Reinar ou morrer, por Daniel Afonso da Silva

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Após a humilhação da noite de Varennes, o rei Louis 16 seria submetido ao ruidoso processo que decidiria que seu pescoço não deveria mais sustentar sua cabeça no seu corpo. O veredicto dessa decisão foi apresentado à Convenção por meados de dezembro de 1792. O jovem Saint-Just, amigo de Robespierre e fiador do novo regime dos cidadãos, teve papel de importância nessa decisão. Em seu famoso discurso de 13 de novembro de 1792 lembrara aos seus contemporâneos que não se reina ou governa inocentemente.

Reiterando toda tradição política disponível, fazia perceber que reinar e governar sempre envolve imenso mistério. O mistério do poder selado na solidão da decisão. Para o contexto da revolução, seu argumento fora preciso. Um rei deve reinar ou morrer.

Mas sua fórmula não se esgotou na revolução. Em regimes democráticos, antigos e modernos, o impasse – governar ou morrer – jamais deixou de existir.

O governante, em cargo eletivo alto ou baixo, destoante do decoro da função político-pública tende a ser assassinado politicamente. Seja por seus eleitores ou pares.

O rei francês deveria morrer – e morreu – por não ter mais lugar na sociedade que a revolução construiu. O significado de sua realeza vinha se esmaecendo desde tempos remotos. Mas com a tomada da Bastilha, a legitimidade de sua função foi às rápidas desaparecer.

Como no antigo regime inexistia distinção entre o homem e o rei – mesmo que ele, o rei, tivesse dois corpos –, seu destino físico, pessoal e individual e real, não poderia ser outro que também desaparecer. Um rei, dizia Saint-Just, não é alguém normal, ordinário ou banal. Se não reina, não vive.

Um político de hoje, sujeito ao sufrágio universal não celestial, tem semelhanças com o rei. Ou bem encarna a democracia ou deve ser eliminado por ela. Sendo assim, um político, tal qual um rei, no exercício de sua função, deixa ou deveria deixar de ser uma pessoa normal.

No limite da avaliação, o eleitor, em geral, tende a não eleger – e em elegendo, tende a não respeitar – um político sem virtudes. Um político que se queira normal. O eleitor, consciente ou intuitivamente, quase nunca elege políticos que se revelem pessoas, no geral e na essência, menos virtuosos que ele próprio eleitor.

Em se tratando do cargo máximo de qualquer nação, esse axioma vira absoluto. Segue eterno candidato o presidenciável que se apresenta como uma pessoa normal, ordinária, banal.

O presidente François Hollande tentou subverter a regra. Lançou-se candidato a presidência da França advogando ser normal e propondo, em eleito, ser um presidente normal. Foi eleito. Menos por sua capacidade de convencimento que pelas intransponíveis contingências, tem no topo a brutalidade da crise financeira de 2008, imposta ao presidente Nicolas Sarkozy. Resultado: a presidência do homem normal, após dois anos e meio de “presidência normal”, vem sendo a mais impopular e instável desde que o general De Gaulle fundou a mais recente república.

Os lances obscenos do livro obsceno da ex-mulher do presidente Hollande, traída, ressentida e humilhada como primeira-dama da França, apenas demonstram os percalços dos homens normais. Merci pour ce moment de Valerie Trierweiler serve não simplesmente ao voyeurismo e ao onanismo publicitários sensacionalistas. Malgrado suas difusas intenções, ajuda a demonstrar as incongruências de uma pretensa “presidência normal”, feita por homens normais, banais e ordinários.

Na conferência de imprensa da última quinta-feira, 18 de setembro de 2014, o presidente François Hollande fora forçado a reconhecer que “c’est dur d’être président”. E, portanto, é duro governar. O ofício de governar, claramente, não é para normais. O presidente francês – muito bem formado e experimentado pela vida político-pública francesa – sempre disso soube. Seu apelo eleitoral foi de sensação. Agora não tem mais volta.

Homens normais – o que, por certo, jamais fora o caso do presidente Hollande – tendem a querer governar com os melhores.

Maquiavel dedica várias passagens d’O príncipe explicando a essência de se governar com os melhores. Sim, diz o florentino, é fundamental governar com os melhores. Mas nada na vida, tampouco no mestre da renascença, se faz tão simples e lógico como se intui.

“Quem se torna príncipe apenas pela fortuna pouco se esforça, evidentemente, mas a preservação é muito penosa”. Essa sentença abre o capítulo 7 de O príncipe que, em seu primor e crueza, acentua que “os homens ou se conquistam ou se eliminam”. Mesmo e, sobretudo, os melhores.

Ramiro de Orco tinha muito prestígio, competência e poder. Era um dos melhores do governo do duque de Romanha. Sua notoriedade ultrapassava as fronteiras. Um belo dia, amanheceu, em praça pública, partido ao meio. Ao seu lado, uma faca e um pau. “A ferocidade do espetáculo – diz Maquiavel – provocou no povo, a um só tempo, satisfação e perplexidade”. O mandante do crime tinha sido o próprio duque. Razão: não se governa plenamente com os melhores.

José Carlos de Assis, esse fino observador da vida política brasileira, desmascarou absolutamente a intenção da candidata Marina Silva de governar com os melhores em seu “O compromisso de Marina de governar com os melhores” (GGN, 27/08/2014). Por isso, depois do primeiro debate entre os presidenciáveis, essa expressão foi desaparecendo do vocabulário da candidata.

Por seguir bem cotadas nas pesquisas de intenção, a fúria de seus oponentes parece não ter fim. De modo obsessivo, quase todos eles vêm adesivando – muita vez com desrespeito, imperícia e sem propriedade – em Marina Silva a condição de pessoa normal, ordinária e banal.

Não se chega aonde Marina Silva chegou e vem chegando, no Brasil ou alhures, sendo uma pessoa banal, ordinária, normal. Evidente que Marina Silva não é uma pessoa normal. Mas caso seja eleita presidente terá a contínua demanda de reconhecer, pública e intimamente, que não se governa de modo inocente ou impune. Do contrário, terá de muito lutar para, politicamente, não morrer.

Daniel Afonso da Silva é professor da Universidade Estadual da Paraíba.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

4 Comentários

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  1. Se Collor não morreu, e pelo

    Se Collor não morreu, e pelo contrário, dá vivinho da silva, Marina sabe que poderá sobreviver, apesar de tudo de mal qu vier a fazer no seu provável governo.

  2. o sistema políico

    o sistema políico brasileiro,

    (sem uma consituinte proposta por lula e

    dilma com o apoio da cnbb, se não me engano)

    não mudaráa de uma hora para outra.

    é claro que esse  papo de governar

    com os bons é maquiavélico

    (do autor,não  do que se deduz sobre ele)

    e confrontará com a realidade política

    brasileira do sécuklo 21,

    um emaranhado de forças políticas

    hegemonizadas mais por interesses regionais

    que confluem para o nacional (pmdb, etc)

    do que dos verdadeiro interesses nacionais

    que deveriam confuir para as realidades locais

    a serem transformadas. .

  3. “não se governa plenamente com os melhores.”

    Eh uma frase terrivel. Mas tão verdadeira… Vargas sabia disso e o usou muito em seus mandatos. E penso em Brizola, que é a exceção à regra. Acho que foi o unico governo a ter colocado os melhores de sua época ao seu lado. 

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