P, de Parteira; por Douglas Portari

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Do Dicionário Ilustrado de Ofícios
 
P – Parteiras
 
Por Douglas Portari
 

“Olha, eu acho que eu tive só dois partos que eu tive que dar uma palmadinha no bebê pra ele chorar. O resto, quando botava a cabecinha pra fora, já ‘ué, ué’, e eu ‘bora, venha chorar aqui fora’”, Dona Benedita, parteira em Santo Antônio do Descoberto, Goiás

Dona Benedita, 64 anos e um parto pra cada um deles

Para algumas pessoas, ao conversar com aqueles que realizam o “último serviço” que alguém pode nos prestar (Coveiroo verbete anterior), logo na primeira entrevista, este projeto teria começado pelo fim. Por isso a decisão de ir ao que seria, então, o início, e conhecer o trabalho de quem traz gente para este mundo, a parteira.

 
Vai daí que a frase de Chaplin – “há uma coisa tão inevitável quanto a morte, e essa coisa é a vida” – serve como epígrafe para este verbete. Ou, como entendido pela parteira Benedita, afiançada por 64 anos de experiência e 52 anos de partejar, “morte não marca hora nem lugar, vida também não”.
 
Dona Benedita vive em um pequeno sítio em Santo Antônio do Descoberto, cidadezinha “do Goiás”, como o povo diz, mas considerada parte do Entorno de Brasília pela proximidade, cerca de 50 km da capital federal. Lá almoçamos e conversamos em um domingo de outubro.
 
Ela é negra, mãe de santo, pobre e orgulhosa de sua trajetória. É o arquétipo das mulheres desse ofício, em geral indígenas ou quilombolas – forte, falante, com pouco estudo formal, maior de 50 anos, e que exerce liderança naturalmente. É parteira tradicional, aquela que aprendeu seu ofício partejando, pegando menino, como elas dizem do ato de fazer o parto. E de graça.
 
É um trabalho complexo, que reverbera na política de saúde de todas as esferas de governo. Por isso, falei também com a enfermeira-obstetra Silvéria Maria dos Santos, professora de Enfermagem da Universidade de Brasília (UnB) e autora de uma tese sobre as parteiras do Entorno do DF [veja no rodapé], pela qual se tornou doutora em História das Mulheres e Teoria Feminista.
 
Coordenadora do Grupo de Gestantes e Casais Grávidos e Paridos do Hospital Universitário de Brasília (HUB), Silvéria milita pelo reconhecimento das parteiras tradicionais e, pra quem quiser saber, teve dois partos normais, em casa. “Conduzidos por mim e feitos por uma cunhada parteira-obstetra. E minhas duas filhas já pariram e partejaram em casa”.
 
DIO – Dona Benedita, a senhora pode se apresentar?
Benedita – Meu nome é Benedita Maria da Conceição Alves, sou parteira. Nasci em 1947, em Cabrobó, Pernambuco[a cerca de 500 km do Recife, cidade cortada pelo Rio São Francisco] e vim pro Distrito Federal em 1974. Tenho 64 anos, sou espírita e fiz minhas obrigações de santo na Bahia, com a Maria Escolástica da Conceição Nazaré, Mãe Menininha do Gantois. Fiz santo com oito anos, aos 17 anos eu me casei, aos 18, fui mãe pela primeira vez. Terminei as minhas obrigação e abri meu barracão, em Pernambuco.
 
Como começou o trabalho de parteira?
Benedita – Meu trabalho de parteira começou quando eu tinha 12 anos de idade. Minha mãe ela teve três filhos e ela mesmo fez o parto porque ela é descendente de índio. Eu fui parteira por acaso. Eu só via mulher grávida, mas não tinha aquele interesse… porque eu era uma criança ainda. Mas uma tia que era irmã da minha mãe, irmã mais nova, tava casada e esperando o primeiro filho. E lá no Nordeste, naquela época, sempre ficava uma pessoa da família acompanhando a gestante, porque na hora que ela sentisse dor ia chamar o marido, que tava na roça trabalhando, ou a parteira. Ficava todo mundo de sobreaviso, “fulana de tal vai parir tal tempo”. Só que com minha tia aconteceu justamente o contrário. Quando ela sentiu a dor pra parir, nós távamos na beira do Rio São Francisco, lavando roupa, o marido dela tava na feira e a parteira também – e era 30 quilômetros de distância – e eu tive que fazer o parto dela, mesmo sem saber o que tava fazendo.
 
Como foi?
Benedita – Ela sentiu uma dor de barriga. A gente voltou pra casa. Ela foi pro quarto e eu fui fazer um chá. Quando ela gritou, eu deixei o chá no fogo de lenha fervendo e corri pro quarto e olhei: ela já estava na posição, porque a própria dor, o próprio esforço da criança pra nascer obrigava ela a abrir um pouco as pernas. O meu primeiro pensamento foi segurar as pernas dela, pra que aquela cabeça que tava ali acabasse de nascer, acabasse de sair. E quando eu fiquei com esse bebê chorando e vi que o cordão umbilical – hoje eu sei, depois de muito tempo eu vim a saber que era o útero se contraindo – tava entrando, eu tive a intuição de amarrar na perna dela que era pro bebê não voltar. Que o meu pensamento era que o bebê ia voltar pra dentro.
 
Quando viu o bebê saindo, o que pensou?
Benedita – Foi até nojento, eu pensei que ela tava fazendo cocô. Mas quando eu me aproximei eu vi que tava saindo por outro lugar. Quando ela quis fechar a perna com aquele pensamento “se eu fechar a perna, o menino não nasce agora e vai esperar”, eu segurei a perna dela porque eu queria ver o que tava saindo dali. Meu primeiro pensamento… até hoje não dá pra descrever… mas foi uma curiosidade. Se ela fechasse a perna, o bebê teria morrido. A criança quando nasceu ela chorou. E eu enfiei o dedo na boquinha dela porque ela tava chorando engasgada, tava com aquela secreção e eu puxei aquilo da boquinha dela. Eu também notei que o corinho da barriga do bebê tava esticando e quando olhei pra mamãe, a minha tia, eu vi que aquela tripa que ligava a mamãe à criança estava voltando pra dentro. Foi quando eu peguei uma ponta de um lençol e amarrei o cordão na perna dela.
Aí, ela mesmo disse “você vai em tal canto e pega a tesoura e corta aí que não vai sumir mais”. Só que quando eu cheguei na tesoura, que estava dentro de uma cestinha toda arrumadinha, que a própria parteira tinha deixado, tudo esterilizado, bonitinho – antigamente, e até hoje, a parteira comprava seu próprio material –, eu pensei “se eu cortar agora, o pedaço vai entrar e eu não vou poder puxar”. Porque eu não sabia além daquele bebê o que que tinha mais lá dentro. No meu modo de pensar eu achava que tinha outro bebê. Então, eu voltei e disse “tia, faz força de novo que é pra sair o outro”. Hoje eu sei que não é pra fazer força, é pra esguiar, esguia a barriga que é pra sair a placenta. Mas ela fez força e a placenta pulou fora. Aí, eu cortei e enrolei aquela placenta em um pano e deixei lá num canto e fui cuidar de limpar o neném.
E eu limpei o neném e ela perguntando “o que que é? É homem?”, porque eles tavam ansiosos pra ser homem, e eu disse “acho que é” (risos). E no cortar do umbigo da criança tudo veio na intuição – hoje eu sei que é uma entidade que me acompanha desde aquela época –, porque dentro da cestinha da parteira tinha um rolo de cordão e uma pazinha, parecendo o cabo de uma faca. Eu não sabia pra que era, mas quando vi o cordão eu pensei “é pra amarrar isso aqui”. Eu peguei e amarrei no pezinho da barriga do nenezinho e cortei mais em cima e amarrei de novo. Mas ficou sangrando. Eu olhei praquela pazinha e dentro da cesta tinha uma vela. Eu acendi a vela e esquentei a pazinha e encostei na tripinha. Só foi encostar e shhhhh, cauterizou.
 
Era pra isso a pazinha?
Benedita – Era pra isso, mesmo. Não desse jeito, era pra esquentar no fogo, na brasa, só que ninguém tinha me ensinado, eu tinha 12 anos, e ninguém mexia na cesta da parteira. Era da Mãe Sinhá, ela chamava Mãe Sinhá. Quando a parteira chegou, que viu, que desenrolou a menina – que era menina –, ela perguntou “minha filha, quem deu banho nessa menina?”. Eu disse “quem deu banho fui eu. Botei ela nos pés da cama, mornei a água, molhei o pano e fui passando assim nas dobrinha dela”. Ela olhou o umbigo e disse “quem te ensinou isso?”, eu falei “ninguém me ensinou nada, não”. Aí, pronto, meu nome correu, que eu tinha pego menino, “Benedita agora é pegadeira de menino”. Aí, as mãe que tava esperando queriam que eu fosse ajudar elas, ficar com elas.
 
Elas pediam pra sua mãe?
Benedita – No começo, minha mãe ficou muito decepcionada, porque ela queria o melhor pra mim. E isso não era visto como uma coisa boa… porque as parteira já era mulheres velha. Nem as mulher nova que acabava parindo sozinho elas não tinha corage de admitir depois que tinha cortado o umbigo do filho. Porque parecia uma coisa escandalosa. Eu sofri muito com esse preconceito.
 
Era algo feio…
Benedita – Foi numa época que o preconceito realmente existia. Porque menina era menina, mulher era mulher. Quando uma mulher ia parir, a criança era retirada de casa, homens eram retirados de casa, que era pra não ouvir a mulher gemer. Quando a gente chegava em casa, a mulher já tava lá com aquele bebê todo banhadinho, cheirosinho, bonitinho. A história era que a cegonha é que tinha trazido. A gente nunca sabia o quê que significava o nascimento da criança. E eu fiquei sabendo de uma maneira dura, na época, pra uma criança de 12 anos. Isso me trouxe uma revelação grande, mas eu paguei um preço alto. Porque como era uma região de pessoas muito pobres e sem conhecimento, sem estrutura nenhuma, ficou uma história que eu não era mais virgem porque eu tinha pego um menino, porque isso não era coisa pra uma menina, e como eu já tinha ido fazer santo, já tinha isso do espiritismo, então eu era errada mesmo… “sempre foi doida, com oito anos rapou a cabeça” [por causa da iniciação na religião]. Preconceito é preconceito em todas as época e ele não ajuda, só atrapalha. Tivemos que ir embora de Cabrobó pra Petrolina. Lá eu noivei, casei. Mas essa minha tia depois foi morar em Petrolina. E eu conheci e ainda brinquei com minha “filha de parto”, minha priminha. A gente brincou de boneca, ela com dois, três aninhos, eu com 15, 16 anos, pra enterter.
 
Antes de casar, a senhora pegou quantos meninos?
Benedita – Ah, uns 30, por aí, assim… A gente saiu de Cabrobó e veio para Orocó, que era o município mais perto, porque o preconceito chegou a ser de uma maneira que eu passei por uma violência sexual aos 13 anos de idade. A gente era muito pobre, nós saímos viajando em lombo de animal, lombo de burro. Minha mãe arrumou as coisa tudo porque ela era viúva. Minha irmã mais velha de que eu faleceu com cinco anos de nascida e ficou só eu e minha outra irmã, que era mais nova. A gente tinha duas mulas e mamãe arrumou as nossas coisa, que eram pouca, uma rede e uma mudinha de roupa, justamente pra sair daquele lugar. Minha mãe tentou se organizar nesse lugar, mas mulher grávida passa na frente e a história chegou antes da gente. O povo já sabia que eu era parteira e tinha pego menino lá em Cabrobó. Precisou, me procuravam. Minha mãe dizia “não vai”, eu dizia “vô”. Porque é uma missão, sabe?
 
A partir daquela primeira vez você foi ensinada?
Benedita – Sim, as parteiras mais velhas passaram a me orientar. Elas passaram a me levar como companheira delas, como assistente. E tinha uma parteira, chamada Dona Cincinata, que tinha sofrido um acidente e quebrou a munheca direita. Ela não tinha mais muita habilidade com a mão direita. E quando era na hora de cortar um umbigo, amarrar um umbigo, ela me chamava e falava “minha filha, Dofona, faz isso aqui pra mim, faz assim”. Ela me chamava de Dofona por causa do meu santo, ela também era espírita. Elas me conheciam por Dofona, só quem me conhecia de Cabrobó sabia que meu nome era Benedita.
 
Havia preconceito entre parteira católica e parteira espírita?
Benedita – Hoje, existe. Antigamente, não. Toda parteira naquela época sabia rezar. Na hora do parto da mulher, se ela tá com alguma complicação de placenta, placenta colada, criança que gerou numa posição que não a correta, tem as orações que a gente faz. Nesse caso não existia preconceito. Porque se ela não fizesse a oração com fé – que era pra ela ter a orientação espiritual – e, claro, manusear com as mãos, as massagens, tudo, acabava não dando certo. E, graças a Deus, de Cabrobó a Petrolina, eu acho que fiz uns 32 partos e nenhuma mulher e nenhuma criança se perdeu na minhas mão. E isso pode acontecer ainda hoje dentro dos hospitais. Mas a criança, por exemplo, atravessada ou colada no útero, através da oração, do poder da fé, você vira essa criança, criança que vinha com os pés ou afetada, se salvava.
 
E os próprios partos da senhora?
Benedita – Eu fiz. Minha primeira filha minha mãe tava lá me ajudando, mas ela me deu minha filha e disse “toma, corta o umbigo”. Claro que minha mãe ajeitou o que eu não podia ajeitar eu mesma. Eu tive seis filhos, mas foram cinco partos porque eu tive gêmeos.
 
Quantos partos a senhora fez ao todo?
Benedita – Eu fiz 64 partos.

“Morte não marca hora nem lugar, vida também não. Criança nasce na hora que tem que nascer”

Quando foi o último?

Benedita – O último tem dois anos. Foi aqui no Residencial São Francisco [Samambaia, região administrativa do DF, vizinha a Santo Antônio do Descoberto]. É da irmã de uma filha de santo aqui. Quando foi um dia, umas nove, dez horas da noite ela me liga e diz “Mãe, nós tamo com um problema. A Ana já foi em todas as maternidade de Brasília e tá tudo cheia e num tem lugar”. Eu disse pra levar pro hospital de Samambaia, mas eles disseram que já tinham levado e mandaram ela de volta, que não era hora ainda. Só que ela tava com dor e não sabiam mais o que fazer. Tava a filha de santo, a mãe dela e a mãezinha. “Minha mãe, dá pra senhora vir aqui? Nos socorre, pelo amor de Deus!”. “Eu vou”. Cheguei lá em uns dez minutos. Eles estavam chegando com ela também do hospital de Samambaia. Mas aí a bolsa já tinha rompido e ela tinha contração pra nascer, não conseguia nem andar mais. Eu disse “vamos pra dentro da casa, minha gente”. Chegamos na sala eu puxo uma cadeira, botamos ela sentada, eu falei “minha filha, chega a bunda pra frente e encosta as costas lá atrás”. Eu segurei nas pernas e pá, o bebê pulou, na mesma hora. Tudo bem, aparamos o bebê, cortei o umbigo ali mesmo. A mãe da gestante trouxe logo um lençol e ficou “ai, meu Deus do céu, não podia ser assim”. Eu falei “pode, sim, criança nasce na hora que tem que nascer”. Nisso, vida e morte não têm diferença, morte não marca hora nem lugar. Pois é, vida também não. “Nasceu dentro de casa? Nasceu. “Filha, você tá bem?”, “acho que tô…”. “Tá, sim!” (risos). Peguei a placenta, virei, olhei, examinei, tava direitinha, formadinha.
 
Por que isso?
Benedita – Porque a gente tem de ver se ela não rompeu, se não ficou pedaço lá dentro, que isso prejudica muito a mulher nas primeiras 24 horas, nos primeiros 30 dias. Porque isso pode gerar infecção, hemorragia. Se ela tiver uma fissura ela vazou líquido dentro da mulher…
 
E isso a senhora aprendeu como?
Benedita – Com as parteiras. Não precisa carcar a mulher, futucar a mulher. Examina a placenta. Se ficar pedaços da placenta nós vamos pros nossos chás, pras nossas raízes. Existe a maricela, no Rio Grande do Sul, melhor coisa pra tirar sujeira do útero; o baquipari, que dá uma fruta muito gostosa, eu tenho um pé bem aqui, difícil no Nordeste, mas nasce aqui no Cerrado; a raiz de perdiz, se a mulher tem corrimento, toma uma garrafada. Ali, naquela hora, a gente só faz um chá e dá pra menina tomar.
 
Professora, há todo um método, um empirismo nesse trabalho, não?
Silvéria Maria dos Santos – A arte de partejar já inclui tudo o que hoje a biomedicina faz. Partejar inclui a relação direta com a mulher, o uso de ervas medicinais, nas diferentes formas de implementar os efeitos terapêuticos, seja em banhos, seja em chás, seja em unguentos e massagens, vaporização, ambientação. E inclui também as rezas, os benzimentos, e os cantos das rezas. De uma forma geral, o que a ciência biomédica fez foi evoluir, a partir dos conteúdos das experiências das parteiras tradicionais. Nós negamos porque queremos os conhecimentos e saberes das parteiras tradicionais. Mas muito do que se faz hoje como técnica avançada é um aperfeiçoamento dessas práticas. As parteiras antigas diziam assim “você faz um chá, bota lá duas, três xícaras de água e um punhadinho de tal erva”. O que fizeram as ciências farmacêuticas? Testaram quanto de água, quantos gramas desse punhadinho e qual o princípio ativo daquela erva. Nós continuamos referendando a parteira tradicional, mas por uma questão de gênero há uma desqualificação de saberes femininos, dos saberes vinculados à experiência feminina – porque só as mulheres gestam, só as mulheres parem, só as mulheres maternam. Nossa sociedade tem uma base histórica e cultural de patriarcado e machismo.
 
Não existe qualquer correlação entre parto com parteiras tradicionais e maior índice de incidentes ou morte materna ou do bebê. Quanto às plantas citadas, uma busca simples pela internet e encontra-se trabalhos científicos com material sobre a marcela, o bacupari ou a raiz de perdiz, que corroboram, por estudos, o que a Dona Benedita diz por experiência.
 
Dona Benedita, a senhora não pegou mais menino porque as pessoas não estão procurando?
Benedita – Não, as pessoas não procuram. A gente não pode parar, enquanto tiver vida e saúde, é uma missão. Mas hoje a mulher prefere parir o filho dela na calçada do hospital esperando uma vaga lá dentro ou até parir no banheiro do hospital, ou no carro do bombeiro ou da polícia, como tem acontecido, do que procurar uma parteira pra parir no conforto de sua casa.
 
Não é o foco do trabalho deles, claro, mas quando um bombeiro ou um policial faz um parto é considerado herói.
Benedita – Veja! E a gente é considerada ignorante ou, no meu caso, que era uma menina, virei uma prostituta! O problema é o preconceito das própria mulher. A gente sempre diz pra fazer o pré-natal direitinho, pra ter acompanhamento médico… mas na hora de parir, como seria bom se ela tivesse o filho dela no conforto do seu próprio lar. Ela vai evitar infecções hospitalares, hospital inchado, uma série de coisas. E traz mais aconchego tanto pro filho quanto pra ela e pro marido. Em casa, ele vai parir junto com ela. Isso uniria as famílias ainda mais. Mas se prefere parir no hospital. Tem segurança? Tem, mas também tem risco. O povo deixou de acreditar numa coisa que vem desde que o mundo é mundo, que é a sabedoria popular. Eu participei este ano de um encontro das parteiras da região do Entorno de Brasília no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, participei da Marcha das Parteiras, em maio, mas como cobrar da sociedade se a política tá errada? E errada no mundo todo.
 
No mundo todo existem movimentos pela valorização do trabalho das parteiras, coisa que ganha força pela retomada do parto humanizado. No Brasil, o Ministério da Saúde tem o projeto Trabalhando com Parteiras Tradicionais, que busca articular o trabalho dessas mulheres com o dos agentes do Sistema Único de Saúde. Outro ponto que torna ainda mais importante o trabalho dessas mulheres é o número de partos cesáreas que há no país. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), as cirurgias deveriam corresponder a, no máximo, 15% dos partos. Aqui, a cesariana representa 43% do total realizado nos setores público e privado. Nos planos de saúde, chega a 80%, e, no SUS, atinge 26% do total de partos.
 
Professora, e quanto às políticas públicas?
Silvéria – A gente tem uma legislação, que chama Práticas Complementares, onde também se busca as práticas tradicionais e popularizadas. Desde orientais, acupuntura etc, a uso de ervas medicinais, grupos de autoajuda, coisa que as parteiras faziam em suas comunidades. A primeira coisa [pra valorização do trabalho das parteiras] é, quando a mulher engravida, que ela precisa ser avaliada, o cuidado do pré-natal. E isso não é simplesmente vinculá-la a uma instituição. É o Estado brasileiro possibilitar àquela mulher que está grávida ou quer engravidar saber qual sua condição de saúde pra viver esse processo da forma mais correta possível. Se ela tem doenças pré-existentes, doenças intercorrentes, se o seu ambiente é de risco ou não, se ela tem atividade profissional que pode trazer maiores fatores de risco, qual informação ela tem, porque as mortes maternas, neonatais ou perinatais estão ligadas às condições de vida da mulher e da família, como escolaridade, nível socioeconômico, hábitos nutricionais, sociais etc. Isso o Estado brasileiro tem efetivado, como cuidado – de certa forma, segundo Foucault, é um controle sobre a sexualidade das mulheres, principalmente, mas que promove a saúde das mulheres e da humanidade que, a partir de uma gestação saudável vai assegurar uma comunidade saudável. A Rede Cegonha faz isso – apesar de a gente abominar o nome, visto que nem no Brasil existe cegonha. A proposta da programação da rede é fortalecer o atendimento às mulheres e famílias durante o todo o processo sexual e reprodutivo, incluindo as parteiras tradicionais e as casas de parto, casas de gestância. A rede também qualifica as parteiras. Qualifica como? Integra a parteira tradicional, com seus saberes, no serviço de saúde, não pra ficar sob a égide do serviço, mas pra que este reconheça que essa mulher está cuidando de outra mulher em sua comunidade e aceitá-la como parte de uma equipe. Mas é uma questão que ainda vai levar anos, porque a mentalidade do nosso povo, na saúde, é de excluir o sujeito das práticas de cuidado.
De acordo com o Ministério da Saúde, por meio de convênio com o Grupo Curumim, o programa Trabalhando com Parteiras Tradicionais capacitou, de 2000 a 2010, cerca de 1.230 parteiras, em 14 estados, no Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste. Há quem veja as parteiras tradicionais como algo pitoresco ou resquício de um Brasil arcaico, sem entender que em um país continental, de assimetrias tão grandes, arcaicas são as condições de vida a dezenas de quilômetros de qualquer aparelho ou agente do Estado. O trabalho dessas mulheres é homérico e multiplicador. É tradição e vanguarda.
 
Em sua tese, a senhora cita a medicalização do parto e como isso colocou o trabalho das parteiras como crendice, algo inferior…
Silvéria – Exatamente. Há essa desqualificação das experiências que esses cuidadores tradicionais vivenciaram no seu próprio corpo ou no dia a dia, dos saberes que foram passados de forma oral, que não é uma tradição letrada, muito menos escrita. Mas essa tradição oral preza por considerar a pessoa em sua integralidade, mente, corpo, alma e coração.
 
Dona Benedita, como é o procedimento das parteiras?
Benedita – O procedimento é: primeiro, examinar a mulher, pra ver se ela está limpinha, higienizada pra passagem daquela criança. Eu tive casos assim da mulher ter até piolho na xereca… de última hora dizer “filha, nós vamo pegar aqui um aparelho de barbear, vamo fazer aqui uma toalete bem feita. Vai no banheiro e toma um banho bem tomado”. “Ah, mas vai nascer”. “Não, minha filha, não vai ser pra agora, suas dor tão vindo de hora em hora ainda. Ele não vai nascer no banheiro, não”. E quando acabava de parir tava que parecia uma princesa, tava limpinha, cheirosinha. Teve caso da gente chegar na casa e ter até de cortar as unha da mulher, que tavam grande, suja. “Olha, minha filha, você sabe que aqui debaixo da suas unha se esconde um bocado de verme, de germe, de bactéria?”. Vai parir um bebê, né? Até a cachorra quando vai parir se lambe todinha… E com a mulher em trabalho de parto, tem de se observar, através do relógio, toda parteira tem de usar um relógio, os batimentos da mulher. Aí, perguntar, “você fez o pré-natal?”. Se ela fez, pede o cartão, porque tá tudo anotadinho lá. Se ela disser que perdeu algumas consultas, vamos ver a pressão dessa mulher, vamos ver se ela teve corrimento, sangramento, perca de líquido, sim ou não. Porque tudo isso é preocupante. Esse bebê pode não ter virado na posição. Porque o bebê não vira de uma vez, ele vai mudando de posição que nem o Sol vai mudando de posição durante o dia, durante o ano, e o próprio útero vai ajeitando ela pra posição certa para o nascimento. Aí, de quantos em quantos minutos tá vindo a contração? Não é simplesmente chegar, deita aqui, que eu vou lhe examinar, e como fazem nos hospitais, tome dedo. Aí, vamos marcar no relógio e na hora que for uma contração forte ela vai escolher a posição melhor. Nós já estamos com o ambiente preparado pra isso. Cama limpa, quarto limpo, bem higienizado, um tapete, se for o caso de ela querer se deitar no chão, ou uma esteira, um lençol que seja. Não precisa ir tocar lá pra saber quanto de dilatação ela tá. Porque é a contração que faz, é o útero que tá empurrando o bebê. E pelo tempo das contração eu sei que eu tenho de botar aquela mulher na posição porque na próxima contração ela não vai só sentir dor, ela vai fazer força pra botar o neném pra fora. Isso pode durar três, quatro, seis horas, até 24 horas. E a parteira tem de estar ali. Antes as pessoas chamavam a gente pra fazer esse acompanhamento. Hoje, é só na última hora.
 
O ofício de parteira tradicional vai acabar?
Benedita – Olha… não sei nem como te responder. Aqui na região tem muitas, atuantes ainda. Mas dentro daquela realidade, se chamarem, elas vão, mas procuram cada dia menos.  Há uns anos atrás eu participei de um encontro e vierem parteiras de Minas Gerais, de Tocantins, e você vê que em alguns municípios, em alguns lugares há um interesse em fazer essa união entre as parteiras e os centros de saúde… mas não é o caso de Goiás… pelo menos na minha região, não.
 
Silvéria – Não vai acabar. Tem uma parteira pernambucana, que já tem quase 80 anos, Maria dos Prazeres, de Jaboatão dos Guararapes, periferia do Grande Recife, que diz “enquanto tiver mulher gestando, tem parteira pra partejar”. É uma realidade. A gente tem um número absoluto de partos hospitalares muito alto, mas é crescente, na última década, o número de mulheres que procura o parto individualizado, o parto acompanhado em casa, seja por parteira tradicional, seja por parteira diplomada. Estamos em mudança de paradigma, de pensar. Primeiro no que é saúde, depois, o que é gestação-parto-nascimento. E cada vez mais mulheres querem um parto mais natural, mais simplificado possível. O que eu quero dizer por parto natural, parto simplificado, individualizado? É o processo de cuidado durante o parto, do gestar, parir, nascer, que inclui a mulher mais a criança como sujeitos ativos nesse processo, mas onde a mulher decide o que é melhor pra ela, como, onde e com quem ela quer viver essa experiência.
 
Dona Benedita, qual o parto mais difícil que a senhora fez?
Benedita – Foi o da minha própria irmã, porque o bebê dela estava de banda. Porque o bebê ou vem emborcado ou vem de barriga. O dela tava atravessado. Então, quando a menina começou a nascer, que eu disse “faça força, minha irmã”, o que apontou foi a pontinha da orelha da menina. Eu fui com estes dois dedos aqui [mostra o indicador e o médio] e fui mexendo assim [faz um movimento em forma de meia-lua em direção ao centro], e ia dizendo pra minha irmã ir respirando. Com outra mão na barriga dela. Mas tudo isso sem introduzir meus dedos na vagina dela… aí, esperamos a contração, pra ela fazer força. Aí, é só puxar a criança com esses mesmos dois dedos [mostra como eles se encaixam embaixo do maxilar]. Durou umas três, quatro horas tudo… e o nascimento, uns 20 minutos. Isso foi em 1968.
 
E ela saiu na posição certa?
Benedita – Saiu com o narizinho apontando pra cima, que não é o ideal. Mas na hora que saiu a cabeça, que começou a apontar os ombrinhos, eu já tava aqui tirando a secreção. Porque de cabeça pra cima, se a criança engole aquela secreção é problema pra vida toda. É o que gera bronquite, é o que gera asma, e se ela engolir, aspirar, aí pode dar até problema no cérebro…
 
Como é trazer uma criança pro mundo?
Benedita – Ah, a sensação é agradável demais, é de alegria, de dever cumprido. Olhar praquela mãe, ver ela feliz com seu filho, olhar pros olhos da família e ver o alívio. Porque toda mulher grávida tem duas preocupação: uma é que ela não vai aguentar ter o filho e vai morrer no parto; a outra, que o filho nasça com deficiência. Por isso que muita mulher chora pra fazer o parto cesárea, acha que cesárea é bom… e agora que parece que os médico chegou à consciência de que a mulher parir seu filho no parto normal é melhor pra tudo, pra recuperação da mulher depois, pra criança, que precisa daquele primeiro esforço. Porque ela vai ser espremida, vai fechar a moleirinha, ela já nasce esperta, abre os bracinhos, abre as perninhas. No parto cesárea, não. O bebê nasce mole, tem de dar palmada nele pra chorar. Olha, eu acho que eu tive só dois partos que eu tive que dar uma palmadinha no bebê pra ele chorar. O resto, quando botava a cabecinha pra fora, já “ué, ué”, e eu “bora, venha chorar aqui fora”.
 
*este texto todo é sic (assim mesmo)*

*este texto pode ser reproduzido, em sua totalidade ou em parte,
desde que sem fins lucrativos e citada a fonte*

 
É importante lembrar que o objetivo aqui é traçar o perfil de trabalhadores do Brasil e que seria impossível esgotar o assunto abordado, tendo em vista todos os enfoques possíveis. Por isso, além dos links ao longo do texto, segue abaixo mais uma listagem para quem quiser saber mais (e melhor). Não há endosso/crítica aos conteúdos.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

3 Comentários

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  1. Gostei, menos  pelo vies

    Gostei, menos  pelo vies africano do texto..confesso que nao li toda a entrevista de Dona Benedita, mas como caucasiano, olhos verdes e nascido, como meus tres irmaos,  de parto natuaral, rendo honras…

     

     

     

  2. Mãe Preta

    Nossa como ela se parece com Mãe Preta. Este era o nome pelo qual gentilmente chamava a parteira que pegava os meninos da região, entre eles, eu. Década de 50 do  século passado. Sertão. Aos 10 anos de idade saí do sertão e vim para uma pequena cidade e nunca mais vi Mãe Preta. Até hoje tenho-a como minha segunda Mãe. Era um apreço mútuo. Ela era tecelã e rodava todo o sertão, a pé, “pegando” bebês, daí que ela era também conhecida como nossa Mãe de Pegação. Fico imaginando quantos de nós foi ninado por ela e, ao mesmo tempo, deixaram-na para trás como se fosse nada ao mesmo tempo em que foi tão importante. Nunca mais tive notícia dela e, como era muito criança nem tive a atitude de pedir para meus pés para dar um jeito de vê-la. Talvez ela nunca nem tenha saído do sertão e ali mesmo tenha morrido. E exercia seu ofício de graça, como se fosse obrigação, naquela época nem existia essa coisa de Estado dando ajuda a essas nossas segundas mães que faizam tudo por nada, no máximo um prato de arroz mas nos partos elas estavam ali, prontas para atender. No quarto da parturiente não podíamos entrar, de fora sentíamos o cheiro de ervas que Mãe Preta queimava, e o caldo de galinha para a acamada. Quando podíamos ver nosso irmãozinho ele já estava pronto para sorrir. Tudo por conta de Mãe Preta. De graça e além disso ainda acompanhava o nosso desenvolvimento como se fôssemos seus filhos, foi ela que teceu meu cobertor, lembro que me entusiamei muito quando ela me disse que era só eu lhe entregar os fios que a tecelegem ficava por conta dela, como presente, daí que empenhei-me bastante para plantar o algodão, colher, descaroçar, bater sobre uma almofada e preparar os fios num fuso, dei os novelos de linha para ela e em poucos dias ela chegou com o cobertor prontinho. Ah Mãe Preta, como nós e o mundo fomos injustos contigo

  3. “viés africano”…

    Não faço ideia do que o comentário do Ledour quer dizer a respeito de um suposto ‘viés africano’ do texto…

    Fiz questão de dizer o óbvio – o fato de Dona Benedita, a entrevistada, ser negra – porque é um fato censitário, a maioria das parteiras tradicionais do país – que foram registradas – é formada por negras ou índias.

    No entanto, por meio da história de vida desta parteira tradicional em especial, acredito ter traçado um panorama da profissão hoje, com enfermeiras-obstetras – ‘estudadas’ – também atuando.

    Mas atuando de forma a abarcar o conhecimento dessas mulheres, comprovando, como a doutora em História e professora da UnB Silvéria dos Santos afirma, a importância desses saberes.

    Não há em momento algum do texto – nem por parte das entrevistas, nem por mim – qualquer afirmação no sentido de que não se deva procurar cuidados médicos ou não se deva fazer o pré-natal… se acaso isso é o que ele quis dizer por ‘viés africano’…

    Abraços, 

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