Pesquisa afirma que Brasil prende em excesso

Do Pensando o Direito

Pesquisa inédita revela que Brasil prende em excesso

“Criminalização artificial é negócio lucrativo”, diz autor

 

Rogério Dultra, professor da Universidade Federal Fluminense, coordenou uma equipe de cinco doutores e um doutorando das áreas de direito, história e ciências sociais em uma busca exaustiva por dados que pudessem gerar estatísticas confiáveis para a elaboração de leis e a tomada de decisões politicas sobre o procedimento criminal e suas consequências.

Após imergirem nos registros dos estados da Bahia e Santa Catarina, descobriram que a prisão provisória quase sempre é longa demais, graças à ausência de uma noção clara na lei da categoria “duração razoável da prisão preventiva”, e que, igualmente, não existe um prazo máximo estabelecido para a prisão cautelar. “Centenas de milhares de pessoas mantêm-se presas sem culpa provada. Uma parcela considerável é absolvida”, diz Dultra. “Como não envolvem violência”, segue o pesquisador, que investigou os crimes furto, roubo e tráfico de drogas – que “poderiam ser enquadrados facilmente como bagatela”, segundo ele -, esses indivíduos deveriam no mínimo responder ao processo em liberdade”.

Para o professor a razão para esse excesso de controle é criminalizar ilegalmente uma parcela da população – “geralmente jovem, negro, pobre, réu primário” – para movimentar um lucrativo sistema repressivo: “Quanto maior o sistema carcerário, maior será a quantidade de licitações, financiamentos e negócios realizados”.

A pesquisa de Dultra tem ainda uma segunda conclusão adjacente: os pesquisadores enfrentaram, além das pilhas de processo analisadas, a falta de preparo do Judiciário para a coleta dos dados, o que chegou a ser decisivo no caso do Rio de Janeiro, excluído da pesquisa. Mesmo nos outros estados, a burocracia acresceu três meses aos seis inicialmente planejados para a pesquisa.

Rogério Dultra falou ao Projeto Pensado o Direito.

PPD. Por que a escolha dos três estados alvo da pesquisa? Como você avalia a falta de acesso no Rio de Janeiro?
RD. Os três estados constantes do objeto da pesquisa integram diferentes regiões político-administrativas da federação, apresentam populações de grandeza diversa, e uma análise preliminar dos dados da população carcerária no Brasil sugeria a existência de boas razões para a comparação da sua evolução quantitativa.
No Rio de Janeiro, não se tratou propriamente de “falta de acesso” aos dados, mas de demora na liberação dos arquivos para a realização da pesquisa. Na verdade, essa não é uma peculiaridade do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, mas uma característica geral do Judiciário brasileiro: a ausência de previsão para o acesso regular a pesquisas. Pesquisas de agentes externos à instituição significam na prática uma alteração sensível no cotidiano dos funcionários. Ou seja, o Judiciário se ressente de planejamento para a transparência e compartilhamento de dados para fins de pesquisa.
Por fim, a exclusão do Rio de Janeiro não implicou menor impacto da pesquisa, dado o fato de que nem a Bahia, nem Santa Catarina haviam sido até hoje objeto de um estudo com esse interesse.

PPD. Sua pesquisa demonstra que o Judiciário brasileiro prefere justificar seu funcionamento pela lógica do controle, da segurança e do excesso de punição, em lugar do direito ao contraditório, à presunção de inocência ou até da reinserção social. Como você analisa essa conclusão? 
RD. Os direitos e garantias penais e processuais previstos na nossa Constituição e nos tratados e convenções de que o Brasil é signatário dificultam a atuação repressiva do Estado. Mas, o sistema vem usualmente – embora de modo ilegal e inconstitucional – violando esses direitos e garantias. Centenas de milhares de pessoas mantêm-se presas sem culpa provada e, em geral, como mostra a nossa pesquisa, sem um conjunto probatório mínimo que sustente processualmente a prisão.
O sistema judicial se burocratizou e se automatizou de uma forma que o juiz de primeiro grau não se sente diretamente responsável pela decretação da prisão provisória, visto que esse momento é apenas um elo de um longo conjunto de medidas repressivas que operam sem levar em conta direitos básicos. Aquilo que, pelo viés jurídico, é uma aberração – prisões sem materialidade, fundamento ou necessidade –, no cotidiano do foro é visto e apresentado, em geral, como um simples caso padrão de um indivíduo criminalizado: geralmente um jovem, negro, pobre, réu primário e preso em flagrante por crimes que poderiam ser enquadrados facilmente como bagatela.

PPD. É possível classificar o excesso de prisão provisória como um ato arbitrário do juiz que antecipa uma pena que pode nem ser devida?
RD. Infelizmente, a conclusão estatística da pesquisa é que uma parcela considerável de indivíduos que respondem ao processo presos, nos crimes de furto, roubo e tráfico de drogas, é absolvida ao final do processo. Como a maioria dos tipos penais investigados não envolvem violência, eles deveriam no mínimo responder ao processo em liberdade. Não o fazem, em geral, pela inconsistência da defesa. Em muitos estados, as Defensorias Públicas, apesar de existirem, têm serviços precários e pouco individualizados – como no caso de Santa Catarina.
Além disso, como apontaram outras pesquisas empíricas, até mesmo alguns defensores públicos acabam adquirindo uma perspectiva criminalizadora e/ou burocrática, colaborando para que os réus respondam aos processos presos.

PPD. E quanto ao excesso de prisão cautelar? O que ele indicaria?
RD. Principalmente que não há uma clara e taxativa definição legal do que represente o “excesso” de prisão. O legislador brasileiro tem optado, na contramão de outros países do Ocidente, em não determinar, em número de dias ou meses, quando deve cessar a cautelaridade. Em geral, fixa-se o prazo em até 180 dias. Mas por não termos uma legislação clara acerca dos prazos, a prisão estende-se no tempo para bem além do razoável.
Os dados da pesquisa indicam que, ao lado da Justiça, a Polícia Judiciária e o próprio Ministério Público são instituições que respondem amplamente pelo atraso do procedimento criminal e que, assim, contribuem decisivamente para a irrazoabilidade do tempo da prisão antes do julgamento e mesmo antes do processo ser iniciado. Assim, a média do tempo de prisão policial e de prisão processual nos crimes estudados é de 437 dias na Bahia e de 177 dias em Santa Catarina. Além disso, a maioria absoluta dos réus respondem presos ao processo (91,6% na Bahia e 80,4% em Santa Catarina).

PPD. Quais as consequências desse excesso de prisão individualmente e para o resto da sociedade?
RD. A criminalização artificial – porque produzida em geral de forma ilegal – de parcelas significativas de jovens negros das periferias das grandes cidades é um negócio extremamente lucrativo, que movimenta de forma perversa as verbas públicas da área de segurança. Quanto maior o sistema carcerário, maior será a quantidade de licitações, financiamentos e negócios realizados. Isso significa que o sistema repressivo acaba por se orientar pela lógica do lucro e não pelos benefícios que o seu funcionamento correto poderia trazer para a sociedade.
Por outro lado, os indivíduos criminalizados dificilmente encontram retorno seguro para uma vida longe do “desvio”. As suas famílias são diretamente atingidas seja psicológica, social ou economicamente pela prisão e mesmo quando aptos para o trabalho, os ex-detentos são estigmatizados e percebidos como ameaça social. Em termos sociais, a atividade repressiva opera como uma geratriz de insegurança, visto que a criminalidade é amplificada artificialmente pelo seu funcionamento.

PPD. Como a pesquisa se coloca nesse momento de intenso debate sobre o agravamento, por uma possível redução da maioridade penal, das condições de um sistema carcerário já inchado?
RD. As crianças e adolescentes de baixa renda – os reais atingidos por medidas repressivas – já são, na prática, criminalizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Hoje sofrem medidas de reclusão por até três anos e não têm garantias processuais penais, como remissão da pena pelo trabalho, sursis ou modificação do regime de cumprimento simplesmente porque, por um jogo retórico, a “medida socioeducativa” de internação não é considerada juridicamente uma penalidade, embora o seja na prática.
A redução da maioridade penal é um contrassenso lógico e estatístico. As estatísticas demonstram que crianças e adolescentes não são uma ameaça real à integridade física dos cidadãos brasileiros. São, ao contrário, vítimas frequentes – especialmente de violência sexual. Assim, o conjunto das campanhas sobre violência que centra fogo contra as crianças e adolescentes, exigindo o recrudescimento de políticas repressivas para esta faixa da população, é desinformada e, inclusive, irresponsável. Indiretamente, essas campanhas estimulam e legitimam o oportunismo da legislação de comoção, provocando a substituição de políticas públicas variadas de caráter includente por um direito penal majorado e francamente excludente.
A administração da desigualdade social e da pobreza migra, portanto, da construção legislativa de um Estado de Bem-Estar para um Estado que é mínimo em termos de políticas sociais e máximo em políticas criminais. E, obviamente, a ampliação da influência do direito penal não resolve nem o problema social, nem o problema da violência. Ela os amplifica.

PPD. De que forma você espera que a pesquisa contribua para a melhoria desse sistema?
RD. A pesquisa indica a necessidade urgente de reformas legislativas, institucionais e de políticas públicas que resultem, sobretudo, no estabelecimento, em lei, de um prazo máximo para a prisão cautelar. Dessa medida básica, que alinharia a legislação brasileira à de outros sistemas que já regulamentaram a matéria, decorrem outras, também fundamentais, como: o estabelecimento, ao longo de todo o procedimento criminal, do habeas corpus como remédio mobilizável contra as violações dos prazos legais; a restrição taxativa da utilização da prisão preventiva nos casos em que a prisão não decorre do pedido formulado na denúncia; uma maior dotação orçamentária e o fortalecimento das equipes profissionais das Defensorias Públicas estaduais; uma melhor administração do fluxo da informação entre os diversos setores do sistema penal; o estabelecimento de metas de desencarceramento resultantes do aprimoramento do trabalho conjunto das instituições do sistema penal, notadamente nas experiências dos mutirões carcerários; a efetiva informatização dos trâmites burocráticos e processuais, que contribuiriam para evitar o “tempo morto” dos processos. E a ampliação da transparência dos dados mantidos pelo Judiciário e pelos demais atores do sistema penal, o que permitiria a realização constante do monitoramento desse sistema, no limite condicionando a aprovação de novas leis na área à elaboração de estudos técnicos de impacto sobre o seu funcionamento.

Redação

7 Comentários

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  1. Eu cansei dessa demagogia

    Eu cansei dessa demagogia penal, que só fala em aumento de pena, em meados da década de 90. Enquanto não se reformar o código de processo penal e, sobretudo, as polícias, mais três décadas serão perdidas, multidões serão moídas e a brutalidade só aumentará. Essa é uma das poucas certezas que tenho.

  2. O Brasil prende em excesso,

    O Brasil prende em excesso, não é porque matam em excesso, roubam em excesso……

    A descontrução da operação lava jato pauta a esquerda.

  3. O Brasil prende em excesso,

    O Brasil prende em excesso, não é porque matam em excesso, roubam em excesso……

    A descontrução da operação lava jato pauta a esquerda.

  4. Na contramão da História

    No midiatico e idilico paraiso estadunidense as vozes , inclusive republicanas,  pedindo a revisão do sistema carcerário. Já aqui vão implantar o Minority Report.

  5. Para o professor a razão para

    Para o professor a razão para esse excesso de controle é criminalizar ilegalmente uma parcela da população – “geralmente jovem, negro, pobre, réu primário” – para movimentar um lucrativo sistema repressivo: “Quanto maior o sistema carcerário, maior será a quantidade de licitações, financiamentos e negócios realizados”. 

     

    Isso é teoria conspiratória.

    O sistema carcerário está falido, quebrado, as penitenciárias são masmorras medievais caindo aos pedaços e superlotadas. Se houvesse algum grau de verdade na hipótese do pesquisador teriamos de ter muitas penitenciárias novas e até vagas ociosas fazendo a alegria de construtoras e afins. Esse caos é em grande parte incompetência mesmo, e em outro falta de interesse político.

    O que temos é, por um lado, um código penal de mentalidade colonial e patrimonialista que manda prá cadeia quem rouba um cacho de bananas ou duas peças de carne, mas que agrada os advogados criminalistas. Quanto mais penas mais clientes em potencial batendo às suas portas. Por isso o lobby dos criminalistas empaca a reforma desse famigerado código que tem paradeiro desconhecido em brasília, ninguém sabe ninguem viu.

    Por outro lado, ao contrário do que a tese do pesquisador postula, os governantes tem pouquíssima propensão para investir em algo que não lhes dê retorno eleitoral imediato. E gastar milhôes na manutenção adequada dos presídios além da construção de outros novos definitivamente não dá ibope, bem ao contrário. Logo por todo lado perguntarão por que gastar milhôes do suado dinheiro dos contribuintes com criminosos se falta dinheiro para novos leitos hospitalares, medicamentos, novas escolas, merenda etc etc etc. E a velha escolha de sofia se repete. O sistema prisional vive sempre no limiar da inanição de verbas.

     O pesquisador está gastando munição e dando tiro na água, ou pior, criando um culpado conveniente que só vai desviar a atenção do problema central.

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