Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
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Soledad Barret, as Olimpíadas e a coincidência da arte, por Urariano Mota

Não faz 10 minutos, estava trabalhando aqui no computador, arrumando o desarrumado das ideias, quando ouvi um som , um cântico harmonioso, em língua estranha e conhecida na sala. A música descia da televisão, que transmitia o encerramento das olimpíadas no Rio. Apurei o ouvido e gritei: “são eles, são os meninos guaranis”, pois era o canto deles que citei e usei no livro “Soledad no Recife”. Corri e fiquei parado, em pé na sala, à espera de uma confirmação do que parecia ser impossível. Então a apresentadora, num raro momento de suspensão da ignorância, informou que a música era de crianças guaranis. E mais não disse, que a sua ficha de roteiro não a autorizava.

Então voltei meio tonto para o quarto e busquei no youtube a canção que utilizei no livro e ouvi há pouco na televisão. Eu teria ouvido há pouco,  nesta noite de 2016, a mesma canção que me encantou na manhã de 2008? Ela é uma das canções do CD Ñande Reko Arandu, que pode ser ouvido aqui 

Em “Soledad no Recife”, ela surge nestas linhas: 

 “Há um cântico de criança guarani que diz: ‘Têtã ovy rauy’i / Eikere xevy, eikere devy’, ou ‘Filha do paraíso azul / Diz, entra para mim’. Assim a senti e a vi, embora nada soubesse, naquela noite, que ela fosse paraguaia. Nem muito menos que ela cantasse, como soube depois, muito depois, cantos de acalanto guarani. Que coisa estranha é o homem, a pessoa, quanta estranheza reside em nós mesmos. Era como se houvesse uma sirene no ar, sinal de ambulância, de carro de polícia, de anúncio de coisas que virão, mas que não ouvida por todos, apenas se ouvisse em ouvidos de cachorro. Por isso a senti numa trepidação inaudível.

Ocorrem-nos sentimentos muitas vezes sem explicação, sem uma causa clara, se podemos alimentar a esperança de que todas as coisas tenham uma causa. As pessoas do povo têm uma frase que expressa melhor um fato sem explicação: “Isso tem lógica?”. Se tiver, não é mecânica, nem está no reino do cálculo das probabilidades. Por que desejei falar a Soledad, em uma língua que desconheço, “Filha do paraíso azul, entra para mim”? Eu a queria, é certo. Mas não é certo que a quisesse na pessoa do mundo escuro que eu não sabia. Devo dizer, o natural é que amemos com as informações visíveis e conformes à nossa história. É natural, ainda, que amemos as informações invisíveis aos olhos, mas visíveis, pelo que sentimos, em outros sentidos: na voz que emana, no calor, no cheiro do corpo, nas palavras que se usam, no vocabulário, na sintaxe, no gosto dos ambientes por onde a pessoa transita, transitou, ou transitava. Mas nada então me poderia dizer que eu pudesse amar Soledad como se ama uma mulher paraguaia, como se ama uma mulher que canta cantos guaranis “

Então a canção dos curumins guaranis reapareceu há pouco, no encerramento das olimpíadas. Que coincidência… Lá em cima escrevi “coincidências da arte”, mas não sei se deveria dar outro nome. Quem sabe, As voltas que o mundo dá? Ou As revoluções de uma justiça ou reparação invisível? Não sei.  Me recolho à minha insignificância e faço de conta que tudo é um movimento do acaso, de uma onda do mar que vai e volta, insensível, bruta, como se a natureza estivesse deserta da gente humana. Mas não consigo calar a esperança de que os meninos índios e a luta humana sejam  eternos. Se não, para que escrever? 

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

7 Comentários

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  1. depois de ouvir na cerimonia

    depois de ouvir na cerimonia vim direto pra net procurar a musica,

    que pra mim foi a parte mais bonita da festa. a musica me encantou tb.

    obrigado pelo post 🙂

  2. é sim, mais forte que tudo…

    amor é sempre, não acaba nunca

    e certos Curumins são por serem escritores de vida

    Curumim vive sem precisar existir

    Curumim brinca, espera

    tudo alcança sem partir

  3. Inconsciente coletivo?

    Parabéns, Uraniano! Muito perspicaz a sua observação quanto à percepção quase inconsciente da música, associando-a a uma experiência prazeirosa, profunda. Temos, todos nós mestiços das etnias branca, negra e índia uma sensibilidade para as músicas ancestrais, de raiz, que parecem estar impregnadas no nosso DNA, ou no inconsciente coletivo.

     

    Isso fica claro para mim, quando ouço essas músicas de matriz indígenas, toques de atabaque, ritmos como o maracatu, o samba de roda, a catira e diversas músicas folclóricas pelo país, que nos tocam na alma sempre que ouvimos.

     

    Exploramos pouco essas associações. Existe um vídeo no youtube de uma apresentação do genial Bobby McFerrin, demonstrando a intuição humana sobre a escala pentatônica, numa edição do World Science Festival (https://www.youtube.com/watch?v=qVklgF-ImAs) que, para mim, é uma forte evidência de nossa herança genética musical!

  4. Sensibildade num mundo de brutos

    Ao ouvir os meninos guaranis, lembrei de que os jogos olimpicos foram organizadas ainda sob o governo Dilma Rousseff…  Mesmo que indiretamente, quem sabe, como você diz, ondas que vêm e vão. 

  5. Que coincidência maravilhosa!

    Que coincidência maravilhosa! Sua sensibilidade ao associar essa música Guarani a pessoa de Soledad Barret, foi tão especial quanto a associação feita na cerimônia de encerramento das Olimpíadas, nossa América Latina tem uma origem comum nesse povo tão rico de humanidade e cultura, como o povo indígena ! 

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