repressivo, ainda articulado.” Bernardo Kucinski escreveu isso em 31 de dezembro de 2010.

O narrador é oculto e não menciona o nome da “desaparecida”, mas não poupa críticas ao pai:”Um absurdo ele não ter questionado isso de só visitar se for grave, de só telefonar se for urgente. Onde ele estava com a cabeça, meu Deus?” Refere-se à recomendação de Ana, de ser procurada só em caso de extrema gravidade. K. vive o segundo casamento quando dos fatos. O autor sentencia: ”A segunda esposa, uma inútil.” O parágrafo conforma o cenário da perda: ”Pronto, estava instalada a tragédia.”

A procura perto do fim expõe o personagem cansado, conformado com os poucos resultados das buscas. “Deixa de ser um ícone. Já não é mais nada. É o tronco inútil de uma árvore seca.”

Jesuína é uma ex-detenta, funcionária da Casa das Mortes em Petrópolis, indicada pelo delegado Fleury. Tem visões, pesadelos e sangramentos. À frente da terapeuta que a pressiona a uma confissão, protagoniza: “Jesuína põe-se a soluçar, de início um gemido surdo; logo o choro se acelera e ela é tomada por convulsões, escorregando lentamente da cadeira; a terapeuta a agarra antes que desabe e a põe de pé, abraçando-a. Ambas choram.” No resumo, a auxiliar incumbida de ouvir a conversa dos presos, expõe a alma insofrida, sôfrega.

O último cenário é o Presídio do Barro Branco. K. visita presos políticos, lhes traz cigarros, chocolates; súbito, desfalece. Os presos o deitam num beliche “(…) avistou atrás deles, no alto da parede dos fundos, a familiar janelinha gradeada da cela trazendo de fora promessas de sol e liberdade. Sentiu-se em paz. Muito cansado, mas em paz. Estendeu aos presos o pacote de cigarros. Depois, suas mãos se abriram e seus olhos se cerraram.” Epílogo sem conciliação.

Leia mais em:

USP vai reabilitar professora demitida depois de ser sequestrada pela ditadura

Redação

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Na loja showroom de sampa da

    Na loja showroom de sampa da editora Cosac Naify saí por:

    Cosac Naify

    K. RELATO DE UMA BUSCA

    Autor: Bernardo Kucinski

    Posfácio: Renato Lessa

    Texto de orelha: Maria Victoria Benevides

    Idioma: Português

    De: R$ 29,90
    Por: R$ 14,95

    Aclamado pela crítica e finalista dos prêmios Portugal Telecom e São Paulo de Literatura de 2012, K. é relançado pela Cosac Naify, por ocasião da efeméride de cinquenta anos do Golpe Militar de 1964, com posfácio de Renato Lessa. 

     

    O romance de estreia do jornalista Bernardo Kucinski narra a história de um pai em busca da filha que desapareceu, como tantos outros, durante a ditadura no Brasil. A narrativa a um tempo enxuta e sensível de Kucinski é feita de capítulos quase independentes, apresentando vários ângulos de uma mesma história – a história da ausência e da impunidade.

    1ª edição, 2014

    Cosac Naify

    VOCÊ VAI VOLTAR PRA MIM E OUTROS CONTOS

    Autor: Bernardo Kucinski

    Prefácio: Maria Rita Kehl

    Texto de orelha: Julián Fuks

    Idioma: Português

    De: R$ 29,90
    Por: R$ 14,95

    Primeiro livro de contos do autor, Você vai voltar pra mim e outros contos traz 28 histórias curtas sobre ditadura militar e repressão. Foi publicado em conjunto com o relançamento de seu romance K., e em função da efeméride dos cinquenta anos do golpe militar no Brasil.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador