Os invisíveis elos da observação, por José Feres Sabino

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Os invisíveis elos da observação

por José Feres Sabino

O que há em comum entre a investigação promovida por um delegado ou promotor, ou mesmo um juiz, e a promovida por um médico? Quando, por exemplo, um juiz autoriza a instalação de escuta telefônica dentro de um presídio a fim de captar a conversa do advogado com seu cliente, e um médico solicita um exame no corpo do paciente, qual é a ligação entre esses dois tipos de práticas?

Essas práticas podem ser vinculadas pelo verbo “detectar”. Ambas querem detectar algo: detectar um crime; detectar uma doença. A aplicação do mesmo verbo pode ser vista também no domínio da climatologia e da sismologia: ambas querendo detectar uma catástrofe natural.

Nos casos citados, as práticas se apresentam como identificação preventiva: identificar e prevenir um crime, identificar e prevenir uma doença; identificar e prevenir uma catástrofe natural. E, ao garantir a segurança dos membros da comunidade contra o que os ameaça, a identificação preventiva molda a vida coletiva.

Caberia, no entanto, perguntar se, ao se erigir um campo de segurança quase máxima, não se produziriam certos efeitos colaterais. A identificação antecipada de alguma ameaça não acaba produzindo justamente aquilo que se quer evitar?

No âmbito da natureza, a detecção aparentemente não provoca nenhum efeito colateral. Aliás, ao contrário, pode até salvar vidas. Mas, quando aplicamos a detecção no âmbito da experiência humana – doenças e crimes –, quais seriam os efeitos colaterais da detecção? Qual é a consequência de submetermos nossas experiências – quer em nome do bem, quer em nome da saúde – ao princípio da espionagem?

No ano de 1986, um escritor e dramaturgo suíço, Friedrich Dürrentmatt, publicou uma pequena novela, intitulada A tarefa ou da observação do observador dos observadores (novela em vinte e quatro frases), e dela, sobretudo no capítulo 5, podemos extrair um princípio comum a todas essas práticas¹.

O narrador descreve a posição que um personagem, o professor de lógica D., toma em relação ao que sua amiga, a jornalista F., lhe conta e está prestes a viver. Esta havia sido contratada por um psiquiatra para investigar a morte de sua mulher, que fora encontrada violentada e morta no norte da África. F. era famosa por causa de seus retratos cinematográficos e, no momento, estava empenhada em fazer um retrato global do planeta Terra a partir de cenas casuais, motivo pelo qual havia filmado o funeral da mulher do psiquiatra.

O que o professor de lógica – que se sentia feliz por se “dedicar à lógica, que estava além de toda realidade e a salvo de toda pane existencial” –, oferece a sua amiga, tentando entender a relação do psiquiatra com sua mulher, é uma explanação da lógica da observação. A detecção e a espionagem seriam exemplos (modos de ação específicos) de um princípio que define nossa época: a observação.

O ser humano atualmente é um ser “exposto à observação, observado que é pelo Estado por meio de métodos cada vez mais refinados, tentando com desespero crescente escapar desse ser observado e, o Estado sendo cada vez mais suspeito aos olhos do homem e o homem sendo cada vez mais suspeito aos olhos do Estado, assim como também todo Estado observa os demais e se sente por estes observado, o próprio homem observando hoje a natureza como jamais o fez, à medida que inventa instrumentos sempre mais sensíveis para observá-la…”. E a lista de instrumentos é imensa, indo do microscópio à sondas espaciais. (Da data da publicação da novela até hoje, os instrumentos de observação não só se aperfeiçoaram e novos foram inventados, como também houve um maior acesso a eles. Como exemplo dessa lista deve constar um dos últimos instrumentos, o smartphone, que, mantendo o mundo à mão do usuário, deixa-o quase que permanentemente ligado à cadeia do observador e do observado.)

Assim, o escopo da vida humana está inteiramente sob o escrutínio da observação. E agora não é mais um sujeito autônomo e senhor de si que determina os objetos, ou organiza e rege sua experiência, mas um observador que observa e é observado, que por sua vez observa e é observado e assim incessantemente.

A objetificação contemporânea passa a ser uma mera consequência da observação: o médico transforma o paciente em campo de observação de doença; o juiz transforma o réu em campo de observação de sentença; o cientista transforma a natureza em campo de observação de suas teorias. Até mesmo os terroristas, cuja estratégia de sobrevivência está em manter-se inobservado, são obrigados a entrar no domínio da observação, sem a qual seus atos não alcançariam nenhum sentido.

Segundo o raciocínio do professor de lógica, só podemos compreender nosso “respeito” ao princípio da observação pela ontologia do humano. Afastadas as instâncias que doavam sentido à condição humana – refiro-me aqui à morte de Deus e ao controle da Natureza – coube ao homem, este bicho solitário sem qualquer alteridade que diminua sua arrogância, e só a ele, emprestar sentido ao humano, já que ele é “um pedante incapaz de prescindir de sentido, razão pela qual ele suporta tudo, menos a liberdade de não dar a mínima para o sentido…”.

Observar e ser observado é, portanto, o constituinte de sentido do humano. Ou, se quisermos formular a sentença em termos heideggerianos, o sentido do ser em nossa época é a observação. Se não estamos sendo observados ou observando, não suportamos a ausência de sentido – a condição de inobservado – e precisamos de qualquer modo reentrar na tela da observação. O efeito colateral mais significativo que a lógica da observação provoca no acontecer humano é a alteração do estatuto da realidade e da vida.

Qualquer coisa só adquire realidade se cai na teia da observação, e nela a vida se torna mero índice, que, disponibilizado por uma vontade técnica à observação do observador dos observadores, é assistido e manipulado desde a concepção até o desaparecimento, sem que haja qualquer lugar em que se possa, ainda que momentaneamente, refugiar-se da observação.

Que o leitor não abandone a leitura pensando em atribuir a Dürrenmatt uma atitude resignada, já que ele estaria endossando o mundo tal como se apresenta; ao contrário, o que ele busca é realizar uma tarefa dupla: reconhecer a lógica do mundo no qual estamos encerrados e não capitular diante de seu absurdo.

¹Dürrenmatt, Friedrich. A tarefa ou Da observação do observador dos observadores – Novela em vinte e quatro frases. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

 
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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  1. “Qualquer coisa só adquire

    “Qualquer coisa só adquire realidade se cai na teia da observação, e nela a vida se torna mero índice, que, disponibilizado por uma vontade técnica à observação do observador dos observadores, é assistido e manipulado desde a concepção até o desaparecimento”:

    Complexo de inferioridade nao eh “vontade tecnica”.  Eh complexo de inferioridade mesmo.

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