Retórica da intolerância, por William Nozaki

Retórica da intolerância:

O que se esconde por trás do discurso de combate à corrupção no Brasil atual

por William Nozaki

O Brasil é mesmo o país dos contrários, os trabalhadores organizaram o capitalismo e agora as elites querem tomar o poder, um ex-operário torna-se ministro e o empresariado convoca “greve geral”.

Para espanto de todos, tais lances tem sido desfechados reivindicando o discurso do combate à corrupção, uma narrativa enunciada por uma rede de comunicação que sonega impostos, por federações de indústrias cujos empresários associados estão presos, por juízes e promotores que sofrem ou já sofreram investigações graves, por policiais federais acusados de contrabando, por juízes do STF que praticam tráfico de influência, por parlamentares que sabidamente desviam dinheiro público.

Todo esse circo é apoiado por uma parcela da elite e da classe média que com sua camisa da seleção brasileira beija o brasão da incorruptível CBF exibindo todo seu ufanismo para uma câmera da incorruptível Rede Globo e brada pelo impeachment ou pela renúncia da presidenta para que no seu lugar emerjam os incorruptíveis militares ou o incorruptível PMDB capitaneado pelo incorruptível escrevinhador de cartas torpes: Michel Temer.

Enquanto a disputa encarniçada pelo poder acontece, fala-se muito sobre política, mas se pensa pouco politicamente, a consequência: os andares de baixo que, corretamente, se sentem mal informados e pouco representados, seguem sofrendo as agruras do aprofundamento da crise e paulatinamente vão incorporando o mal-estar social que se expressa numa aversão geral à política, aos políticos e às instituições democráticas.

Mais ainda, os procedimentos para o suposto combate à corrupção perpetram toda ordem de informalidades, imoralidades e ilegalidades. Mecanismos de delação premiada, vazamento seletivo, conduções coercitivas, pressões psicológicas, devassas familiares, invasões de privacidade, grampos e escutas instalados ao arrepio das leis, manobras regimentais, a desordem jurídica foi elevada à condição de ordem de normalidade e a exceção impera como regra.

A azia geral já vai assumindo traços fascistóides: hostilidade nas ruas, nos locais de trabalho, entre amigos e familiares, linchamentos físicos e simbólicos, ameaças e agressões pelas vias de fato ou pelos canais digitais, listas de pessoas que deveriam ser perseguidas, depredação de sedes de movimentos e partidos e um desejo crescente de eliminação dos diferentes.

Duas novidades chamam a atenção na forma como esse clima de ódio tem tomado conta da sociedade brasileira: as redes sociais digitais têm servido como palco para toda sorte de barbárie e selvageria; novas modalidades de protesto como o panelaço e o buzinaço denunciam como indivíduos desorganizados em seus espaços privados externalizam sua suposta indignação a partir de métodos histéricos. Enquanto isso, entre os setores democráticos se avolumam, não sem razão, sentimentos conspiratórios, paranoicos e persecutórios. Vivemos hoje em uma sociedade fraturada e à beira de um ataque de nervos.

A cobra corre atrás do rabo, o rabo abana o cachorro, e tudo se passa como se todas as formas de corrupção se tornassem legítimas para se combater a própria corrupção. Noutros termos, na sociedade dos inversos: se produz corrupção para se descartar corrupção. Uma contradição imensa.

Sendo assim, afinal, o que se quer dizer quando se fala “combate à corrupção” no Brasil de hoje? Em primeiro lugar, é importante destacar o óbvio: ninguém precisa ser de esquerda ou de direita, de situação ou de oposição, atuar coletivamente em partidos ou sozinho em casa para ser contra a corrupção.

Para defender o combate à corrupção basta ter o mínimo de senso ético e republicano, mas não se trata do republicanismo às avessas defendido pelos conservadores que tratam o Estado como um quintal privado, tampouco se trata de certo republicanismo de pé quebrado defendido por tecnocratas progressistas que acham que para melhorar o Estado basta fazer mais concursos, ampliar orçamentos e aumentar salários, sem realizar em consonância com isso uma disputa de valores e de hegemonia, refiro-me antes e sobretudo ao republicanismo entendido como o senso moral de defesa da “coisa pública” não como algo de ninguém, mas sim como aquilo que é de todos.

Sendo assim, como atores sociais que – na macropolitica dos grandes subornos ou na micropolítica dos pequenos desvios – cometem atos corruptos e ilegais podem se sentir habilitados a defender o combate à corrupção e o Estado de Direito?

Ora, por trás desse discurso o que se esconde é um pacto com a injustiça, um pacto atávico que perpassa historicamente o modus operandi de nossas elites econômicas e políticas. Enquanto isso segue o medo de enfrentarmos os reais problemas da nossa democracia representativa que já não representa o conjunto das ideias e dos interesses sociais. E nesse momento não podemos vacilar: os defeitos da democracia só se corrigem com mais democracia.

Não há dúvidas de que aqueles protagonistas que impõe arbitrariedades contra o governo e seus membros o fazem movidos menos pela ética e mais pelo ódio, não há dúvidas de que aqueles que defendem o impeachment ou a renúncia o fazem com o objetivo de encerrar a Operação Lava Jato, ou alguém acredita que essa operação terá continuidade depois de um processo de deposição capitaneado por um Eduardo Cunha, por um Michel Temer e seus comparsas?

No entanto, uma parcela dos abastados se regozijam com o discurso da crise, enunciam o avanço do caos com o sadismo e o cinismo de quem enxerga na instabilidade a possibilidade de retomar seus privilégios, encenam uma falsa indignação para, nos bastidores da sua falsidade, esboçar o sorriso de quem se diverte com a desgraça que ela faz questão de tratar como alheia. Os velhos senhores de terra, seus feitores e capatazes permanecem sordidamente escondidos por trás de ternos e gravatas, diplomas e títulos, e suas inequívocas taras de dominação e exploração, de reprodução da intolerância e da injustiça, e seguem escondendo o seu principal segredo: desejam o fim da democracia, pois a soberania popular é o único caminho para refrear seus assanhamentos autocráticos.  

A estratégia de esconder a vontade de perpetuação da desigualdade (de mercado) por trás do suposto combate à corrupção (do Estado) tem obedecido a três procedimentos: a inversão das ideias, a infantilização dos símbolos e o sequestro das palavras. Como já se disse, patentes corruptos se colocando na condição de paladinos contra a corrupção, patos de borracha, bandas covers, groupies de torcida, comparação da política com desenhos animados, tudo culminando em setores golpistas se autonomeado de “revoltados”, de “indignados” e afins. Enquanto isso o país se desmonta em um clima de desagregação do tecido social.

O estranho consórcio entre grande imprensa, sistema judiciário e policias saiu do controle até das próprias cúpulas dos três poderes. Mais do que um golpe em curso e um Estado desgovernado o que estamos assistindo é a composição de uma sociedade descontrolada. É certo que a sociedade brasileira sempre teve a violência entranhada em todos os seus poros, como evidenciam nossos traços colonialistas, escravagistas, patriarcais, patrimonialistas, privatistas, machistas, racistas, homofóbicos, entre tantas outras patologias sociais presentes na estrutura social do país, mas na atual conjuntura tamanha intolerância e ódio tem feito emergir todas essas distorções da pior forma possível, a forma da arbitrariedade e do desejo de eliminação moral e física do outro, daquilo que é diverso e por isso diverge. 

Estimulada por bacharéis irresponsáveis e barões endinheirados, parte da sociedade brasileira não parece querer subverter a ordem, mas sim perverter a ordem, a se persistir esse estado de coisas e ânimos em breve nos tornaremos um país de perversões e perversidades ainda maiores do que aquelas que já marcaram nossa história.   


[1] Professor de economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. 

 

William Nozaki

4 Comentários

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  1. Eu gostaria de escrever o meu

    Eu gostaria de escrever o meu ponto de vista, como agente externo que acompanha o seu país faz algum tempo…

    Se eu conseguisse converter a totalidade da sua sociedade em um único indivíduo, neste momento vocês estariam internados na ala de segurança de um hospital psiquiátrico. Como é possível vocês terem perdido a noção do que é certo e do que é errado de uma forma tão completa? Como é possível eu ver em outros dos seus sites pessoas comentando feito animais e estes indivíduos achando que estão completamente certos em agir dessa forma? Como vocês podem achar normal “eliminar a raça do outro para sempre” em uma democracia? Aonde diabos vocês aprenderam democracia?

    Eu tenho que ser “curto e grosso” como vocês dizem em português: Vocês não sabem o que é uma democracia e tampouco vivem em uma. O seu sistema jurídico é ditatorial, os seus meios de comunicação são ditatoriais, as suas relações de trabalho são praticamente ditatoriais, vocês pensam de forma autoritária e ditatorial, a única coisa que falta para ter uma ditadura oficial é alguém para ser o ditador.

    Os seus juízes são ditadores “não declarados”, os seus políticos ignoram toda e qualquer regra de bom senso em busca de poder custe o que custar (nesse momento jogando o país à beira da guerra civil), a sua polícia se vende para quem pagar mais (longa história contada pelo jornalista Paulo Henrique Amorim), a sua mídia joga todo mundo contra todo mundo impunemente (nos EUA os diretores estariam na cadeia) . Dammit, ninguém em seu perfeito juízo deveria vir visitar ou investir no seu país e eu não estou tentando ofendê-los, estou citando a realidade!

    Finalizando, vocês não têm uma democracia nesse exato momento e eu desconfio que vocês jamais tiveram uma. O que vocês têm hoje por democracia não passa de uma farsa e vocês precisam reaprender o que significa democracia ou irão passar séculos entre uma ditadura e outra até acontecer algum acidente ou alguma tragédia que os coloque no caminho democrático em definitivo.

    1. Democracia de fachada é no mundo todo, inclusive nos EUA.

      concordo no Brasil temos uma democracia de fachada. Mas eu me questiono sobre a ‘democracia’ em outros países, como nos EUA onde um presidente que perdeu as eleições (Bush) foi colocado na presidencia(golpe?), onde dois partidos se alternam em oligarquias partidárias (Clitons, Bushs, etc) financiadas escandalosamente por grandes empresários para servir aos interesses deles e não da população. Onde policiais declaradamente rascistas assasinam negros inocentes e são soltos. Onde no facebook o presidente Obama é ameçado de morte e nada acontece com quem o ameaçou. Onde em nome da ‘segurança’ pessoas são presas arbitrárimente, vigiadas e impedidas de entrar no país só porque são de uma religião(como aconteceu como o cantor Cat Stevens). Um país que mantem uma prisão em um país estrangeiro (Guantanamo) onde se pratica tortura, indo contra a conveção de Genebra. Onde os trabalhadores do Wal Mart e da Amazon tem trabalho análogo a da escravidão e onde em vários estados é proibida a consituição de sindicatos em vários setores. Onde o governador do Alabama desrespeita uma decisão do supremo tribunal americano a favor do casamento homoafetivo. Onde será que os americanos aprederam ‘democracia’?

       

  2. Lula hoje em dia faz parte da elite do país…

    E queria utilizar a Casa Civil como seu quintal, assim como a elite tradicional sempre fez. Estão todos errados nessa história. Hoje há intolerância com o PT, mas durante 14 anos qualquer crítica ao governo foi taxada e policiada ideologicamente como coisa de elitista-golpista-alienado-pela-mídia-que-não-gosta-de-pobre. A militância petista sempre se considerou como a única portadora das boas intenções e como a monopolizadora das únicas soluções válidas para o país. Quanto ao restante, ou não gostava de pobre ou era alienado pela mídia. Isso não é diálogo nenhum com ninguém. É um discurso “cala-aboca” o tempo todo contra qualquer um que discorde. E assim a intolerância foi sendo semeada, por anos e anos… até que hoje vemos o resultado em uma sociedade que só sabe conversar aos berros.

  3. Qual o seu posicionamento?

    Prof. William,

    Novamente investi meu tempo para apreciar mais um de seus textos. Neste novo exercício me ocorreram velhas dúvidas, estas que já tentei obter respostas suas. Sou persistente e por isto seguem abaixo:

    > Qual o seu posicionamento frente a manobras politicas do governo Dilma para se manter no governo, tendo em vista que cada vez mais se encontram evidencias de ser um governo corrupto?

    > Você acredita que seu texto acima tem o mesmo teor tendencioso que possivelemnte a manifestação do dia 13 de março teve? Você como professor não contribuiria mais promovendo a reflexão ao invés de promover a definição de uma idéia?

    > Como fala em democracia quando temos um sistema politico onde se distribui cargos em empresas estatais, cargos politicos de primeiro escalão ou até “pixuleco” para se manter no poder?

    Gostaria de saber sua opinião em relação a estes temas.

    Muito obrigado.

     

    Vitor Hugo Vivaldini

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