Resistência e conquista de direitos, por Leonardo Isaac Yarochewsky

Enviado por Henrique O.

Do Empório do Direito

Resistir é preciso

Por Leonardo Isaac Yarochewsky

“Quando alguém compreende que é contrário à sua dignidade de homem obedecer a leis injustas, nenhuma tirania pode escravizá-lo”.

Mahatma Gandhi

A história da humanidade é repleta de exemplos de grandes lutas, de revoluções, de resistências e desobediências civis. Foi através das revoluções que inúmeros direitos e garantias foram conquistados e proclamados. Revolução Inglesa (1640 a 1689); Revolução Americana ou Guerra de Independência (1776); Revolução Francesa (1789); Revolução Chinesa (1911 a 1949) Revolução Russa (1917); Revolução Cubana (1959); Conquista dos Direitos Civis pelos Negros nos EUA (1950 a 1960) e, porque não, o movimento de luta e resistência contra o golpe de 1964 e a luta por eleições diretas no Brasil.

Homens e mulheres lutaram, dando a própria vida, na defesa de direitos fundamentais. Joana D’Arc, Joaquim José da Silva Xavier, Zumbi dos Palmares, Mahatma Gandhi, Indira Gandhi, Martin Luther King, Nelson Mandela e outros tantos.

Márcio Túlio Viana lembra alguns casos de resistência dos índios caetés, os guaranis, os paiaias e os tapuias. Relembra, ainda, a resistência dos negros diante da escravidão, resistência que se deu através da: a) revolta organizada pela tomada do poder; b) insurreição armada; c) fuga para o mato.[1]

Vale aqui uma referência a Zumbi dos Palmares. Mais que um grupo de quilombos, Palmares foi uma “tentativa negra de organização de estado”. Em quase meio século de vida foi destruído, primeiramente em 1645 e depois em 1674, sendo em seguida reconstruído, até a queda final em 1697. Enfrentou ao todo 27 expedições. Na derradeira, foram três anos de luta, diuturnamente, com balas e flechas, água fervente, brasa candente que demonstram uma resistência heroica admirável. Zumbi, mesmo ferido, lutou até a morte.

Outro exemplo de resistência heroica é a de Antônio Conselheiro, que saiu pelos sertões pregando a justiça divina e terrestre. Em 1893 fundou Canudos, onde viveram por quase cinco anos cerca de vinte mil pessoas. A luta de Antônio Conselheiro em Canudos foi muito bem retratada no samba enredo da escola de samba Em Cima da Hora em 1976: 

“Foi no século passado
No interior da Bahia
O Homem revoltado com a sorte
do mundo em que vivia
Ocultou-se no sertão
espalhando a rebeldia
Se revoltando contra a lei
Que a sociedade oferecia” 

“Os Jagunços lutaram
Até o final
Defendendo Canudos
Naquela guerra fatal”

De Canudos para Tebas:

Em Tebas, mais um evento trágico para a estirpe de Édipo. O rei Creonte determina: que se deixe insepulto o corpo de Polinices, irmão de Antígona. A partir da proibição, Sófocles encena o entrechoque entre as perspectiva abusiva da lei de Creonte e o horizonte excessivo da desobediência de Antígona. A quem cabe o direito sobre a vida e a morte?

Antígona é uma das filhas do Rei Édipo, cuja história trágica reverbera pelos séculos, pois este matou seu próprio pai, o Rei Laio, e casou-se com sua mãe, Jocasta. Irmã de Ismena, de Etéocles e de Polínices, Antígona é fruto do incesto do Rei Édipo com sua própria mãe, Jocasta, portanto, sua mãe é também sua avó. Antígona é uma personagem de grande significado na obra trágica, pois sendo uma mulher lhe competiria os assuntos domésticos, a vida privada no seio da Pólis, pois no século quinto antes de Cristo, nas cidades Gregas, as mulheres eram muito pouco consideradas, tratadas como seres inferiores. Porém, Antígona se imiscui nos assuntos da política, nos assuntos da vida pública da pólis e reivindica: quer enterrar na cidade o corpo de seu irmão morto, Polínices, que ainda se encontra insepulto, pois assim exigem os deuses das terras de baixo, ou seja, do Hades.

Creonte: E agora tu diz-me, sem demora, em poucas palavras: sabias que fora proclamado um édito que proibia tal ação? 

Antígona: Sabia. Como não havia de sabê-lo? Era público. 

Creonte: E ousaste, então, tripudiar sobre estas leis? 

Antígona: É que essas não foi Zeus que as promulgou, nem a Justiça, que coabita com os deuses infernais, estabeleceu tais leis para os homens. E eu entendi que os teus éditos não tinham tal poder, que um mortal pudesse sobrelevar os preceitos, não escritos, mas imutáveis dos deuses. (…) E, se morrer antes do tempo, direi que isso é uma vantagem. Quem vive no meio de tantas calamidades, como eu, como não há de considerar a morte um benefício? E assim, é dor que nada vale tocar-me este destino. Se eu sofresse que o cadáver do filho morto da minha mãe ficasse insepulto, doer-me-ai. Isto, porém, não me causa dor. E se agora te parecer que cometi um acto de loucura, talvez louco seja aquele que como tal me condena. (vs. 450-470)[2]

Ao longo dos anos, a tragédia de Sófocles tem sido estudada e interpretada em vários aspectos. Desde um confronto do direito natural com o direito positivo até o direito a resistência ou a desobediência civil. O estudo, como é óbvio, não se limita ao direito, mas passa, principalmente, pela psicanálise e pela história da mitologia.  Sendo certo, porém, que Antígona é um símbolo da resistência.

Da Grécia para índia. Da mitologia grega para o mundo real.  De Antígona a Gandhi. Resistir à opressão e ao arbítrio é preciso.

Mohandas Gandhi (1869 – 1948), mais conhecido por “Mahatma”, a “Grande Alma”, advogado com formação britânica, Gandhi presenciou o regime de segregação racial – “Apartheid” – na África do Sul, onde morou por certo tempo. Para tentar deter as opressões, convocou um grupo de hindus a lutar pacificamente contra essas arbitrariedades. Após retornar à Índia em 1914, sua terra natal, foi influenciado por amigos e líderes locais a fazer o mesmo contra o domínio britânico, então ele propõe uma luta sem armas e sem sangue derramado.

Mahatma Gandhi inspirou‐se nas ideias de Henry Thoreau [3] – A desobediência civil – para liderar a reação pacífica contra a dominação inglesa na Índia. Gandhi introduziu novas noções ao conceito de desobediência civil, pois, para ele, a desobediência civil era um instrumento adequado à defesa dos direitos de cidadania, em todos os níveis, notadamente em face dos abusos do Estado e do capitalismo inglês. 

Para Gandhi, a desobediência era um direito inalienável do homem, sendo o seu exercício um eficaz meio de convencer o poder estatal quanto às injustiças e desacertos de suas políticas sociais. “A resistência civil é o meio mais eficaz de exprimir a angústia da alma e o meio eloquente para protestar contra a manutenção do poder de um Estado nocivo”.

O direito de resistência reside na garantia da autodefesa da sociedade, na garantia dos direitos fundamentais e no controle dos atos públicos, bem como na manutenção do contrato constitucional por parte do governante. O direito de resistência, compreendido como garantia individual ou coletiva, regida pelo direito constitucional, está a serviço da proteção da liberdade, da democracia e das transformações sociais, na medida em que tanto governantes como governados estão sujeitos ao Direito. [4]

“O povo tem o direito à revolução para esmagar as tiranias que espezinham suas liberdades, nem que ela seja exercida com extrema violência. Negar-lhe esse direito seria desconhecer o direito à dignidade humana. O povo defende pela força seus direitos fundamentais agredidos, pois se encontra na condição-limite de sobrevivência política. Não se fabricam revoluções, pois é um processo histórico próprio em movimento, no qual os pressupostos emocionais e de racionalidade se prendem uns aos outros, sendo o “presente” compreendido à luz do passado e do futuro”.[5]

Para Costas Douzinas, segundo Maíra Fattorelli,[6] “o direito de resistência deve ser observado diante da ausência de justiça, a princípio indefinível, caracterizada em sua falta, encontrada diante do desrespeito das singularidades sociais. A injustiça seria então apontada em cada situação concreta, e associada aos conceitos de liberdade e necessidade. O direito de resistir frente a esta combinação seria a capacidade que um sujeito de direitos teria, diante de uma norma ou ordem injusta, de se posicionar ativamente e, abandonando a passividade, se impor enquanto digno de reconhecimento, e ainda enquanto sujeito ativo na constante construção do nosso universo jurídico”.

Norberto Bobbio[7] observa que o problema da resistência à opressão voltou a ser atual com o movimento de “contestação”. Para Bobbio, tanto a “contestação” quanto a “resistência” pertencem às forma de oposição extralegal (em relação ao modo com que é exercida) e deslegitimante (em relação ao objetivo final).

Segundo Bobbio, a maior diferença entre as velhas teorias sobre o direito de resistência e as novas se apresenta na motivação e nas consequentes argumentações (ou “derivações”) com que o problema é enfrentado. Enquanto as velhas teorias colocavam o problema em termos jurídicos discutindo a licitude ou ilicitude da resistência em suas diversas formas, os que discutem hoje a resistência ou revolução o fazem em termos essencialmente políticos, isto é, assinalam o problema da sua oportunidade ou da sua eficácia, não perguntando se é justa e se constitui um direito, mas se está de acordo com o objetivo.

Em sua obra sobre desobediência civil, Hannah Arendt defende que a resistência é legítima quando os mecanismos adequados a proporcionar uma mudança social se encontram esgotados, tornando impossível uma atuação dentro dos parâmetros legais vigentes, ou ainda quando o Estado está prestes a promover atuações carecedoras de legalidade. Na concepção de Arendt “a desobediência civil aparece quando um número significativo de cidadãos se convence de que, ou os canais normais para mudanças já não funcionam, e que as queixas não serão ouvidas nem terão qualquer efeito, ou então, pelo contrário, o governo está em vias de efetuar mudanças e se envolve e persiste em modos de agir cuja legalidade e constitucionalidade estão expostos a graves dúvidas”. [8]

Como bem disse Márcio Túlio Viana, “resiste-se à guerra e à paz, ao amor e ao ódio, à doença e à dor, ao cansaço e ao sono, ao novo e ao velho, ao bandido e à polícia, ao trabalho e ao baralho, à mentira e à verdade, à procura e ao encontro, ao pecado e a Deus, ao fogo e à água, ao azar e à sorte, à morte e à vida, ao medo e por medo. Mesmo o irracional resiste: o peixe ao anzol, o rio à barragem, a pedra ao vento, a pirâmide ao tempo, a mosca ao pássaro, o pássaro à serpente, a serpente ao homem. Até a rosa, com seus espinhos, resiste a quem colhe…” [9]

Necessário, pois, resistir. Resistir ao autoritarismo, resistir ao fascismo, resistir à volta de uma política dominada por plutocratas, resistir à exclusão social, resistir ao Estado penal, resistir em voltar para invisibilidade, resistir à criminalização da pobreza, resistir contra a perda de direitos, resistir à fome, resistir à miséria, resistir à injustiça, resistir ao golpe.

Quando os caminhos legais são fechados; quando o judiciário se omite; quando a injustiça é flagrante; quando a Constituição da República é rasgada; quando a farsa e a insensatez tomam o lugar da verdade e do juízo; quando a ética é destruída pela indecência; quando não há mais esperança, só resta o caminho da resistência e da desobediência civil.

Por fim, como bem proclamou Rudolf Von Ihering, “resistir à injustiça é um dever do individuo para consigo mesmo, porque é um preceito da existência moral; é um dever para com a sociedade, porque esta resistência não pode ser coroada com o triunfo, senão quando for geral”. [10]

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Dedico este artigo a todos os membros da Legalidade Democrática, que resistem bravamente ao golpe que é perpetrado contra a democracia brasileira.

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Belo Horizonte, 05 de maio de 2016.


Notas e Referências:

[1] VIANA, Márcio Túlio. Direito de resistência: possibilidades de autodefesa do empregado em face do empregador. São Paulo: LTr, 1996.

[2] SÓFOCLES. Antígona. Introdução, versão do grego e notas Maria Helena da Rocha Pereira Fialho. Brasília: Editora UnB, 1997.

[3] THOREAU, Henry David.  A desobediência civil. Tradução José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

[4] BUZANELLO, José Carlos. Direito de resistência. https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4818463.

[5] BUZANELLO, ob. cit.

[6] Disponível em:http://www.pucrio.br/ensinopesq/ccpg/Pibic/relatorio_resumo2012/relatorios_pdf/ccs/DIR/JUR-Ma%C3%ADra%20Fattorelli.pdf

[7] BOBBIO. Norberto. Teoria geral da política. A filosofia política e a lição dos clássicos: org. por Michelangelo Bovero; trad. Daniela Beccaccia Versiani. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

[8] ARENDT, Hannah. Desobediência Civil. In: Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 2010.

[9] VIANA, Márcio Túlio. Direito de resistência: possibilidades de autodefesa do empregado em face do empregador. São Paulo: LTr, 1996.

[10] IHERING, R. Von. A luta pelo direito. Rio de Janeiro, H. Antunes, 1936.

Redação

4 Comentários

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  1. RAP ANTIFASCISTA

     

    Você que xinga pobre, comunista e petista

    Você que apóia golpe contra a democracia

    Saiba que não tenho nenhum medo de fascista

    E que muito me orgulha se você me hostiliza

     

    Você é um cativo de seu mando e privilégio

    Justiça e igualdade pra você é sacrilégio

    Odeia quem abraça a causa da cidadania

    e seu dever sagrado de afrontar a tirania

     

    Seu ódio é minha honra, minha glória, meu brasão

    Escravagista odeia quem combate a escravidão

    Eu luto contra a fome, a iniquidade e a exclusão

    Você só quer manter os pobres na submissão

     

    Seu ódio me enaltece e me enche de alegria

    Pois ele me coloca em excelente companhia

    Mandela e Mujica estiveram na prisão

    Apenas pelo crime de lutar contra a opressão

     

    O Martin Luther King foi até assassinado

    Porque do povo negro combateu a humilhação

    O legendário Gandhi também foi martirizado

    por defender os párias da sua grande nação

     

    Você diz que é do bem, mas gosta de torturador

    Quando a polícia mata na favela um morador

    Com bala pelas costas você dá o seu louvor

    Mesmo que o baleado fosse um trabalhador

     

    Você quer liberdade para superexplorar

    Gozar de mordomia e os pobres segregar

    Mas eu não te odeio, eu tenho pena de você

    Discípulo do Hitler, Mussolini e Pinochet

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

  2. excelente texto, uma bela

    excelente texto, uma bela homenagem aos que lutaram

    e lutam  historicamente  pela resistencia…

    o importante é que a resistencia sobreviva com unidade, seja vivida

    com intensidade dos que honram a vida quie deve ser sempre dignificada …

  3. Não há leis para respeitar

    Como podemos respeitar homens que protegem torturadores ?

    Por que devo ter esperança de boas ações daqueles que são insensíveis à pobreza ?

    Como posso esperar justiça de homens hipócritas ?

    Eu não mais me iludo.

    Sei que devo me opor a esse poder tirânico que nos oprime e reprime, que nos escraviza.

    Não posso ignorar que os usurpadores são 1% da humanidade.

    Resistir, desobedecer… para que tenhamos uma comunidade livre, justa e fraterna. Não importa quanto tempo.

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