Os escândalos do jornalismo nas denúncias de pedofilia, por Sylvia Moretzsohn

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
[email protected]

Enviado por Andre Paulo Rezende

Em nome da “justiça”, contra o direito: os escândalos do jornalismo nas denúncias de pedofilia

Sylvia Moretzsohn

Universidade Federal Fluminense

Índice

Questões éticas estão sempre em causa no jornalismo. Não por alguma falha passível de ser suprida pela definição ou cumprimento de algum preceito codificado em lei, mas por um enfrentamento permanente que a prática profissional exige, e que decorre do dilema – “talvez insolúvel”, como diz o jurista Márcio Thomaz Bastos (in Nassif, 2003:XI) – entre liberdade de imprensa e presunção de inocência, direito à imagem, respeito aos direitos humanos.

Mas há certamente algo de estranho quando verificamos que alguns casos de grande repercussão entram para a história do jornalismo como exemplo do que não deve ser feito e mesmo assim as situações se repetem, com o previsível mea culpa no final. Essa rotina sugere que talvez estejamos diante não de um erro sistemático a ser eternamente lamentado, mas de um procedimento coerente com o padrão de concorrência radicalizado na era do “tempo real” que marca a “Idade Mídia” (Rubim, 2002; Moretzsohn, 2002) e adequado ao papel que os meios de comunicação se auto-atribuem, em consonância com uma derivação da sacralizada idéia de “quarto poder” em torno da qual a atividade jornalística – e da mídia em geral, nos dias de hoje – se legitima socialmente.

No contexto neoliberal de descrédito das instituições democráticas tradicionais, a mídia surge simultaneamente como substituta do Estado e cúmplice do sistema penal (Batista, 2002), galvanizando o apelo difuso por uma justiça que logo resvala para o linchamento, pois contraditoriamente prescindiria do respeito a prerrogativas do direito em nome da demanda pela aplicação de penas exemplares e cada vez mais rigorosas. E a mídia desempenha esse papel com uma grande vantagem: é ela própria a responsável pelo processo de mediação entre os fatos e o público, acenando, como já notara Lits (1998), com a sedutora promessa de rapidez, publicidade e transparência, contra o tempo lento e os rituais secretos do campo jurídico, postos automaticamente sob suspeita. Considerando o impacto especial dos casos (reais ou supostos) de pedofilia, este artigo procurará demonstrar que o desrespeito à ética é funcional a um sistema que, prometendo o esclarecimento, investe francamente no seu contrário, operando num sentido conservador em relação ao senso comum. Em conclusão, remete a luta pela ética ao campo da luta política contra esse mesmo sistema.

 

No lugar das instituições, a mídia

Como se sabe, o que tradicionalmente orienta o jornalismo é o ideal iluminista de “esclarecer os cidadãos”, forjado no quadro das revoluções liberais de fins do século XVIII. Daí a formulação do conceito de “quarto poder”, que procura legitimar a imprensa como uma instituição “da sociedade” – vista assim genericamente, como se constituísse um conjunto homogêneo – contra os abusos do Estado. Esse conceito, porém, escondia convenientemente os interesses de quem comandava a imprensa: Sevcenko (na orelha a Kucinski, 1998) nota que, já no estabelecimento da ordem burguesa, “a situação estava longe de ser luminosa” e a imprensa “logo se tornou ela mesma um instrumento de , distorção e corrupção política”. Concomitantemente, a constituição do jornalismo como atividade industrial viria a profissionalizar essa prática e a submetê-la, embora nunca sem conflitos, às demandas do mercado.

No entanto, tratava-se de empresas jornalísticas, que assim demarcavam seu terreno em relação a outros campos da comunicação, como o entretenimento, a publicidade, a telefonia e demais setores vinculados a essa área. O processo de globalização das últimas décadas, ensejado pelo desenvolvimento exponencial das novas tecnologias de informação, conduziu à formação dos grandes conglomerados de comunicação, que se tornam, por sua força econômica e sua influência ideológica, agentes privilegiados desse mesmo processo.

Ramonet (2003) considera que já não se pode falar mais em “quarto poder” diante desses mega-grupos midiáticos, pois eles não se propõem tal tarefa cívica. O mais correto, entretanto, talvez fosse apontar a mudança na concepção de cidadania nesses tempos neoliberais: esvaziada de seu sentido político, passou a vincular-se ao consumo, isto é, à capacidade de participar do mercado. Nesses termos, já não haveria cidadãos a esclarecer, e sim consumidores a satisfazer. Mas o conceito de “quarto poder” se mantém e mesmo se reforça, radicalizando seu potencial mistificador, numa conjuntura de vigoroso estrangulamento do Estado e de descrédito das instituições da democracia representativa: facilitada pela natureza mesma do seu negócio, a mídia pode aparecer como um instrumento a serviço do público, simultaneamente oferecendo-lhe informação e (supostamente) dando-lhe voz. Mais ainda, ela própria se apresenta como substituta das instituições, nomeadamente em programas que sugerem colocar o público “em linha direta com seu direito” e “com a cidadania” (Mendonça, 2002:17) ou que servem literalmente de palco para a expressão de queixas e demandas variadas, atuando eficientemente no vácuo representado pela reconhecida distância entre o aparelho judiciário e o homem comum, que se traduz gravemente nas dificuldades de acesso das pessoas simples à Justiça.

Tudo isso de acordo com a lógica do espetáculo, que produz aquela cegueira pelo excesso de que falava Saramago: a desinformação pela profusão de informações, a ilusão induzida pelo suposto caráter revelador (“transparente”) da imagem, a aparência da supressão dos controles exercidos pela mediação através das transmissões “ao vivo”, enfim, a utilização de todos os recursos para manter o público em permanente estado de excitação, precisamente no caminho contrário do estímulo ao senso crítico: “A mídia pensa como eu!”, parece ser a mensagem (Brune, 1993).

 

A funcionalidade dos crimes sexuais para o direito penal máximo

Como sintetizou Wacquant (2002), à redução do “Estado social” (ou do “bem-estar”) corresponde a ampliação tentacular de um “Estado penal”, que se expressa em políticas cada vez mais severas de criminalização e encarceramento.

Batista (2002:272) descreve o quadro que explica o recurso ao “direito penal máximo”:

O empreendimento neoliberal, capaz de destruir parques industriais nacionais inteiros, com conseqüentes taxas alarmantes de desemprego; capaz de “flexibilizar” direitos trabalhistas, com a inevitável criação de subempregos; capaz de, tomando a insegurança econômica como princípio doutrinário, restringir aposentadoria e auxílios previdenciários, capaz de, em nome da competitividade, aniquiliar procedimentos subsidiados sem considerar o custo social de seus escombros; o empreendimento neoliberal precisa de um poder punitivo onipresente e capilarizado, para o controle penal dos contingentes humanos que ele mesmo marginaliza.

O autor aponta uma solidariedade entre mídia e sistema penal que é, de fato, uma expressão da solidariedade mais geral entre mídia e neoliberalismo: as grandes corporações de comunicação não apenas integram a lógica do sistema como ajudam a sedimentá-la, seja “promovendo o bem” – por meio do incentivo a um sem-número de ações de “cidadania” cujo sentido político original é substituído pela caridade do voluntariado -, seja “combatendo o mal”, com a sistemática produção da histeria punitiva através da maneira pela qual se veiculam crimes mais ou menos violentos, casos de corrupção e todo tipo de incivilidades.

A histeria punitiva é amplamente facilitada pela tendência do senso comum a apoiar o “direito penal máximo”, isto é, “maximamente privado de limites e de garantias”, porque “o ponto de vista da maioria induz a conceber o direito penal essencialmente como um instrumento de defesa social, ou seja, de prevenção dos delitos e de defesa dos interesses da maioria não `desviada’ contra os atentados à segurança trazidos pela minoria dos `desviados”’ (Ferrajoli, 2002:31).

Nessa onda repressiva, os crimes sexuais, especialmente contra menores – nesse caso genericamente referidos como pedofilia -, ocupam lugar de destaque, porque associam o desejo de punição ao discurso moralista puritano, ao mesmo tempo que prometem saciar o pouco reprimido – e certamente condenável, se o moralismo não fosse em si mesmo tão hipócrita – voyeurismo do público, ao exporem, ou pelo menos insinuarem, aspectos da vida íntima dos acusados.

Bauman (2000:17-23) aponta a utilidade da figura do pedófilo na mobilização de pessoas absolutamente desinteressadas de qualquer atividade política, e que, indignadas, saem às ruas para protestar contra o “monstro”, esse elemento capaz de vincular uma vivência privada – o amor pelos próprios filhos – à descoberta de um sentido comunitário expresso num “espetáculo público de solidariedade” de caráter conservador. Wacquant (2002:113-132) fundamenta melhor esse argumento, ao descrever a excitação provocada nos Estados Unidos desde 1996, quando foi aprovada a Lei de Megan1, “que prescreve às autoridades a colocação dos sex offenders no índex e que os entrega à inquisição permanente e à vingança aberta do público” (idem:113). Como nos antigos shows de monstros, os condenados (e mesmo os que já cumpriram pena) são uma das principais atrações das feiras de condados:

[Na Califórnia], entre a carrocinha do vendedor de sonhos, o estande de tiro ao alvo e a barraca que exalta as qualidades dos produtos da horta, sob uma imensa faixa de cores gritantes (“Check it out!Relação dos delinqüentes sexuais com acesso livre”), o Ministério da Justiça oferece seus sete computadores equipados com o CD-ROM da Lei de Megan, no qual o freguês pode digitar o código postal de seu domicílio e ver aparecer instantaneamente na tela a foto dos (ex)delinquentes sexuais residentes em seu bairro (idem:118).

À parte o abuso na exposição dessas pessoas à execração pública e dos erros que tais arquivos contêm (idem:125), a Lei de Megan produziu um efeito precisamente contrário ao que supostamente se almejava, ao ampliar o pânico social com a histeria que provocou. Wacquant, porém, acredita que era este mesmo o objetivo, capaz de conduzir a outra conseqüência muito cara ao Estado penal: a abertura do caminho à extensão ilimitada dos dispositivos de vigilância punitiva das categorias sociais que inspiram medo e repugnância. Ansiosos para “garantir os dividendos eleitorais da hostilidade fervilhante em relação aossex offenders”, os políticos “já prometem nas reuniões públicas com seus administrandos indignados que farão votar leis ainda mais severas” (idem:131).

 

Pedofilia na mídia: uma sucessão de escândalos

Durante todo o ano de 2003, salvo o período em que as atenções se concentraram na invasão do Iraque pelos Estados Unidos, o escândalo da Casa Pia de Lisboa freqüentou regularmente a imprensa portuguesa, com o destaque compatível à importância de um caso em que a denúncia de abuso sexual numa instituição de amparo a crianças e adolescentes envolvia figuras de grande expressão pública. O episódio foi e certamente continuará a ser objeto de análises detalhadas, dada a sua complexidade e alcance. Não apenas porque se presta ao aprofundamento da discussão sobre os meios de comunicação: a mídia transformada em tribunal, o voyeurismo, a simplificação que confunde pedofilia e abuso sexual de crianças com prostituição homossexual de adolescentes e adultos jovens, voluntária e consentida (Jardim, 2003), a preocupação com o direito básico da presunção de inocência despertada apenas quando o processo atingiu um apresentador de TV, o conflito entre as normas deontológicas e as condições de produção do jornalismo (Andringa, 2003a). Mas também porque insinua um complicado jogo de interesses entre políticos e representantes da magistratura através da mídia, sugere o vazamento de informações por parte de quem deveria defender o segredo de justiça (Andringa, 2003b) e remete mesmo ao próprio questionamento do sistema judicial português.

Não se trata aqui de explorar qualquer dessas possibilidades de análise. Cabe, porém, destacar um aspecto importante para a abordagem que será desenvolvida a seguir. Pois o episódio da Casa Pia ensejou um comentário decisivo para cultivar o senso crítico do público, e que diz respeito à especial dificuldade de todo esse processo: a falta de confiabilidade em denúncias baseadas nos depoimentos das crianças que teriam sofrido abuso, não pela eventual má fé, mas, como escreveu o psiquiatra Ricardo França Jardim (2003), pela “nossa capacidade em falsear memórias infantis: a passagem à narrativa dos episódios da infância faz-se numa miscelânea de factos reais com elementos fantasiados, imaginados ou induzidos, os quais, pela repetida evocação, se transformam em memórias sólidas, tomadas como verdadeiras e mantidas com uma enorme convicção”. Não por acaso, é tradicional, no campo jurídico, a reserva quanto ao depoimento infantil.

Foi esta, porém, a origem tão frágil de um episódio escandaloso que entrou para a história do jornalismo brasileiro como um dos mais flagrantes e graves atentados à ética. O “caso Escola Base” estourou em fins de março de 1994, a partir de denúncias de mães que começaram a estranhar o comportamento de seus filhos e os interrogaram quanto ao que podia estar ocorrendo na escola (Ribeiro, 1995). Prejulgamento, afoiteza, aceitação automática da palavra de um delegado ansioso pela fama, desprezo ao contraditório – a cobertura do suposto abuso sexual de crianças naquela escolinha infantil de São Paulo arrastou-se insidiosamente durante semanas. A inocência dos acusados acabaria por ser comprovada, mas já era tarde para recuperar reputação e respeito profissional.

O episódio abalou o meio jornalístico a ponto de ser definido como um divisor de águas: a partir dali, jamais seriam cometidos equívocos semelhantes. Jamais, até que outros casos de impacto excitassem novamente a mídia, num círculo vicioso movido pela concorrência e pela ênfase no espetáculo (Martins, 2000; Nassif, 2003).

A crítica, porém, é contundente quando se trata de denúncias infundadas, que resultam em óbvias injustiças. Quando um escândalo se confirma como tal, desaparece a preocupação com os métodos. Nesse sentido, o caso protagonizado pelo médico Eugênio Chipkevitch, em março de 2002, merece particular atenção.

 

Caso Chipkevitch: o recurso ao (velho) método

Retomemos o argumento do jornalista que, no caso Escola Base, ousou duvidar da unanimidade então reinante e teve, por isso mesmo, atuação decisiva no esclarecimento da história. Articulista de economia da Folha de S.Paulo e, à época, também comentarista do “Jornal da Noite”, da rede Bandeirantes, Luis Nassif aproveitou seu espaço na televisão para fazer o alerta, fugindo ao tema de sua especialidade:

Bom, hoje eu não vou falar de economia, vou falar de um assunto que me deixa doente. Toda a imprensa está há uma semana denunciando os donos de escola que presumivelmente teriam cometido abuso sexual contra crianças de quatro anos. Toda a cobertura se funda em opinião da polícia. Está havendo um massacre. Mais que isso, está havendo um linchamento. “Se eles forem culpados, não é mais que merecido”. E se não forem? (…) (Nassif, 2003:45, grifo meu).

O raciocínio sugere, portanto, que os culpados de algum crime, em vez da punição determinada pela lei, merecem a execração pública no melhor estilo dos autos-de-fé – ou, quem sabe, da “Lei de Megan”. Mas, além disso, encerra uma impossibilidade: de fato, como saber, a priori, da culpa de quem está sendo escorraçado pela mídia?

O caso Chipkevitch foi detonado por um desses programas de variedades que se assumem como defensores dos direitos do cidadão. No dia 20 de março de 2002, o Programa do Ratinho, do SBT, levou ao ar fitas em que o médico, especialista no atendimento psicológico a adolescentes, aparecia em situações de suposto abuso sexual de seus clientes, que estariam sob o efeito de sedativos. Fitas de origem desconhecida, que teriam sido encontradas num lixão de São Paulo e encaminhadas ao programa de TV, ou jogadas numa caçamba de lixo por alguém não identificado e recolhidas por um funcionário da companhia telefônica que (providencialmente) estava trabalhando ali. Fitas cuja autenticidade não havia sido comprovada. No entanto, eram a única evidência para a condenação prévia do médico através da imprensa. Nenhuma palavra sobre a (ir)responsabilidade daquele animador de auditório que utilizava o espaço midiático de uma concessão pública para veicular imagens incriminadoras cuja origem e fidedignidade ignorava.

Seria excessivo detalhar aqui os muitos aspectos da cobertura desse caso. Mas é importante destacar o comportamento de duas revistas semanais, Veja – a de maior tiragem, com cerca de 1 milhão de exemplares -, do grupo Abril, e Época, das Organizações Globo. Ambas trabalharam com a mesma idéia no título: “Médico e monstro…” ou “O médico é o monstro”, recurso fácil a um jogo de palavras que ignora a dialética presente na idéia original do conhecido clássico da literatura (o bem e o mal convivendo em cada um de nós) para substituí-la pelo dualismo simplificador de sempre: nós, os bons, acusamos e isolamos o monstro, que está fora de nós. Em seu tradicional estilo editorializado, Veja maximizava a caracterização do monstro como um assassino em potencial. Num tom menos espetacular, Épocaresolveu buscar ligações entre os argumentos teóricos do médico e sua prática criminosa: “Suas opiniões, lidas hoje, soam como uma confissão”. Reproduzia, em seguida, o que classificava como “idéias perigosas”: trechos de uma entrevista concedida à revista em janeiro, sobre pedofilia, e “jamais publicada” (não se explicava por que), nas quais Chipkevitch falava das condições culturais em que aceitamos ou reprovamos determinadas práticas sexuais e de convívio social. Assim, a revista produzia o efeito nefasto de desqualificar a reflexão: “idéias perigosas” podem abalar nossas convicções e devem ser rejeitadas. Permaneçamos todos no porto seguro da nossa ignorância.

Esse espetáculo de obscurantismo seria reforçado na televisão. Também a partir da dicotomia “médico e monstro”, o Fantástico, revista jornalística que a TV Globo transmite nas noites de domingo, abria aquela edição com trechos das cenas exibidas no Ratinho e com imagens do médico sendo preso. Adicionava informações periféricas: o porteiro dizendo que se tratava de alguém muito reservado, o dono da padaria dizendo que ele estava sempre sozinho (sempre o silêncio enigmático, misterioso, comprometedor), um especialista providenciando a explicação para aquele comportamento. Destaque para a entrevista com a mulher que adquiriu a antiga casa do médico, três anos antes: só agora ela entendia o motivo da existência de aparelhos de exame ginecológico numa das salas e, em outra, um quadro com três meninos nus, em fila, um atrás do outro… Evidentemente, quem possui tal tipo de obra só pode ser doente. Arte para degenerados. Arte degenerada: não era esse o título da exposição através da qual os nazistas recém-alçados ao poder procuravam justificar suas teorias e apontar os núcleos viciosos que combateriam com tanta eficácia nos anos seguintes?

Finalmente, a tentativa de falar com o médico: o repórter mostra um bilhete em que o acusado polidamente recusa a entrevista. E conclui: “Mais uma vez o silêncio encobrindo o monstro”.

O silêncio, essa prerrogativa legal de qualquer cidadão, não tem lugar na mídia. O silêncio insuportável deve ser automaticamente classificado como atestado de culpa, num recurso clássico ao senso comum cuja origem, significativamente, remete aos procedimentos da Inquisição medieval: “Naquela sala, sem vestígio dos instrumentos de tortura, onde um réu mal refeito da brutalidade da véspera (…) deve confirmar ou retratar-se de sua confissão, naquela sala quem cala consente” (Batista, 2000:266).

Chipkevitch foi condenado um ano depois de preso, mas já havia sido declarado culpado pela mídia muito tempo antes. Seria o caso de repetir aqui a pergunta de Nassif a propósito do caso Escola Base: e se não fosse?

 

Além das boas intenções: mudar o sistema

Equívocos que se repetem já não são equívocos: são normas vinculadas a um determinado modo de enxergar a profissão.

Num livro apresentado por dois juristas ilustres – o atual ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, e Marco Aurélio Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal e ex-presidente da instituição -, Luis Nassif sugere que o jornalismo siga o caminho do processo jurídico na apuração das notícias, como forma de se contrapor à valorização pura e simples da versão de maior impacto.

O ponto central do processo jurídico é o princípio do “contraditório” – ou seja, a capacidade de contrapor cada argumento de uma parte à outra, até chegar-se à conclusão final sobre o caso em questão. Não se trata meramente de “ouvir” o outro lado, e colocar uma citação qualquer apenas para dar o trabalho por cumprido (Nassif, 2003:42).

O problema das melhores intenções não é apenas o trágico destino que as conduz ao inferno: é que nesse caminho elas se chocam com a realidade.

E a realidade é que o tempo do jornalismo sempre tendeu à celeridade, em contraposição ao tempo do direito. A tensão contida no lema tradicional de “dar a verdade em primeira mão” – a tensão entre precisão e velocidade – em geral se resolvia em benefício do segundo termo da equação, de acordo com as imposições das rotinas industriais e das regras de concorrência. Hoje esse processo se radicaliza, comandado pelas grandes corporações que dominam o mercado e impõem a lógica do capital financeiro: o “tempo real”, a valorização do imediatismo e da imagem induzindo à ilusão de que “ver é compreender” (Ramonet, 1999; Moretzsohn, 2002). Com a “vantagem” da comunicação instantânea, a mídia parece falar direto com o público e surge como sua representante de fato, prometendo uma agilidade contraditória aos rituais do direito. Não é difícil perceber que esses rituais, existentes para o respeito a garantias como o devido processo, a presunção de inocência, o benefício da dúvida, etc., são postos sob suspeita como manobras que, paradoxalmente, visariam a evitar a realização da justiça. “É como se o raciocínio fosse o seguinte: a Justiça é ineficiente e não prende ninguém, logo o escracho e o assassinato de imagem cumprem esse papel” (Bastos, in Nassif, 2003:XI).

Esta é uma expressão do processo de espetacularização (da justiça e das relações sociais de modo geral) que a crítica mais corriqueira classifica genericamente de “midiatização”. Rubim (2002), porém, estabelece aí uma distinção importante, argumentando que a midiatização é simplesmente a forma pela qual as mediações sociais se realizam no mundo contemporâneo. E, se “a rede de mídias institui uma nova dimensão pública”, é este o ambiente no qual terá de se estabelecer a luta pela formação de um senso crítico. A questão estaria em combater a espetacularização, que é de fato uma tendência de “toda essa maquinaria sociotecnológica (…), predisposta a chamar e disputar a atenção de todos”, mas que encerra, em si mesma, um paradoxo: “em um mundo em que tudo pode e tende a ser transformado em espetacular, nada mais parece ser espetacular. Em suma: na sociedade do espetáculo, a banalização da espetacularização produz e destrói, simultânea e incessantemente, espetáculos” (Rubim, idem). Apreender o sentido dessa “alucinada dinâmica” é fundamental para definir os rumos de uma luta política que viabilize a midiatização em seu potencial de esclarecimento e abrangência.

Especificamente no campo da justiça, é importante destacar que a midiatização não autorizaria a concluir que “as regras do jogo mudaram” e que a vítima “não comparece mais sozinha, mas acompanhada das equipes de televisão” (Lits, 1998): isto seria ignorar a seletividade na definição de pautas e os interesses político-ideológicos que tornam visíveis – e freqüentemente espetaculares – determinados fatos, enquanto mantêm outros na sombra; no limite, significaria valorizar em si o recurso à câmera oculta, desprezando o processo de decisão que direciona o seu foco a certos ambientes e situações, e atraindo para eles a atenção escandalizada do público.

Também é importante ressaltar a resistência de um jornalismo crítico apesar do poder tentacular das grandes corporações: bem a propósito, ao comentar o papel do pedófilo no imaginário social, Bauman recorre justamente a uma reportagem analítica do Guardian. Mas é preciso verificar as condições práticas de reação global a esse modelo. Ramonet (2003), por exemplo, propõe um “quinto poder” que se expressaria através de um “observatório internacional da mídia” capaz de reunir jornalistas, pesquisadores da área de comunicação e “usuários dos meios de comunicação, cidadãos comuns e personalidades conhecidas por seu status moral” – isto é, mais ou menos todo o mundo, salvo provavelmente os grandes magnatas do poder global.

É certamente uma proposta idealista, bem de acordo com a retórica libertária dos movimentos sociais contestadores da globalização neoliberal. Mesmo assim, não deixa de ser uma iniciativa estimulante, pelo incentivo à reflexão e pela perspectiva de aprofundamento do trabalho já realizado em publicações como a que o próprio Ramonet dirige. Pode estar aí mais um espaço para exercitar experiências de comunicação contrárias à lógica do espetáculo e para buscar meios de se atingir os fundamentos do sistema que se deseja combater.

 

Referências bibliográficas

 

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  • ANDRINGA, Diana (2003b). “Casa Pia ou Estado da Nação?”, in Ideias à Esquerda nº 2, setembro.

     

  • BATISTA, Nilo (2000). Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro – I. Rio de Janeiro, Freitas Bastos/ICC.

     

  • BATISTA, Nilo (2002). “Mídia e sistema penal no capitalismo tardio”, in Discursos Sediciosos nº 12, Rio de Janeiro, Revan/ICC, p. 271-289 (também disponível em www.bocc.ubi.pt).

     

  • BAUMAN, Zygmunt (2000). Em busca da política. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

     

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  • FERRAJOLI, Luigi (2002). “A pena em uma sociedade democrática”, in Discursos Sediciosos nº 12, Rio de Janeiro, Revan/ICC, p. 31-39.

     

  • JARDIM, Ricardo França (2003). “A verdade da mentira”, in Público, 4 de setembro.

     

  • KUCINSKI, Bernardo (1998). A síndrome da antena parabólica. Ética no jornalismo brasileiro. São Paulo, Fundação Perseu Abramo.

     

  • LITS, Marc (1998). “Faits divers et médiatisation de la Justice”.

     

  • MARTINS, Luis (2000). “Imprensa, danos morais e indenizações”. IX Compós, Porto Alegre, PUC-RS. Disponível em www.facom.ufba.br/pos/compos_gtjornalismo.

     

  • MENDONÇA, Kleber (2002). A punição pela audiência: um estudo do “Linha Direta”. Rio de Janeiro, Faperj/Quartet.

     

  • MORETZSOHN, Sylvia (2002). Jornalismo em “tempo real”. O fetiche da velocidade. Rio de Janeiro, Revan.

     

  • NASSIF, Luis (2003). O jornalismo dos anos 90. São Paulo, Futura.

     

  • RAMONET, Ignacio (1999). A tirania da comunicação. Petrópolis, Vozes.

     

  • RAMONET, Ignacio (2003). “Le cinquième pouvoir”, in Le Monde Diplomatique, outubro.

     

  • RIBEIRO, Alex (1995). Caso Escola Base: os abusos da imprensa. São Paulo, Ática.

     

  • RUBIM, António (2002). “Espetáculo, política e mídia”, in www.bocc.ubi.pt

     

  • WACQUANT, Loïc (2002). Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro, ICC/Freitas Bastos.

     

 


Notas de rodapé

 

  • … Megan1
  • Assim batizada em referência ao assassinato, com violências sexuais, da menina Megan Kanka, em Nova Jersey, em 1994, a lei federal “institui a obrigação, para as polícias dos 50 estados, do `registro’ e da `notificação pública’ da presença de (ex)delinqüentes sexuais” (Wacquant, 2002:114) e foi incorporada diferentemente por cada jurisdição. “Assim, no Alabama a lista dos condenados por estupro, sodomia, sevícias sexuais ou incesto fica exposta no átrio das prefeituras e no comissariado mais próximo do domicílio dos infratores. (…) Em Luisiânia, é o próprio (ex)delinqüente sexual que tem que avisar do seu status, pelo correio, a seu locatário, seus vizinhos e aos responsáveis pela escola e parques de seu bairro (…). Na Flórida, a informação é difundida através de uma linha direta e de um sitegratuito na Internet e compreende, além do nome, a foto e o endereço atualizado de 12 mil `predadores sexuais’ condenados depois de 1993 (…)” (Wacquant, idem:115).
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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