Um relato da missão do Ipea na Venezuela, por Wagner Iglecias

Do Opera Mundi

O que eu vi da missão do Ipea na Venezuela

A missão do IPEA na Venezuela custa pouco. E trabalha, sim, pela intensificação das relações econômicas entre os dois países

Wagner Iglecias

O lamentável erro cometido por técnicos do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), órgão ligado à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, relativo à pesquisa sobre a opinião dos brasileiros sobre violência contra mulher, produziu mais uma vítima. Aproveitando-se da oportunidade, a oposição de direita ao governo Dilma parece que descobriu a existência da missão brasileira sediada em Caracas, na Venezuela, e passou a ataca-la sem qualquer cerimônia.
 
O mote foi a matéria de autoria do jornalista Fabiano Maisonnaive, veiculada no dia 10/04 pelo jornal Folha de S. Paulo, intitulada “Filial do IPEA na Venezuela ignora crise e elogia governo”. O título em si é um equívoco. O que o Ipea tem naquele país não é uma filial, mas sim um escritório, com um coordenador permanente, que reside em Caracas, e alguns bolsistas, temporários, que passam algum tempo na cidade para ajudá-lo a desenvolver estudos sobre as oportunidades para uma integração produtiva que serviriam inclusive para aumentar o investimento de empresas brasileiras naquele país. De mais a mais não me parece que a missão ignore a crise venezuelana. O que ignora, e faz bem ao fazê-lo, é a visão dicotômica e superficial que certos setores da imprensa brasileira têm sobre os processos políticos que ocorrem nos países vizinhos, especialmente naqueles governados por setores progressistas.

 
Quem aproveitou os últimos acontecimentos para fustigar a missão foi Reinaldo Azevedo, em seu blog na Revista Veja, também no dia 10. Chamou-a de “núcleo politicamente delinquente” e disse que nós é que “sustentamos essa vagabundagem intelectual”. Tristes tempos estes em que o jornalismo pátrio, ou boa parte dele, se baseia menos em substantivos, fatos e dados e muito mais em adjetivações. Apesar disso, eu pessoalmente não qualificaria Reinaldo com os adjetivos que ele usa para se referir à missão do Ipea. Pelo contrário, acho que ele já atingiu o status de intelectual orgânico, no sentido gramsciano, da direita tupiniquim. É inegável que ele faz a cabeça de muita gente.
 
Já o candidato a presidente da república pelo PSDB, Aécio Neves, publicou na mesma Folha nesta 2a. feira, 14/04, texto em que afirma que “o escritório (do Ipea em Caracas) tem produzido textos de apoio ao chavismo” e que o Ipea estaria “sendo usado para dar sustentação a ‘verdades’ petistas”. Chega a ser risível. Mas não é nada surpreendente num discurso proferido por um representante do PSDB. De fato, a última vez que a direita brasileira teve algum tipo de pensamento estratégico, relativo à inserção autônoma, ou tão autônoma quanto possível, do Brasil no cenário mundial ocorreu durante a ditadura militar.
Foi no governo Geisel, com o seu Pragmatismo Ecumênico e Responsável, doutrina de política externa que buscava um lugar de certa liderança para o nosso país, ainda que em termos regionais, que a direita esboçou algum pensamento de inserção externa mais elaborado. De lá pra cá tudo o que tivemos por parte da nossa direita foram propostas de (re)inserção subordinada do país, no concerto global, aos países ricos. Lembremos do discurso de “entrarmos no Primeiro Mundo”, que pautou a campanha eleitoral de Fernando Collor em 1989 e a estratégia de alinhamento com os EUA que pautou o governo Fernando Henrique.
 
Maisonnaive, Reinaldo e Aécio equivocam-se em seus pontos de vista. E não falo de ouvir dizer não. Eu conheci a missão, sem contar com qualquer tipo de financiamento para tanto, em fevereiro de 2013, quando fui à Venezuela para realizar palestras sobre a conjuntura brasileira na Universidade Bolivariana (chavista) e na Universidade Central da Venezuela (majoritariamente anti-chavista). Tive a oportunidade de visitar a sede do escritório do Ipea no país, a convite do economista Pedro Barros, coordenador da missão. O que vi foi nada além de uma sala simples, com mesa, cadeira, computador e estante de livros e publicações, muitas delas do próprio IPEA. Nenhum luxo.
 

Também a convite de Pedro pude viajar a Puerto Ordaz, no Estado de Bolívar, onde situa-se a maior reserva conhecida de petróleo do mundo, para acompanhar reuniões e palestras dadas por ele e pelos bolsistas do Ipea para autoridades e empresários locais, sempre com temas voltados à integração entre os dois países, e sobretudo entre o sul da Venezuela e o norte do Brasil. Fomos ele, quatro bolsistas do Instituto e eu, em seu próprio carro, numa viagem de mais de 8 horas pelos 660 quilômetros que separam as duas cidades. Depois de três dias intensos de atividades em Puerto Ordaz, a missão se separou. Pedro e três dos bolsistas continuaram a viagem, de carro, até Boa Vista, Roraima, para reuniões com autoridades do governo local, que inclusive é do PSDB (vale dizer que o Plano para o desenvolvimento da região de fronteira do estado de Roraima cita várias vezes estudos da missão do Ipea na Venezuela), e de lá dois voltaram de avião a suas cidades no Brasil. 

Um quarto bolsista, Flavio Higuchi, e eu voltamos de Puerto Ordaz para Caracas, de ônibus. Alguns dias depois Pedro e o bolsista Felippe Ramos voltaram a Caracas, após passarem também pela Guiana. Aliás, a missão não restringe suas atividades à Venezuela, mas busca também ampliar a presença brasileira nos países próximos, como Suriname e República Dominicana, com os quais ela possui memorandos de entendimento. Além disso ela tem feito aproximações com a Guiana, conforme citado, além do Haiti e países da América Central.

Baixo custo

Mas voltando à vaca fria: a missão do IPEA na Venezuela custa pouco. E trabalha, sim, pela intensificação das relações econômicas entre os dois países. Era para ter sido acompanhada por outras missões similares, na China, na Argentina, no Paraguai e em Angola, conforme projeto de Márcio Pochmann, ex-presidente do Instituto, e que acabaram abortadas por motivos variados. Acusar de cooperar com o governo do país vizinho uma missão oficial de um órgão do governo brasileiro que está lá para desenvolver cooperação bilateral é uma contradição em termos. É exatamente a boa relação entre os governos dos dois Estados que permitiu que o comércio bilateral tenha saltado de US$ 880 milhões em 2003 para mais de US$ 6 bilhões em 2013. Com um saldo comercial de US$ 3,6 bilhões para o Brasil no ano passado, um dos maiores entre todos os países do mundo com os quais mantemos comércio.

E digo mais: se quisermos ser uma potência, ainda que de porte médio e de abrangência regional, precisamos de mais missões como a de Caracas. Já passou da hora do Brasil ter, em suas universidades, especialistas em EUA, Europa, China, Rússia, África, Oriente Médio, Índia e América Latina, assim como tantos dos países desenvolvidos possuem os seus brasilianistas. Mas para além disso nosso país precisa ter, também, pesquisadores seus sediados em Beijing, Moscou, Nova Delhi, Cidade do Cabo, Cidade do México, Havana, Jacarta, Luanda, Istambul e tantas outras capitais e pólos políticos e econômicos importantes. Atacar a iniciativa das missões no exterior, sob o argumento esdrúxulo de que lá estão para legitimar governos, é revelar uma mentalidade tacanha, que imagina que ao Brasil só resta o caminho da inserção mais uma vez subordinada no cenário internacional.

* Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina e do Curso de Gestão de Políticas Públicas da USP.

 

Redação

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