Precisamos, mais do que nunca, discutir educação sexual, por Márcio Berclaz

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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do Justificando

Precisamos, mais do que nunca, discutir educação sexual

por Márcio Berclaz

O recente debate e mobilização sobre a “cultura do estupro”, bem como a relevância de uma perspectiva democrática respeitosa à diferença de gênero, precisam ensejar reflexões que transcendam a exploração pontual e sensacionalista do lamentável episódio criminoso ocorrido na zona oeste do Rio de Janeiro.

As assustadoras e impactantes estatísticas das múltiplas formas de violência contra a mulher, em especial as de natureza sexual, precisam ensejar indignação capaz de propiciar a construção de um diagnóstico elucidativo sobre causas a partir das quais torna-se necessário revisar e elaborar correspondentes políticas públicas. Políticas públicas que existem para satisfazer direitos fundamentais e que são os principais veículos que justificam a existência e ação do Estado.

Quais são os estudos que existem sobre o fenômeno da violência e abuso sexual? Onde e em que situações mais comuns estes eventos criminosos ocorrem? Qual o perfil das vítimas? Quais as medidas passíveis de serem adotadas para prevenir tais fatos e também para resguardar instrumentos de defesa das potenciais vítimas? Qual o suporte e acompanhamento terapêuticos disponíveis, em especial no sistema de saúde pública? Qual o papel da família e da escola? Quais as perspectivas e desafios contemporâneos em relação a esse tema?

Sob o ponto de vista criminológico sabe-se que a simplificação do aumento simbólico de penas não é solução para nada, até mesmo porque os crimes sexuais já são equiparados a hediondos e recebem punição que está longe de ser branda. Sequer encontramos uma solução adequada para a presunção do estupro de vulnerável que, em determinadas situações, pode se mostrar absolutamente desproporcional e descabida.

Parte do problema talvez esteja, de fato, na escuta interdisciplinar dos motivos e causas que concorrem para a deturpação patológica da sexualidade que, antes de tudo, é uma necessidade e um direito. A paranoia da pedofilia é bom exemplo de que o caminho parece ser outro do que até aqui foi trilhado.

A sexualidade como competência e necessidade humana, como objeto da ordem do desejo, precisa ser desenvolvida no tempo físico e psicológico de cada um, existencialmente, com responsabilidade e respeito pelas escolhas da condição de estar afeto e de ser-aí no mundo (Heidegger), preservando a autodeterminação. Mesmo quando não for o caso do seu exercício pleno, precisa-se de uma gestão da autoridade parental de modo responsável e dialogal. A sexualidade é um desenvolvimento, um processo cuja moratória, ou seja, o conjunto de suspensões e interrupções, deve ser estabelecida com a proporção devida, mediante diálogo e esclarecimento, sob pena de incentivar-se que algo a ser desempenhado de modo natural, como parte e evolução da vida, torne-se um problema recalcado e obstruído, sempre com consequências das piores.

Há de se buscar uma saída que, como ensina Boaventura de Sousa Santos, seja menos regulatória e mais emancipatória.

Como medida estruturante para um cenário melhor, acredita-se que esses lamentáveis episódios reforcem a necessidade de se perceber que a educação sexual precisa começar, de fato, na escola, o quanto antes, com abundante e qualificada informação, inclusive como instrumento de defesa, longe de preconceitos de caráter religioso ou moral incompatíveis com o tempo presente. Parece claro que “a compreensão do fenômeno sexual transcende o plano familiar e merece enfrentamento didático competente no currículo escolar”, o que em último grau reporta à previsão do artigo 29 da Convenção Internacional dos Direitos da Criança da ONU, normativa internacional a partir da qual é fundação da educação preparar os sujeitos de direito para assumirem uma vida responsável numa sociedade livre, com espírito de compreensão, paz, tolerância e igualdade de sexos. O moralismo não secularizado e, não raras vezes, homofóbico, definitivamente, nada contribui para este debate – ainda que dele, lamentavelmente, o parlamento e mesmo a rede de proteção da infância e juventude esteja cheio.

Há de se respeitar, na filosofia de Foucault, a história da sexualidade nas suas múltiplas e importantes dimensões. Há de se buscar uma saída que, como ensina Boaventura de Sousa Santos, seja menos regulatória e mais emancipatória. Há de se abrir espaço para uma cultura de menos ódio, mais tolerância e onipresente respeito e alteridade.

Como já dito em outro texto sobre o assunto, “a sexualidade é algo presente e inerente à existência humana cujo elemento fundante está focado no desejo e na busca do prazer. Não por acaso Freud definiu a sexualidade como a satisfação mais forte do ser humano”; na mesma linha, “coube aos profícuos estudos de Foucault a explicitação retrospectiva da sexualidade como instrumento regulador da vida social determinante da distribuição e organização de mecanismos de poder”.

Definitivamente, não se retira a sexualidade de ninguém e não há – nem mesmo haverá – como nada substituir o seu lugar dentro do desenvolvimento humano. A sexualidade começa e termina a partir de um sujeito. Enquanto for assim, há de se apostar em mudanças de atitudes e em transformação, sem que isso implique em naturalizar a barbárie ou aceitar o que é desde sempre inaceitável.

Márcio Berclaz é Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Doutorando em Direito das Relações Sociais pela UFPR (2013/2017), Mestre em Direito do Estado também pela UFPR (2011/2013). Integrante do Grupo Nacional de Membros do Ministério Público e do Movimento do Ministério Público Democrático. Membro do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL) da UFPR. Autor dos livros “Ministério Público em Ação (4a edição – Editora Jusvpodium, 2014) e “A dimensão político-jurídica dos conselhos sociais no Brasil: uma leitura a partir da Política da Libertação e do Pluralismo Jurídico (Editora Lumen Juris, 2013). 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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