Thomas Piketty e a volta do capitalismo patrimonial

Da Folha

‘O Capital…’ revoluciona ideias sobre desigualdade

Obra de Thomas Piketty muda forma de pensar sociedade e economia

Autor mostra que caminhamos de volta ao ‘capitalismo patrimonial’, dominado por dinastias familiares

PAUL KRUGMAN

Thomas Piketty, professor na Escola de Economia de Paris, não é muito conhecido, ainda que isso possa mudar com a publicação em inglês de sua abrangente e magnífica meditação sobre a desigualdade, “Capital in the Twenty-First Century”. Mas sua influência é profunda.

Tornou-se comum afirmar que estamos vivendo uma segunda “Gilded Age” [Era Dourada, período de grande expansão econômica nos EUA entre 1870 e 1900]– ou, nas palavras de Piketty, uma segunda Belle Époque–, definida pela incrível ascensão do “1%”. Essa afirmação só se tornou lugar-comum graças ao trabalho de Piketty.

Ele e colegas (especialmente Anthony Atkinson, de Oxford, e Emmanuel Saez, de Berkeley) são responsáveis pelo desenvolvimento de técnicas estatísticas que tornam possível rastrear a concentração de renda e de riqueza no passado distante –até o começo do século 20, no Reino Unido e nos EUA, e até o final do século 18 na França.

O resultado foi uma revolução em nossa compreensão sobre as tendências da desigualdade em longo prazo.

Antes dessa revolução, a maioria das discussões sobre a disparidade econômica desconsiderava os muito ricos. Alguns economistas (para não mencionar políticos) tentavam sufocar aos gritos qualquer menção à desigualdade: “De todas as tendências prejudiciais a um estudo sólido da economia, a mais sedutora, e em minha opinião mais venenosa, é tomar por foco as questões de distribuição”, declarou Robert Lucas, da Universidade de Chicago, o mais influente macroeconomista de sua geração, em 2004.

Mas mesmo aqueles que se dispunham a discutir a desigualdade se concentravam, em geral, na disparidade entre os pobres da classe trabalhadora e as pessoas prósperas, mas não mencionavam os verdadeiramente ricos.

O foco eram os formandos universitários cuja renda superava a de trabalhadores com nível mais baixo de educação, ou a sorte comparativa dos 20% mais prósperos da população ante os 80% menos afortunados, e não a rápida ascensão da renda dos executivos e banqueiros.

Portanto, foi uma revelação quando Piketty e colegas demonstraram que as rendas do hoje famoso “1%”, e de grupos ainda mais estreitos, eram o mais importante na ascensão da desigualdade.

E essa descoberta surgiu acompanhada por uma segunda revelação: as menções a uma nova “Gilded Age”, que podiam parecer hiperbólicas, na verdade nada tinham de exagerado.

Nos EUA, a proporção da renda nacional reservada ao 1% mais rico seguiu uma curva em U. Antes da Primeira Guerra Mundial, o 1% mais rico detinha 20% da renda nacional, tanto nos EUA quanto no Reino Unido. Por volta de 1950, essa proporção caíra a menos da metade. Mas de 1980 para cá a parcela reservada ao 1% disparou de novo –e nos Estados Unidos ela retornou ao ponto em que estava um século atrás.

Ainda assim, a elite econômica atual é muito diferente da elite do século 19, não? Na época, as grandes fortunas tendiam a ser hereditárias; a elite econômica atual não é formada por pessoas que conquistaram suas posições com base no mérito?

Bem, Piketty nos diz que isso não é tão verdade quanto podemos imaginar e que de qualquer forma esse estado de coisas pode se provar não mais duradouro do que a sociedade de classe média que floresceu por uma geração depois da Segunda Guerra Mundial.

A grande ideia de “Capital in the Twenty-First Century” é não só a de que retornamos ao século 19 em termos de desigualdade de renda como a de que estamos no caminho de volta ao “capitalismo patrimonial”, no qual os grandes píncaros da economia são ocupados não por indivíduos talentosos mas por dinastias familiares.

É uma afirmação notável –e é precisamente por ser tão notável que ela precisa ser examinada de maneira crítica e cuidadosa. Antes que eu trate desse assunto, porém, permita-me afirmar já de saída que Piketty escreveu um livro verdadeiramente soberbo. O trabalho combina abrangência histórica –quando foi a última vez que você ouviu um economista invocar Jane Austen e Balzac?– e análise minuciosa de dados.

E, ainda que Piketty zombe dos economistas, como profissão, por sua “paixão infantil pela matemática”, a base de sua argumentação é um tour de force de modelagem econômica, uma abordagem que integra a análise do crescimento econômico à da distribuição de renda e riqueza.

Esse é um livro que mudará a maneira pela qual pensamos sobre a sociedade e pela qual concebemos a economia.

O que sabemos sobre a desigualdade econômica, e sobre os momentos específicos nos quais adquirimos conhecimento sobre ela?

Até que a revolução de Piketty varresse o campo, a maior parte do que sabíamos sobre desigualdade de renda e riqueza vinha de pesquisas nas quais domicílios escolhidos aleatoriamente preenchem um questionário, e suas respostas são computadas para produzir um retrato estatístico do todo.

O padrão internacional para essas pesquisas é o levantamento anual conduzido pelo Serviço de Recenseamento dos EUA. O Federal Reserve (Fed, banco central dos EUA) também conduz uma pesquisa trienal sobre a distribuição de riqueza.

As duas pesquisas são um guia essencial quanto à mudança da forma da sociedade dos Estados Unidos. Entre outras coisas, apontam para uma virada dramática no crescimento econômico americano, iniciada por volta de 1980.

Antes disso, famílias de todos os níveis viam suas rendas crescerem mais ou menos em linha com o ritmo de crescimento da economia como um todo. Depois de 1980, porém, a parte do leão dos ganhos passou a caber ao topo da escala de renda, e as famílias na metade inferior ficaram muito para trás.

Historicamente, outros países não mostravam igual eficiência em rastrear quem fica com o que; mas a situação mudou ao longo do tempo, em larga medida devido ao Estudo de Renda do Luxemburgo (do qual em breve farei parte). E a crescente disponibilidade de dados de pesquisa que podem ser comparados entre diferentes países resultou em novas percepções importantes.

Sabemos agora, especialmente, tanto que os Estados Unidos têm uma distribuição de renda muito mais desigual que a das economias avançadas da Europa quanto que boa parte dessa diferença pode ser atribuída diretamente a ações do governo.

As nações europeias em geral têm rendas altamente desiguais como resultado das atividades de mercado, como os Estados Unidos, ainda que talvez não na mesma extensão. Mas conduzem redistribuição muito maior por meio de taxas e transferências do que os Estados Unidos fazem, o que resulta em desigualdade muito menor em termos de renda disponível.

No entanto, apesar de toda a sua utilidade, os dados dessas pesquisas têm limitações importantes. Tendem a subestimar, ou desconsiderar de todo, a renda que cabe ao punhado de indivíduos que ocupam o verdadeiro topo da escala de renda.

Também apresentam profundidade histórica limitada. Os dados de pesquisa norte-americanos, por exemplo, remontam a apenas 1947.

É aí que entram Piketty e seus colegas, que se voltaram a uma fonte de dados inteiramente diferente: os registros tributários. Essa ideia não é novidade. De fato, as análises iniciais de distribuição de renda dependiam de dados tributários, porque não havia muitos outros dados com que pudessem contar.

Piketty e seus colaboradores, porém, encontraram maneiras de combinar dados tributários e outras fontes a fim de produzir informações que complementam de maneira crucial os dados das pesquisas. E as estimativas baseadas nos impostos podem recuar muito mais ao passado.

Os Estados Unidos têm um imposto sobre a renda em vigor desde 1913; no Reino Unido, ele surgiu em 1909; a França, graças aos registros elaborados de coleta de impostos sobre propriedades e aos seus históricos detalhados, tem dados sobre patrimônio que remontam ao final do século 18.

Explorar esses dados não é fácil. Mas usando todos os truques da profissão, e alguns palpites bem informados, Piketty consegue produzir um sumário da queda e ascensão da desigualdade extrema ao longo dos últimos cem anos.

Como eu disse, descrever nossa era como uma nova “Gilded Age” ou Belle Époque não é simples hipérbole; é a verdade pura e simples. Mas como foi que isso aconteceu?

Redação

6 Comentários

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    1. Mas não se preocupe Assis

      os leitores da folha não entenderam nada, por que o “estado patrimonialista” descrito pelo Piketti é o sonho de consumo destes “americanófilos” tupiniquins, alias duvido que vão entender que o livro é uma crítica, vão achar que, apesar do autor ser um universitário francês, portanto cripto-comunista para os seguidores do Pr Dr Hariovaldo, se trata de uma apologia. Eles até tem dificuldade em enxergar o Brasil deles, como o protótipo do  “estado patrimonialista”, onde são os aristocratas de uma república monárquica, a alta posição deles sendo fruto exclusivamente do esforço próprio.

      1. O livro começa de cara

        O livro começa de cara (depois da introdução e do prefácio) falando do massacre dos mineiros africanos na mina de platina de Marikana, perto de Johannesburgo, África do Sul, em 2012, como um exemplo de conflito para definição entre remuneração de capital vs. remuneração do trabalho. Mesmo não sendo marxista, e criticando onde deve ser criticado, as preocupações dele têm sim um viés, só não vê quem não lê.

        Como um não-economista, estou achando fantástico como livro-texto que se lê com gosto, como um romance. Voltando ao caso da mina de Marikana, há uma nota falando sobre as razões originais da greve dos mineiros como sendo a diferença salarial entre os mineiros e um gerente, que ganhava “Um milhão de euros por ano (equivalente aos vencimentos de 200 mineiros), de acordo com os grevistas. Infelizmente, não há informação sobre isto disponível na página de internet da empresa”. Só este “Infelizmente” já diz volumes.

  1. Nada de novo no horizonte

    Talves a novidade seja a popularização da informação sobre a desigualdade, já que o artigo é do Krugman, fora isto, muito auê para pouca informação.

    Ressalte-se que este é o livro da moda, faz sucesso tanto nos USA como na Europa, deve ser bem escrito e legível.

    Mas é pouco para justificar a revolta das massas que apoiem a 3 guerra mundial.

  2. Chegamos a esse ponto porque

    Chegamos a esse ponto porque a esquerda passou um século e meio se batendo contra a propriedade dos meios de produção, que tem os vivos mais poderosos para se articular em sua defesa e causar reações políticas extremas, enquanto esqueceu-se de atacar um adversário mais fácil e provavelmente mais injusto, que é a sucessão patrimonial “causa mortis”: herança. 

    Que um sujeito como Eike Batista tenha levantado um império, causa alguma angústia sobre a organização da sociedade, mas tem lógica interna dentro desse zoológico sociológico. Que o seu filho pegue uma Ferrari emprestada do pai para sair barbarizando, é vergonhoso, mas a Ferrari é do pai. Mas que o filho herde a Ferrari e todo o patrimônio industrial sem ter trabalhado para isso, é ultrajante mesmo para quem acredita em meritocracia. Uma completa subversão das regras de mercado, que exigem esforço e pagamento do preço justo para adquirir patrimônio. O mesmo se diga sobre os herdeiros da Globo, herdando um verdade feudo da comunicação social sem ter um diploma universitário sequer.

    “!Ah, mas o estado não pode se meter na herança e dizer quem vai receber!”. Mentira. Hoje ninguém se desfaz de mais da metade do patrimônio, porque o Código Civil já proíbe, a não ser que não tenha herdeiros. E o sujeito sem herdeiros que doa todo o seu patrimônio já está fazendo caridade, e distribuindo renda, que é o que queremos. É a única causa conhecida para alguém ter uma atitude dessas hoje em dia.

    No final das contas um indivíduo é o produto da capacidade econômica que tinha para adquirir bens culturais na juventude, e da eficiência que teve em transformar esses bens em produtividade no mercado de trabalho na vida adulta. E capacidade econômica é renda ou herança. Em uma sociedade saudável isso permite mobilidade social. Esse é um ponto em comum entre quem acredita em Cuba ou Adam Smith.

    Quando a concentração de patrimônio dos 1% atinge esse nível atual, e é mantida por mecanismos perversos como a herança integral, o resultado é esse neofeudalismo que estamos vendo, com um controle mais que absoluto dos meios de produção, até por alguém que mal saiu das fraldas. No Brasil, são 4 famílias donas de toda a comunicação, outras dezenas donas do Congresso Nacional, distribuindo concessões e facilitando negóciso. No mundo, todas as corporações que, se estudadas em suas cadeias de comando, resumem-se a não mais que 10. E todas elas exercitando o patrimonialismo em grau máximo para manter o controle familiar. Justiça seja feita, o nosso Raymundo Faoro já tinha aberto a picada que esse Thomas Pikkety está pavimentando.

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