Repeteco de assassinatos da ditadura militar, por Marcelo Auler

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Revoltada com o que aconteceu, a população de Foz do Iguaçu programa uma manifestação sábado (04/02) na Ponte Internacional da Amizade.

Por Marcelo Auler

É um repeteco do que ocorreu no período da ditadura militar escancarada, plagiando Elio Gaspari, com Vladimir Herzog (outubro de 1975) e Manoel Fiel Filho (janeiro de 1976). Só mudaram a forma. O que antes foi enforcamento, agora seria overdose. A morte de Ademir Gonçalves Costa, de 39 anos, sábado (28/01), na guarita da Receita Federal, na Ponte Internacional da Amizade (PIA), em Foz do Iguaçu (PR), está sendo apontada como suicídio, ainda que não usem esta palavra. Isso, apesar dele ter sido dominado por ao menos seis homens, jogado ao chão e algemado com os braços para trás. Esta versão, como se verifica abaixo, surgiu na voz de um trabalhador na PIA (talvez, vigilante) ao descrever o episódio a outro interlocutor cuja voz não aparece. Pela descrição dos fatos, o falecido seria um verdadeiro contorcionista. Afinal, mesmo dominado e algemado, conseguiu pegar “entre as pernas” (no áudio a expressão é outra) “um papelote de droga”, envolvido em saco plástico, levá-lo à boca, rasgar o saco e engolir a droga e parte do plástico. Diz ainda que o “Receita” (forma como se refere aos servidores da Receita Federal) retirou um pedaço de plástico da boca, para ele não “se afogar” (sic). Confira nestas  partes das transcrições dos áudios:

“… o cara se matou por causa de mulher, bicho. Ele… ele… não tem… ninguém tem culpa lá, a gente só imobilizou ele. E ele estava tendo convulsão dentro da guarita (ininteligível) por causa da droga que ele tava. Ele engoliu, né, cara. Overdose, nego. Ainda até o “Receita” pegou o plastiquinho e tirou da boca dele. Pra ele não se afogar, né? com o plástico (…) e ele se debatendo, assim, sabe? Mesmo algemado, ele resistindo. Então… o cara estava totalmente fora de si, cara? Tava muito louco, muito nervoso, muito agitado (…) Aí, nós imobilizou ele e ele não deixava de jeito nenhum virar ele de barriga pra cima. Ele estava escondendo alguma coisa dentro da cueca, no saco, ali. E era o papelote de droga. Aí nós deixou ele lá na… nós deixou ele lá na … na guarita e ele deu um jeitinho, mesmo algemado, de pegar o papelote que estava no saco dele e colocou na boca e engoliu, porra. Daí o plástico ele cuspiu assim, o plástico, estava se afogando com o plástico”.(sic)

Esta versão poderia ser até desconsiderada, uma vez que o áudio não tem identificação. O Blog conhece quem a enviou. E nele confia plenamente. Mas desconhecemos como este áudio surgiu. De qualquer forma, não parece forjado. Porém, a versão acima ganha verossimilhança quando a própria Receita Federal de Foz do Iguaçu a assumiu em nota divulgada pelo site MassaNews, que vem fazendo exemplar cobertura deste caso totalmente esquecido e ignorado pela chamada grande mídia corporativa do “Sul Maravilha” (agora, plagiando Henfil). Ao admitir que a vítima expeliu um plástico, a Nota da Receita encampa a versão – por mais absurda que ela possa parecer na narração do áudio a que tivemos acesso e que reproduzimos mais abaixo para os leitores ouvirem. Já a nota diz:

“Por causa de seu estado alterado foi realizado um primeiro acionamento do Samu. Enquanto aguardava, o homem passou para um quadro de convulsão tendo expelido sangue e um pedaço de plástico pela boca. Novamente o Samu foi acionado tendo sido relatada a mudança de quadro agressivo para de convulsão“.

População se mobiliza – Na segunda-feira (30/01), ao postarmos a primeira reportagem sobre o caso –A estranha morte na Aduana – reproduzimos o vídeo acima que mostra Ademir dominado por, pelo menos, três servidores da Receita Federal (o número pode ser maior) sendo observados por três vigilantes. No canto esquerdo da foto, de jaleco amarelo, o mototaxista que conduzia a vítima. Esta, esta deita ao chão, de barriga para baixo, mas pelo filme não se pode dizer que seria difícil aqueles seis homens o mudarem de posição. Tanto que depois eles o conduziram para a “guarita”. A ilustração indica a posição de cada um.

A morte de Ademir mobilizou dois tradicionais grupos de defesa dos Direitos Humanos na cidade. O mais antigo deles, Centro de Direitos Humanos e Memória Popular de Foz do Iguaçu, em nota oficial promete acompanhar o desenrolar das investigações e levar esse caso aos organismos nacionais e internacionais. Outro a se manifestar, como consta dos comentários da primeira reportagem postada aqui no Blog (30/01) foi o presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de Foz do Iguaçu, Aluízio Palmar. O GTNM diz:

O Grupo Tortura Nunca Mais de Foz do Iguaçu torna pública sua mais veemente indignação e repudio contra a tortura que resultou em morte sofrida pelo trabalhador Ademir Gonçalves Costa.

Os fatos de amplo conhecimento da população de Foz do Iguaçu revelam que Ademir foi detido para averiguação na Ponte Internacional da Amizade (Ponte que liga o Brasil ao Paraguai) no último dia 28 de janeiro, tendo sido vítima de tortura seguida de morte.

A tortura é um das mais graves violações dos direitos humanos e o Brasil tem um duplo compromisso com a erradicação da tortura.

Primeiro, a Constituição de 1988 determina que ninguém será submetido à tortura ou tratamento degradante ou desumano, e que a tortura é inafiançável.

Segundo, o Estado brasileiro é signatário dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos relativos à tortura.

Tendo em vista o exposto, o Grupo Tortura Nunca Mais de Foz do Iguaçu, comunica que está encaminhando denúncia sobre o ocorrido para o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), de acordo com a Lei nº 12.847, sancionada no dia 2 de agosto de 2013.

Comunicamos ainda que estamos vigilantes e aguardando as devidas providências das autoridades para que os responsáveis por esse crime sejam levados à Justiça. Foz do Iguaçu, 30 de janeiro de 2017.

Nota do Centro de Defesa dos Direitos Humanos e Memória Popular de Foz do Iguaçu

Principal testemunha – O vídeo rapidamente chegou às redes sociais e foi noticiado pelas mídias da região.  Mas não mobilizou a chamada grande imprensa. O crime chocou e vem mobilizando a população de Foz do Iguaçu e da Cidade del Leste, no Paraguai (PY). Para a manhã de sábado (04/02) está sendo convocada uma manifestação em prol da Justiça para a morte de Ademir. Será às 07hs na Ponte Internacional da Amizade. Também no Face Book surgiram manifestações revoltadas e cobranças das autoridades. Conforme o número de adesões à manifestação, é possível que fechem a ponte, pelo menos por algum tempo. A repercussão do caso já fez com que um dos grandes escritórios de advocacia criminal de Curitiba se oferecesse, “pro Bono” (isso é, gratuitamente, a favor da sociedade) ajudar no caso, segundo informou Palmar.
A Polícia Federal instaurou um Inquérito, mas uma investigação paralela vem sendo feita pelo procurador da República Daniel de Jesus Souza Santos. Segundo informações do advogado Almir José dos Santos, contratado pela viúva, Thaís Claro Goulart, o procurador já marcou data para ouvir aquela que pode ser a principal testemunha do caso: o piloto da mototáxi que transportava Ademir do Paraguai para Foz do Iguaçu, quando ele foi parado na Ponte da Amizade. Nossas tentativas de falar com Souza Santos não geraram resultado.

Este piloto, que aparece na foto, cujo nome vem sendo guardado para evitar que sofra pressões, a tudo assistiu, Segundo o advogado, sua versão não coincide com a versão dos servidores da Receita Federal. Menos ainda com esta que foi narrada nos áudios. Quem conhece Ademir, garante que ele jamais se envolveu com drogas.

Uma conversa de Zap com alguém de Foz do Iguaçu que foi repassada ao Blog. Falam da morte natural e de que estariam pensando em relacionar a vítima ao consumo de drogas;

Causa morte desconhecida – Embora não tenha saído ainda um laudo de necropsia conclusivo – o que depende de exames laboratoriais a cargo do Instituto de Criminalística da Polícia Federal em Curitiba – o advogado Almir garante que no IML não encontraram qualquer vestígio de drogas no corpo do rapaz. Isso contradiz a versão apresentada nos áudios.

Para enterrarem Ademir, na falta do laudo, a Prefeitura da cidade fez uma Guia de Funeral – que está no seu site como acontece com todos os registros de óbito. Nela, a versão relatada por Adriana da Silva, que estranhamente foi registrada como esposa, fala em “morte violenta e envenenamento”. Não há referência a drogas.

Muito citado pela imprensa local e nos debates no Face Book, tal documento não tem valor judicial.

Mas, vale recordar que no domingo à tarde, quando recebemos as primeiras informações do caso, nos enviaram uma conversa no WhatsApp, onde consta que já “armavam” – nas palavras da nossa fonte – a versão da ingestão de drogas pelo morto: “Aí já tão falando que tinha droga no estômago“. (veja ilustração ao lado).

Através do Messenger, Thais relatou ao Blog que não é verdade que o casal estava brigado, como narra o áudio..

“Nós tínhamos brigado na segunda e na quarta já fizemos as pazes , tanto é que quando ele saiu de casa pra ir no Py eu estava com ele, nos estávamos em casa dormindo (…) Eu ouvi um áudio em que alguém fala sobre isso, mas acontece que nos não estávamos mais separados, já tínhamos reatado nosso relacionamento. Ficamos apenas dois dias separados.”
Há outra informação que desmente a versão apresentada nos áudios. Ela foi levantada pela repórter Samara Rosemberg, do MassaNews e consta da reportagem “Cruzamento de dados aponta acionamento do Samu após morte de Ademir; entenda:”
 
Leia mais aqui.
 
Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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