Um tributo a Marco Aurélio de Almeida Garcia, por Roberto Amaral

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Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
 
TRIBUTO A MARCO AURÉLIO DE ALMEIDA GARCIA
 
por Roberto Amaral
 
Éramos  amigos desde 1961, quando, mal saídos da adolescência, fomos eleitos para a diretoria da União Nacional dos Estudantes, e onde atuamos juntos por mais de um ano.
 
Desde o primeiro momento se revelaram suas qualidades políticas e intelectuais. Nos debates, nos conflitos ideológicos, admirava sua capacidade de promover encontros e formular sínteses.  Um orador seguro, expositor de primeiríssima qualidade. Simpático, afável, mas duro quando necessário; cultivava a ironia fina como estilo. 
 
Na UNE, logo se tornou um dos ideólogos do Centro Popular de Cultura, onde encontraria Oduvaldo Vianna Filho (grande ator, autor e animador) e Carlos Estevão (nosso formulador).   Com Clemente Rosas, como nós, também vice-presidente da UNE,   integramos a Seção Juvenil do PCB, onde brigávamos com a burocratizada direção partidária. 
 
Sob o comando de Aldo Arantes, presidente da UNE em nossa gestão, organizamos a resistência estudantil à tentativa de golpe de agosto de 1961, quando os militares tentaram impedir a posse de Jango. Rodamos o país inteiro na caravana da UNE-Volante,  o primeiro grande esforço visando ao diálogo politizado com as bases estudantis, preparando-as para uma grande greve nacional em defesa da Reforma Universitária.

 
Aldo Arantes, Clemente Rosas, Marco Aurélio e eu fizemos nossa primeira viagem ao “mundo socialista”. No Brasil, a expectativa de construção de uma sociedade justa nos colocou frente à uma ditadura militar que passamos a combater até nos perdermos nos anos de chumbo. Marco, no exílio (Chile e França); Aldo, na clandestinidade e a caminho da guerrilha; eu, jogando de esconde-esconde com a repressão. 
 
Muitos e muitos anos passados, muita vida percorrida, nos reencontramos, para surpresa nossa, em seminário sobre Gramsci no curso de pós-graduação em Ciência Política na USP. Marco Aurélio, já professor na Unicamp e eu na PUC-Rio, sempre priorizando a militância política. Antes, pensávamos estar contribuindo para a construção socialista; nos últimos anos da ditadura, nos concentraríamos na reconstrução democrática, ele participando da fundação do PT; eu, tentando a reorganização do Partido Socialista. Caminhávamos por margens distintas do mesmo rio, fiéis àqueles ideais que haviam nutrido nossas juventudes. Acompanhei-o na construção do Foro São Paulo e, com Aldo Arantes, nas campanhas presidenciais de Lula e Dilma.
 
Juntos, integramos o primeiro ministério do Governo Lula, do qual foi ele um dos principais ideólogos, como inteligente e corajoso assessor internacional, ao lado de Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães, outros dois grandes brasileiros. A política externa do Presidente Lula,  um dos pontos altos de nosso governo, que tanto orgulho nos rendia, tem o seu dedo, sua palavra, seu texto, sua clarividência.
 
Marco Aurélio entendia a necessidade de contraposição à hegemonia estadunidense; sabia que era chegada a hora da multipolaridade em benefício de todos, não apenas do Brasil; percebia a necessidade de sepultar a perigosa e perversa quimera da unipolaridade. E tinha como evidente que a parte brasileira só faria sentido caminhando com nossos vizinhos da América do Sul e da África.
 
Daí seu empenho no fortalecimento do Mercosul, da Unasul e do Conselho Sul-americano de Defesa; daí sua atenção à presença brasileira no continente africano. A integração sul-americana e a aproximação com os africanos de língua portuguesa seriam os pontos de partida para o grande projeto Sul-Sul. Paralelamente, caberia dar sentido aos entendimentos do BRICS e estabelecer diálogos políticos em áreas ainda não navegadas pela diplomacia brasileira. O porte e as perspectivas de nossa economia demandavam aproximação com a Ásia, destacadamente com a China.
 
Marco Aurélio foi um dos arquitetos dessa política ativa e altiva (no feliz resumo de Celso Amorim), que elegeu como azimute a prioridade dos interesses nacionais, a busca de seu próprio caminho, rompendo com o trajeto de submissão automática às grandes potências. Sua herança é o exemplo da politica externa mais bem sucedida desde a Independência.
 
A grandeza dessa política, revogada, se sobressai independentemente da mediocridade atual, que retira o país do proscênio e o relega, retroagindo aos governos Collor e FHC, à mais abjeta subserviência à potência hegemônica.
 
À visão estratégica da política externa de Lula, tivemos, como consequência do golpe que depôs Dilma Rousseff, a retomada da mediocridade, da sabujice, da renúncia a qualquer papel de relevância. 
 
De ator mundial, regredimos ao papel de figurantes.
 
Estivemos juntos, pela última vez, há cerca de dois meses. Marco Aurélio, alegre, nos apresentou seu novo apartamento paulistano, da qual destacava, como salões nobres, sua cozinha-copa-sala de estar “montada como um bistrô”, dizia ele, e o espaço reservado para sua imensa e rica biblioteca que ainda não conseguira pôr em ordem. Eu lá estava, na companhia da cineasta e produtora Cláudia Furiati que desejava seus conselhos para um filme (que ainda pretende rodar) sobre a esquerda latino-americana. A visita começou com um belíssimo jantar, elaborado por ele enquanto degustávamos um majestoso vinho sacado de sua adega. A noite não tinha pressa. Terminamos esse encontro, que eu jamais pensei ser o último, ouvindo-o dissertar sobre o plano de seu livro de memórias. O infarto traiçoeiro nos proibiu dispor de uma peça literária de grande porte, e de um depoimento crucial sobre a política brasileira de nossos dias.
 
Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia
 
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Redação

4 Comentários

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  1. Eduardo Ramos

    Seguindo suas palavras ” minhas homenagens a um grande homem, um grande brasileiro”

    Um bom descanso para um grande guerreiro !

  2. Descanse em Paz, Marco Aurelio Garcia !

    Que sua alma descanse em Paz, Marco Aurelio Garcia.

    Com certeza, voce foi para aquele mundo, no Plano Espiritual, que voce trabalhou a vida inteira para construir aqui.

    De minha parte, e daqueles que compartilham este sonho, muita gratidao !

    Que Deus o ilumine sempre.

     

     

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