O setor externo da economia brasileira, depois da bonança e da tempestade

A crise financeira internacional desmontou o cenário de ‘bonança’ no setor externo para países como o Brasil, mas não o substituiu por uma crise cambial clássica. Passamos longe de uma ‘fuga de capital’ e a significativa ‘desdolarização’ da nossa economia transferiu parte do risco cambial para os ‘credores’

do Brasil Debate

O setor externo da economia brasileira, depois da bonança e da tempestade

André Biancarelli

Artigo em parceria com a Plataforma Política Social e Centro de Altos Estudos Brasil Século XXI, publicado na Revista Política Social e Desenvolvimento #23

Dentre os vários desequilíbrios enfrentados pelo Brasil neste início de segundo governo Dilma, os problemas do setor externo têm sido descritos, em geral, de maneira convencional. Um longo período de apreciação cambial e crescimento, concomitante com um ciclo de alta nas commodities, gerando elevados déficits em Conta Corrente, cobertos por fluxos voláteis de financiamento.

Com a expansão do déficit, a queda nas commodities e as perspectivas de subida dos juros nos Estados Unidos, estaria no nosso horizonte um filme muitas vezes já visto, uma crise cambial clássica (i.e., incapacidade de fechar o Balanço de Pagamentos, desvalorização descontrolada, constrangimentos adicionais ao crescimento, FMI etc.). Com a forte correção no valor da moeda estrangeira desde o fim de 2014, sempre conforme o raciocínio predominante, um ajuste no setor externo puxado pelas exportações líquidas estaria contratado.

Este texto resume de maneira simplificada as ideias desenvolvidas em Biancarelli (2015) (1) que, na sequência de alguns outros trabalhos, formam uma visão alternativa ou dissidente. Tal leitura não compartilha nem do fatalismo da visão predominante quanto ao passado e presente, nem do otimismo quanto ao futuro exportador. São quatro os argumentos mais importantes.

O primeiro deles diz respeito ao cenário internacional. Entende-se que a crise financeira (com ápice no fim de 2008) desmontou o cenário de “bonança” no setor externo para países como o Brasil – marcado por fortes fluxos privados de capital e melhora nos termos de troca, pela alta histórica nos preços de commodities – mas não o substituiu pelo seu exato oposto. O pós-crise é e deve continuar sendo muito mais adverso, mas é diferente de outros momentos de dificuldade.

Há muita volatilidade financeira, mas não propriamente seca na liquidez internacional, por conta do caráter inusitadamente expansionista das políticas monetárias nos países centrais – que devem prosseguir assim, a despeito de alguma elevação no juro básico americano no futuro próximo.

As cotações de commodities, também alimentadas pela especulação financeira, voltam a subir depois da crise, e só a partir de 2014 revertem gradualmente sua trajetória. Mais importante, o comércio global tem muita dificuldade de retomar o seu dinamismo, e a agressividade chinesa (em busca de compensar o menor dinamismo da demanda americana) dificulta qualquer pretensão de crescimento puxado pelas exportações.

O segundo argumento, neste contexto, é sobre as causas e possibilidades de reversão no déficit em Conta Corrente. O seu comportamento (que pelos números antigos do Balanço de Pagamentos é de deterioração em etapas desde 2007, chegando a mais de 4% do PIB em 2014) é preocupante em si. Ainda mais nos últimos quatro anos, quando se combinaram baixo crescimento e reversão parcial da apreciação cambial – fenômenos em geral associados a uma melhora nesta grande conta.

Aparentemente, o déficit responde muito mais a fatores estruturais, relativos aos processos longos em curso na estrutura produtiva, do que à macroeconomia em geral, e ao câmbio em particular.

Se é assim, soam muito otimistas as previsões de reversão significativa deste déficit com os novos dados macroeconômicos brasileiros (recessão e câmbio bem mais alto). Menos realistas ainda são as esperanças de retomada do crescimento puxado pelas exportações, dadas as características atuais do comércio global e a pauta exportadora brasileira.

Em um futuro mais longo, a depender de muitos fatores, a elevação das exportações de petróleo com a plena exploração do pré-sal pode melhorar de maneira mais estrutural nosso balanço de bens.

No entanto, este quadro mais permanente de elevados déficits correntes não deu origem a crises externas, e isto pode não ser uma questão de tempo. Aqui está o terceiro argumento: parece ter-se elevado a capacidade do Brasil para conviver com estes déficits. Ou, no sentido contrário, nossa capacidade para atrair financiamento se elevou de maneira mais permanente.

O perfil e o montante total dos fluxos de capital atraídos desde a crise internacional oscilou bastante, respondendo a fatores domésticos e externos. Mas passou-se longe de uma “fuga de capital” tantas vezes temida, que gerasse perda acelerada de reservas.

Utilizou-se, sempre que foi necessário (e o momento atual é particularmente ilustrativo) de um péssimo ingrediente para tentar atrair estes fluxos: o grande diferencial de juros. Mas, de maneira geral, aumenta a parcela dos investimentos diretos (teoricamente menos voláteis e mais confiáveis).

Há quem vincule esta maior atratividade exclusivamente ao investment grade, atribuído ao país quando boa parte destes processos já estavam operando (e atualmente utilizado contra todo e qualquer questionamento ao ajuste fiscal em curso). Mas outros fatores, externos e internos, também parecem influenciar, a começar pelo aspecto tratado a seguir, que configura o quarto argumento.

À primeira vista, se há grandes déficits em Conta Corrente, mas estes seguem sendo financiados, o problema se desloca, da dimensão dos fluxos para os estoques. O passivo externo acumulado sempre esteve, ao longo da história, na raiz dos problemas enfrentados por países como o Brasil, na sequência de uma crise cambial.

A desvalorização, quando atinge economias com grandes compromissos externos em dólares, piora a situação patrimonial – já que grande parte das receitas é em moeda nacional. Esse descasamento de moedas, fruto do chamado “pecado original”, ou a incapacidade de se endividar externamente na sua própria moeda, se alterou de maneira pronunciada (e pouco comentada) na trajetória brasileira da última década e meia.

Fruto de uma participação muito maior de passivos de carteira (ações e títulos de renda fixa) negociados no país e dos volumosos estoques de investimento direto estrangeiro, houve uma “desdolarização” significativa: ao final de 2014 em torno de 60% dos passivos totais estavam em real (contra pouco mais de 30% em 2001). Nos compromissos de carteira, a mudança é ainda maior: 64% contra apenas 10% no início do século.

A consequência disso é que o risco cambial passou em parte para o “credor” do Brasil. E que, diante de desvalorizações agudas (como a do fim de 2008 e novamente agora), a situação de vulnerabilidade pelo ângulo dos estoques melhora, e não mais piora. A duração desta mudança positiva (ainda mais se a desvalorização do real for mantida) e a extensão de seus impactos merecem acompanhamento e reflexão. Mas certamente essa é outra das novidades do setor externo brasileiro que diferenciam o momento atual de outros períodos de dificuldades.

Em suma, a mensagem é de que os problemas do setor externo brasileiro são graves, mas não são os mesmos do passado. Provavelmente a situação atual não evolui para uma crise cambial, mas ao mesmo tempo a desvalorização (cujos custos também não devem ser menosprezados) não deve conseguir corrigir os desequilíbrios, que têm natureza mais estrutural.

NOTA

(1) Biancarelli, A. (2015). “Constrangimentos externos, de natureza financeira, ao desenvolvimento: um olhar dissidente sobre o Brasil no cenário pós-bonança”, a ser publicado em breve pelo CGEE. Os dados do Balanço de Pagamentos lá utilizados vão apenas até setembro de 2014 e não foram atualizados, pela mudança metodológica nas contas externas pelo BCB. Aqui, se optou por apresentar as tendências gerais, sem detalhar os números (pelo mesmo motivo).

Para baixar o PDF do artigo, acesse AQUI.

André Biancarelli – Professor do Instituto de Economia da Unicamp, diretor-executivo do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica – Cecon-IE/Unicamp e coordenador da Rede D

Redação

1 Comentário

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  1. Então a saída não seria a

    Então a saída não seria a valorização do mercado interno como faz a China? A China ganhou muito dinheiro com exportações de produtos com valor agragado ao mesmo tempo que importava commodities para desenvolver o mercado interno. Mas o Brasil nunca teve os olhos voltados para o mercado interno, pelo contrário; a indústria está cada vez menor. Enquanto a China que compra os commodities brasileiro, tem um mercado interno cada vez maior, mais desevolvido tecnologicamene e industrialmente. Parece que o Brasil ficou voltado para venda de commoditie, tão somente. O mercado interno, a educação, pesquisa, tecnologia e indústria foram deixadas pra lá. O crédito no mercado interno, assim como investimento em educação causam o aumento do real já que o mercado cria uma bse interna não dependente de commodities. Isso pode até causar que o real diminua mais ainda frente ao dólar, mas é um processo. QUanto a moeda da China, Japão e Coréia do sul valem frente ao dólar? Valem pouco. Mas os países estão bem estrutrados e não são dependentes de commodities para sobreviver. Muito pelo contrário, produzem a maioria de seus produtos. O Brasil já tem as commodities, se tivesse a tecnologia também, seria imbatível. Mas parece que somos escravizados pelas commodities de alguns… o governo deixa a educação de lado, tecnologia, pesquisa… E fica somente com as commodities… “É o suficiente!” O Brasil só será um grande país quando for cada vez mais auto-suficiente em todos os setores. Com isso haverá pouca inflação do valor de produtos já que não serão mais importados e serão feitos aqui; baixa taxa de juros, pois não dependeremos mais do dinheiro estrangeiro, já que teriamos um mercado interno forte em todas suas frentes e seremos exportadores de produtos com valor agregado. Seremos um EUA, Japão, China, Coréia do SUl.

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