Os surtos de primitivismo político

Sugerido por Marco St.

Do Estadão

Reféns do bolsonarismo

CONRADO HÜBNER MENDES

O Brasil tem assistido a surtos agudos de primitivismo político. O fenômeno não é de direita nem de esquerda, não é de oposição nem de situação, não é conservador nem progressista. Merece outro adjetivo porque não aceita, por princípio, a política democrática e as regras do jogo constitucional. Esforça-se em corroê-las o tanto quanto pode. Não está disposto a discutir ideias e propostas à luz de fatos e evidências, mas a desqualificar sumariamente a integridade do seu adversário (e, assim, escapar do ônus de discutir propostas e fatos). Cheio de convicções, é surdo a outros pontos de vista e alérgico ao debate. Não argumenta, agride. Dúvidas seriam sinais de fraqueza, e o primitivo quer ser tudo menos um fraco. Suas incertezas ficam enrustidas no fundo da alma.

Há muitos exemplos desse surto. Aos interessados num curso relâmpago sobre essa patologia, serve qualquer entrevista de um folclórico deputado do PP que há pouco mobilizou o seu partido para pleitear, sem sucesso, a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (ver YouTube). Ao ser perguntado sobre os seus projetos para o cargo, dispara: “A minoria tem de se calar e se curvar à maioria!”. E continua: “Não podemos estimular crianças a serem homossexuais”. Para ele, “não somos nós que temos de respeitar homossexual, eles é que têm de me respeitar”.

“Vagabundos”, pondera ainda, deveriam “pagar por seus pecados”. Por isso, os presídios brasileiros seriam “uma maravilha” e o Complexo Penitenciário de Pedrinhas, onde alguns presos foram decapitados semanas atrás, “a única coisa boa do Maranhão”.

Dessa amostra se pode deduzir o que pensa o deputado sobre tantos outros temas. Ele sabe para quem está falando e por qual breviário deve rezar para se eleger. Suas frases de efeito imoral são combustível para toda sorte de recalque homofóbico, sexista, racista, elitista, policialesco, enfim, para todo o arsenal de recursos opressores estocados na cultura brasileira. A filosofia da discriminação dá voto. Invocada com raiva e fé, ainda elege e reelege.

O parlamentar do PP é a expressão mais caricata, se não repugnante, do primitivismo. Fosse apenas um lembrete pedagógico de um país que um dia existiu, ou representasse só um reduto de filhos bastardos da ditadura, não causaria maior dor de cabeça. Mas quando notamos que ele é somente a versão mais antipática de um Brasil que ainda nos espreita da esquina, ou de uma mentalidade que continua a se manifestar nos jornais, na família e no trabalho, é sinal de que o confronto não pode ser evitado. Há muito em risco para ficar em silêncio.

Onde erra o bolsonarismo? Essa não é uma pergunta retórica. A resposta, afinal, nem sempre está na ponta da língua daqueles que rejeitam, por instinto ou convicção, essa visão de mundo. Construir uma resposta robusta, por todos os ângulos possíveis, é um esforço indispensável para deixar claro o que está em jogo.

Incomodam ao bolsonarismo os padrões de decência política, os direitos fundamentais e os compromissos de mudança social pactuados pela Constituição de 1988. Esse pacto constitucional, entretanto, é um ponto de partida inegociável e não está aberto a reconsideração. Se pensa que nem todos merecem direitos, não entendeu bem o que são direitos. Fala em direitos, mas pensa em privilégios. Se quer ser um servo da maioria, não aprendeu bem o que é democracia, mas definiu perfeitamente a tirania. Se acha que a parada gay deve ser respondida com a marcha dos heterossexuais, não entendeu nada mesmo.

Que o seu repertório de ideias fixas constitui uma brutalidade moral e uma aberração jurídica, isso não é mais novidade. Antes disso, porém, trata-se de um monumento de desonestidade intelectual. Ignora as abundantes provas sobre a motivação homofóbica de centenas de crimes de ódio anualmente praticados por todo Brasil. Ignora a relação causal, já demonstrada por tantos pesquisadores nacionais e estrangeiros, entre o encarceramento em massa e o agravamento da violência. Prisões brasileiras há muito não cumprem suas funções publicamente anunciadas – prevenção, dissuasão, ressocialização. Poucos se dão conta, contudo, de que prisões cumprem perigosas funções extraoficiais, e elas invariavelmente agradam ao primitivo: o incentivo à demagogia, a repressão da pobreza, o endurecimento da violência estatal. Isso já é saber convencional nas ciências sociais, mas a política mostra-se impermeável a essas velhas constatações.

Um dos desafios para a sobrevivência da democracia é alijar as ideias que atacam a sua própria condição de existência. E como alijá-las sem suprimir a liberdade de expressão? Há pelo menos dois caminhos complementares.

Primeiro, pela construção e manutenção de uma esfera pública vigilante que defenda e rotinize práticas democráticas, algo que depende da educação política praticada por escolas, jornais, instituições culturais, organizações não governamentais (ONGs), etc. Práticas que seriam facilitadas, por exemplo, pela multiplicação de espaços públicos nas cidades, onde se possa conviver com a diferença e apreciar a pluralidade brasileira.

Segundo, por meio de líderes que não se acuem diante da baixa política, que tenham coragem de arriscar seus cargos em defesa de certos princípios e tenham grandeza para fazer alianças com aqueles que, mesmo adversários, compartilham esses princípios. Quando o medo da derrota eleitoral sequestra essas lideranças, que em silêncio desidratam seus projetos de implementação de direitos e promoção da igualdade, o alarme passa a tocar.

PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, É DOUTOR EM DIREITO PELA UNIVERSIDADE DE EDIMBURGO (ESCÓCIA) E DOUTOR EM CIÊNCIA POLÍTICA PELA USP

Redação

13 Comentários

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  1. Democracia não é vale tudo

    Apesar da encheção de saco na análise por demais extensa de um troglodita primário, o professor encerra da melhor maneira possível, pondo em destque uma questão simples: a democracia compreende tudo, menos a pregação antidemocrática em seu próprio seio. Democracia não é vale tudo.

    Alguns podem dizer que esse caminho é perigoso, aludindo à proibição da existência de um partido comunista, por ser ele avesso à democracia. Mas é claro que um partido comunista cabe em uma democracia, desde que ele não tenha em seus estatutos a pretensão de, um dia, no poder, eliminar os princípios democráticos.

    Mas entendo que os partidos comunistas podem mesmo questionar a qualidade de nossa democracia, ou até mesmo o conceito de democracia quando o que temos por esse nome é um regime autoritário conduzido por forças econômicas, que se sobrepõe à democracia impondo suas diretrizes, sem qualquer respeito às demandas populares. Mas não podem ter como objetivo o fim da democracia, no sentido de impor um regime ditatorial supostamente proletário, ou cercear liberdade de expressão, de opinião, de manifestação.

    Um presidente eleito sob a bandeira comunista poderá, dentro da democracia, trabalhar para a construção do comunismo, respeitando a pluralidade, o pluripartidarismo, a possibilidade de perder eleições e ter que mais uma vez engavetar projetos de socialização, pois, se a sociedade demonstrou, através do vpoto, não apoiar as ações do executivo, então a sociedade deve arcar com os custos de suas opções, como arcaria com o prosseguimento das diretrizes do PC.

    Isso no melhor dos mundos, é claro, onde até um partido de direita merece se estabelecer e lutar pela aplicação de seus programas políticos e econômicos, desde que não tencione implantar uma ditadura de partido único e outros horrores afins aos pendores bolsonarianos.

    A liberdade política deve ser protegida na democracia enquanto aqueles que dela participam a entendam como princípio sem o qual não valerá a pena a construção de uma hegemonia que produza um regime autoritário ou totalitário, sem correspondência com as liberdades civis e a igualdade entre os cidadãos.

  2. Mas como não surtar com um

    Mas como não surtar com um mp, stf  subjugados, serviçais, escravos da mídia e do capital? Os mafiosos estão metendo os pés pelas mãos e não há como ficar indiferente e ser politicamente correto. Se eu encontrar num vôo, o justiceiro jb, vou vaiá-lo até ficar sem voz, correndo um enorme risco de ser presa, por isso, pelo troglodita, oportunista, que não sabe o que é liberdade. Assumir um cargo de ministro e trabalhar somente para seu ego e miami, é de vomitar. Pior é ver seus colegas aceitando tudo como se eles não tivessem espaço, cargo, saberes sobre constituição, fossem, apenas, uns mijões diante da irregular, vergonhosa, humilhante ditadura imposta a eles, à justiça pelo capitão do mato. Esses homens não tem alma, culhões? A oab, a gente sabe que sempre foi pequena, malandra e covarde, mas, juro, esperava mais dos togados diante do ditador.

  3. Uai, e tem reféns do governismo também

    Por conta do mito da governabilidade governistas fingem não ficar incomodados com o apoio recebido do PP. Tem ministério não? Não deu tempo de TV em 2010, dará em 2014?

    Quando Bolsonaro fala algo, quem é que o critica em plenário? Quem questiona alianças com o PP?

    De vez em quando alguém, mas, desde a coligação que elegeu o prefeito de SP, pouco, certo?

    Onde erra o governismo?

    Em achar, que nem avestruz, que isso não pega mal.

    Pega sim, eleitores observam quem apoia quem, quem se deixa apoiar por quem, que discursos são criticados ou convenientemente ‘esquecidos’.

    Coligações grandes demais não necessariamente viabilizam o melhor discurso.

    E assim fica.

     

    1. Eleitores observam se está

      Eleitores observam se está dando para se presentear  com coisas como carro, viagens, filhos na escola, etc ao longo da labuta da vida. Todo o resto é pequeno perto disso.

    2. Sobre partidos, apoios e coligações?

      E quem questiona o apoio de Jorge Bornhausen, o mais vistoso símbolo do que há de mais reacionário na política brasileira, ex-expoente da Arena, do PDS e do PFL?

      E quem questiona os apoios de Heráclito Fortes e Caiado?

  4. O que o autor descreve são os

    O que o autor descreve são os compromissos da extrema-direita, sabidamente anti-democrática no Barsil e em boa parte do mundo. Dizer que o “bolsonarismo” não é “nem de esquerda e nem de direita” é pura mistificação.

  5. Uma aula sobre a falta de

    Uma aula sobre a falta de cidadania do povo brasileiro, sintetizada na frase:

    “Práticas que seriam facilitadas, por exemplo, pela multiplicação de espaços públicos nas cidades, onde se possa conviver com a diferença e apreciar a pluralidade brasileira.”

    Isso se chama falta de senso de coletividade, o seu oportunismo e a repetição das máximas da “lei de Gérson’ e do “eu primeiro”.

  6. Só acho que não é um surto.

    Só acho que não é um surto. Isso está sendo cevado há muito tempo e divulgado como “a coisa certa”. Daí, temos linchamentos no stf, suspeitos espancados até a morte, amarrações em postes, manifestações sobre matar portadores de HIV, redução da maioridade penal e tudo dito e feito com muita certezade seus bons propósitos e, quem sabe, até orientação divina.

  7. Vou entrar para a marcha do cansei

    Como diria o “finado” Sanzio quem não tem seu reaça de estimação ? Estão em todo lugar e acham o maximo falarem, falarem, quase não param para respirar, e falam alto, para todos a volta no restaurante ouvirem que, bandido tem mais é que morrer, que pobre não quer trabalhar (para ser explorado por eles mesmos) porque agora ganha salario miséria do governo (melhor seria continuar ganhando o deles), que a bichaida invadiu as novelitas, que os mensaleiros têm que apodrecer na cadeia (isso é porque sabem que tem a frente um petista) e que isso e que aquilo outro. Tem opinião formada sobre absolutamente tudo e nunca se colocam em questão. Estão sempre certos. Eu ando fazendo cara de paisagem e respondo: cuidado para não engasgar com a espinha do peixe.  

  8. eu iria escrever crônica 

    eu iria escrever crônica  sobre  isso. temos que defender o debate e a democracia com a alternância de poder. temo as pessoas que pedem a volta na ditadura.

  9. chamo esses primitivos de

    chamo esses primitivos de trogloboditas – os trogloditas como bolsonaro e congêneres viciados nos mentiróes da grande mídia encabeçada pela globo desde os seus editoriais favoráveis ao golpe militar de 64 ancorado nas forças midiáticas e da cia e frotas marinescas do tio sam…contra outra,sam…que essa já encheu saco… 

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