Uma análise dialética da Segurança Pública no Brasil, por Alex Agra

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Estrutura e indivíduo – Uma análise dialética da Segurança Pública no Brasil

Por Alex Agra

Para estudar os problemas do modelo das polícias no Brasil, é preciso entender que as contradições que o modelo de segurança pública apresenta vão além de obstáculos individuais, ou seja, questões de caráter ou formação de um policial (ou um grupo de policiais) específico(s). Trata-se de um empecilho sistemático muito bem colocado por um sistema criado para não funcionar. Visto isso, o objetivo dessa reflexão não será condenar ou isentar o policial enquanto indivíduo, mas entender que há em volta dele um contexto histórico, social e estrutural para que as limitações atuais existam.

Primeiro é preciso entender que: há uma luta de classes na polícia brasileira. Existe um grupo formado por pessoas do alto escalão das polícias (oficiais e delegados) com o lobby muito bem articulado no congresso e que não tem o menor interesse nos avanços da segurança pública. Talvez o maior e mais claro exemplo desse lobby seja a ligação entre o vazamento de informações da Operação Lava Jato, o plano orquestrado pela ADPF pra aprovar a MP 657, e o conteúdo da mesma. Esse grupo necessita desse lobby para garantir a manutenção de poder dentro do sistema atual, visto que para superar as contradições apresentadas por esse modelo vigente, é necessário que se mude as estruturas de poder dentro das corporações.

O cargo de delegado, por exemplo. A função do delegado de polícia atualmente é presidir o inquérito policial, elemento obsoleto e absolutamente inútil para a investigação policial no Brasil. Não faz sentido utilizar um aparato burocrático com função descritiva como o inquérito policial, especialmente porque em termos de contribuição para a investigação, ele mais atrapalha do que ajuda, já que a sua existência cria a necessidade um cargo de atravessador, que obsta a comunicação direta entre o investigador e o Ministério Público. Em sistemas que apresentam resultados melhores que os nossos, como por exemplo, o Chile e os EUA, não há a necessidade de um atravessador e a proximidade da polícia com o Ministério Público é inclusive muito benéfica para as investigações, visto que centraliza o papel de cada um no sistema de segurança pública, não abrindo precedentes para que os policiais se sintam no direito de ocupar o espaço que pertence ao judiciário.

Para exemplificar o problema da luta de classes nas polícias (expressa sobretudo, na ausência de carreira única), podemos usar o cargo de oficial da PM. Existe um abismo salarial entre os cargos ocupados pelos oficiais e os ocupados pelos praças. Outra diferença a se considerar é que normalmente (embora alguns estados adotem outros modelos), para ingressar no cargo de oficial é necessário ter ensino superior completo, enquanto para o cargo de praça normalmente é ensino médio completo e/ou curso técnico. Visto isso, vamos centralizar o debate em um questionamento: por que duas vias de entrada na polícia? Se você assume que uma via filtra o pessoal “mais capaz” e a outra o pessoal “menos capaz” então assume ao mesmo tempo que o sistema precariza parte dos policiais já na forma de ingresso. Se você assume a possibilidade uma entrada única para o cargo policial, e a partir do mérito e experiência do policial, ele progride na carreira, você está partindo de um pressuposto muito simples: o que deve ser valorizado no policial é o seu êxito na atividade policial, sendo consideradas suas especialidades e formação. Isso faz com que o policial mais preparado para executar a atividade policial esteja à frente das operações em que suas habilidades são necessárias e exclui completamente a possibilidade de um doutor da área jurídica que não tem a experiência necessária para comandar uma operação esteja liderando uma equipe de policiais.

Visto isso, temos elementos subjetivos essenciais fundamentados em uma base material para chegar a uma síntese simples: a luta de classes dentro da polícia brasileira precisa chegar ao fim. E o único método de fazê-lo é através da implantação do modelo de carreira única, que exige uma reforma de todo o modelo de segurança pública e a superação (pode-se ler também: supressão) dos cargos de poder que existem atualmente.

Partindo desse ponto, podemos ir pra outro fator que interfere diretamente na eficiência das polícias: a ausência de ciclo completo. Temos duas metades de polícia trabalhando com pouca (ou nenhuma) comunicação entre si, fracionando o trabalho policial e reduzindo a sua efetividade. Não é difícil encontrar um caso em que um há conflitos entre as duas polícias estaduais (PM e PC), por vezes resultando inclusive na morte dos policiais. Uma polícia de ciclo completo significa uma polícia capaz de absorver todos os elementos de uma investigação policial e ao mesmo tempo estar em patrulha na busca dos envolvidos. Uma polícia de ciclo completo significa uma policia que não realiza a quebra da atividade policial, fracionando-a em duas e reduzindo a sua efetividade, mas uma polícia capaz de atuar tanto no trabalho “ostensivo’ (na ausência de um termo melhor) quanto no investigativo. A solução para isso seria a unificação das polícias? Não! A solução efetiva teria que ser uma que agrade aos policiais e traga o que ambas tem de melhor: por que não uma polícia que realiza trabalho investigativo e ostensivo voltada para a proteção do cidadão (no que seria hoje Civil) e uma outra com a mesma estrutura da anterior, voltada para a proteção do patrimônio (no que seria hoje a Militar)? Isso aproveitaria o melhor das polícias atualmente.

Já que existe a necessidade de superar as questões estruturais, não há como não deixar de pensar em como essas questões refletem no indivíduo. Para isso, vou usar como instrumento a análise do militarismo na polícia. Não vou na mesma direção comum dos movimentos sociais porque meu objetivo é dialogar com o policial, então prefiro apresentar a perspectiva do policial em relação à militarização. Em termos jurídicos, a militarização já é um obstáculo para o policial porque: impede-o de sindicalizar-se e de construir uma greve para a categoria. A ausência desses direitos implica, por exemplo, em um trabalhador indignado com suas condições de trabalho, mas incapaz de fazer algo à respeito, por não ter instrumentos para tanto. Ademais, isso também é um reforço do caráter autoritário interno da polícia, já que tira do policial o direito de questionar o seu “superior”. Do ponto de vista do treinamento, uma polícia de caráter militar (que não necessariamente precisa ser uma Polícia Militar) retira a humanidade do policial transformando-o em mero agente do Estado. Faz isso não só quando retira a capacidade do policial de ser um agente questionador na equação (campo subjetivo), mas também quando abusa fisicamente e mentalmente, sob o pretexto de ensinar a disciplina (campo material). Isso retira do policial a sua humanidade, reduzindo o indivíduo a um agente do Estado incapaz de promover o contato com o cidadão. Como o policial será capaz de enxergar o outro como cidadão se não for capaz de enxergar a si mesmo? Talvez por esse mesmo motivo, apenas a família chora a morte do policial. Essa quebra de contato com o cidadão aliado a esse extravio da essência humana do policial que o reduz à farda e coturno, faz com que nos esqueçamos que por trás do uniforme existe um indivíduo com família, com amigos. Mais uma vez, reforço: o objetivo desse texto não é isentar ou condenar o policial, mas lembrar que existe um contexto histórico, social e estrutural em que esse policial está localizado e que faz com que suas ações sejam delimitadas a partir desse contexto.

Enxergar o policial como parte da estrutura é essencial porque desmistifica a ideia de que o problema é individual e a punição resolve. Punir o policial atualmente significa transferir o problema estrutural para o campo individual, um problema com elementos subjetivos e objetivos, um problema complexo que não será resolvido apenas com punições e prisões. Isso significa que estamos condenando ou isentando o policial? Não. Significa que estamos identificando os caminhos que o levaram até onde está e estamos propondo a mudança desses caminhos em sua origem (estrutura), para que ela não nos afete mais em seu fim (indivíduo), com punições ou prisões.

Ou mudamos a nível estrutural, ou continuaremos a passar maquiagem nos problemas da polícia e fingindo que vamos consertá-los com soluções simples.

Alex Agra – Estudante de Ciências Sociais da UFBA

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

6 Comentários

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  1. Parabens ao autor do texto,

    Parabens ao autor do texto, muito lucido e identifica precisamente os problemas na Segurança Publica Brasileira, indicando os caminhos por onde temos urgentemente que seguir, afinal a SP brasileira está falida, são quase 60 mil homicidios anuais, dos quais a policia só consegue indicar os autores de apenas 8% dos crimes em média.

  2. A falta de carreira única torna ineficiêtes as polícias
    Em todo lugar decente do mundo os mais experiêntes policiais lideram os menos experiêntes menos no Brasil. Aqui o garoto sai da faculdade, passa num concurso e vai chefiar Agentes Federais com mais de 20 anos de rua sem nunca ter ido pro combate e nunca sair de seu ar-condicionado. Não pode ser eficiênte uma Polícia desta! Manter uma polícia antimeritocrática assim só interessa à criminalidade e à impunidade! Exemplificando porque nossa Polícia bacharelesca brasileira não funciona(só 8% de crimes resolvidos): “Segunda-feira entrou realmente em exercício a nova Chefe da delegacia de Tríplice Fronteira de Tabatinga-MS. Após aprender onde fica sua sala, o cafezinho e o BB da cidade e com UM mês de puliça a nova chefe já está em condições de assumiu o comando”!!!! Apesar das pirotecnias midiáticas(furos televisivos em troca de espetacularização) em poucas Operações significantes a PF mantem só reles 8% de elucidação de crimes(3)(ENASP, 2012) por causa de uma Casta(delegados) mantida desde a Época do Brasil Império que só se preocupa com Excelências e Mordomias, são passíveis de atravessar as equipes de Agentes investigadores e fazer acordos a portas fechadas com corruptos já que possuem a prerrogativa das tais oitivas(juridicamente inúteis) de ficarem à sós com os presos longes da vigilância de quem investigou e prendeu(Agentes/policiais verdadeiros e anônimos investigadores)!!! Fontes:(1)http://veja.abril.com.br/blog/radar-on-line/brasil/delegados-exigem-em-circular-serem-chamados-de-vossa-excelencia/(2)http://www.adpf.org.br/adpf/admin/painelcontrole/materia/materia_portal.wsp?tmp.edt.materia_codigo=7287&tit=Comissao-de-Prerrogativas-ja-contabiliza-casos-resolvidos(3)ENASP. Relatório Nacional da Execução da Meta 2 : um diagnóstico da investigação de homicídios no país. Brasília : Conselho Nacional do Ministério Público, 2012, Disponível em http://goo.gl/DL4G3u

  3. O IPL(Inquérito Policial) favorece a impunidade
    O grande fator de crise na Segurança Pública Brasileira é a estrutura arcaica, da época do Brasil Império, baseada no IPL(Inquérito Policial) que facilita a impunidade. Essa jabuticaba IPL só existe no Brasil, Índia e Uganda. Burocrático e corruptível faz somente 5% dos crimes serem elucidados no Brasil(ENASP. Relatório Nacional da Execução da Meta 2 : um diagnóstico da investigação de homicídios no país. Brasília : Conselho Nacional do Ministério Público, 2012, Disponível em http://goo.gl/DL4G3u ). Criado no Brasil Império é ideal pra garantir a impunidade. No mundo onde Policia é séria o policial investiga, coleta provas e entrega o relatório pro MP e pronto!Aqui fica na mão de Delegado(advogado que não investiga mas faz concurso pra chefiar os experiêntes), geralmente são só assinadores de papel e há facilidade para que eles fiquem barganhando com o IPL porque cada inquérito fica concentrado na mão de um delegado e não sob os cuidados de uma equipe e de corregedorias como é na maior parte do mundo onde Polícia funciona.http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u10709.shtml Saiba por que no BRASIL apenas 5% dos assassinos são presos:http://oglobo.globo.com/pais/no-brasil-so-5-dos-homicidios-sao-elucidados-7279090Esse modelo de investigação está falido, só existe inquérito policial e delegado de polícia aqui, Índia e Uganda. Essa é uma invenção do Brasil Império, mais especificamente criado por Portugal em uma Lei de 1.841.Detalhe: Portugal EVOLUIU, e NÓS vamos ficar nesse modelo fracassado mais um SÉCULO? VÍDEO – Assistam esse vídeo e entendam a raiz dos problemas na Segurança Pública. (a partir de 3:30 seg)CLIQUE AQUI PARA ASSISTIR: http://goo.gl/TDM55J Agente Federal Paulo Murta apresenta números de ineficiência do atual modelo de polícia/investigação e as soluções viáveis. O próprio Delegado diz que uma das soluções é dividir os milhares de casos (investigações) por todos os agentes policiais, ao invés de ficar 300 casos concentrados na mão de apenas um delegado, que acaba não investigando nenhum. Daí após a conclusão das investigações se enviaria o relatório direto ao Ministério Público Federal. Qual sua opinião a respeito disso?

  4. As jaboticabas internacionais.

    Um grave (e comum) erro na análise da polícias brasileiras é recorrer a lugares-comuns. Aliás, erro óbvio de qualquer análise que pretenda maior densidade.

    O primeiro (e talvez principal) problema da Polícia brasileira remonta de sua criação, inventada em 1808, como Intendência Geral de Polícia (que deu origem a Polícia Civil, e em 1809 ao embrião militar, como a Intendência Uniformizada) quando a Corte recém-chegada apavarou-se no Rio de Janeiro com tantos negros circulando, e logo tratou de colocar a negrada “nos eixos”.

    De lá para cá, sobressaltos históricos jogaram a negrada que combateu em Canudos (nosso primeiro genocídio digno desse nome) nas favelas (a primeira no Morro da Pedreira, ou Providência, logo atrás onde seria a Central do Brasil), e o perfil de classe da Polícia manteve-se intacto, com um pequeno intervalo quando partiu para cima dos filhos da pequena burguesia e classe média (e alguns da elite), nas torturas dos regimes políticos de exceção, que sempre emprestaram as “forças auxiliares” (cláusula constitucional) como instrumento de caça ao inimigo interno.

    Veio a Guerra às Drogas e tudo se mantém…Lá (nos EUA), como cá, a tal guerra (com direito a ocupação militar sob eufemismo de pacificação) é só um argumento para segregar a mesma negrada que cai no conto da sereia, e busca uns trocados e afirmação social se arriscando e arriscando a vida alheia com o uso de armas de longo alcance (também fabricadas e vendidas pelos EUA, que afinal nos vendem “a ideia” e a “ferramenta”)

    Tolice maldizer o delegado ou o IP. Toda ordem jurídico-penal tem instâncias inquisitoriais.

    Na França há o juizado de instrução, nos EUA, em vários Estados o sujeito fica dias incomunicável até que seja formalmente acusado.

    Tem xerife nos EUA, tem tenente, capitão, tem sargento, tem comissário, chefe de polícia, etc, tem nomenclatura própria para uma estrutura que lhes é própria. Tem até esquema privatizado (terceirzado) para oficiais de fiança e condicional.

    Tem um monte de coisa diferente. Aqui, nos EUA, em Portugal, na Holanda ou na Rússia.

    A questão central é: Para quem serve o Estado e quem se serve dele.

    A polícia e o IP não são ineficientes, a eficiência é seletiva: Na morte da Juíza Patrícia Acioly, o IP durou dois meses, indiciou todos os envolvidos e o Judiciário puniu todos em um ano !!!!!

    Na morte do filho de uma apresentadora global (Cissa Guimarães, eu acho), o crime foi desvendado em poucas horas, fato muitíssimo incomum em incidentes de trânsito.

    No caso do filho do Eike, por outro lado, a polícia e os peritos fizeram um  ótimo trabalho (inclusive o laudo fazendo cálculo de velocidade com equações de cinética e coeficiente de atrito), mas quase acabaram presos e a vítima declarada culpada de sua própria morte, senão condenando seus descendentes a indenizar os estragos e o “susto” do rapaz que só queria usufruir se seu bólido a 200 km/h sem ser incomodado por esses bêbados pobres…ora bolas !!!

    Concordo que a carreira única deve ser discutida, concordo porém que deve haver uma mitigação para incluir acesso “por fora”, para não desprezar o capital intelectual de quem chega “saindo das faculdades”.

    Mas o problema policial brasileiro é o mesmo desde sempre: “Sabe com quem está falando”. Investigamos pessoas e não fatos. Logo, algumas pessoas recebem tratamento de acordo com seu lugar na pirâmide social.

    Com carreira única, extinção das PM, fim do IP, etc, etc e etc…nada disso adianta sem mexer na estrutrura classista do Estado brasileiro.

    Olha o MP aí…o monstro…

     

     

  5. Investigação + perícia

    Excelente texto.

    Não entro no mérito de quem, ou qual cargo, deveria acabar, mas se analisarmos a estrutura das melhores polícias, que possuem um resultado nas investigações infinitamente melhores do que os nossos, ficará demonstrado que eles dão ênfase ao investigador (de campo, com expertise, experiência etc.) e a perícia técnica.

    Atualmente, em nosso país, a ênfase encontra-se no investigador (de gabinete) e no inquérito policial.

     

  6. Não podemos ser tão simplistas assim

    Sinceramente, quem conhece o MP a fundo, sabe que essa estrutura piramidal não é exclusividade das polícias. Demonizar delegados e endeusar promotores parece uma estratégia somente a beneficiar os nobres “agentes políticos”. Entendo que o problema é bem mais profundo que acabar com o Inquérito Policial, mas melhorá-lo, dando condições materiais (e humanas) para as polícias exercerem seu papel investigativo, principalmente no quesito prova pericial. No RS, onde moro, o Instituto Geral de Perícias é um órgão sucateado, no qual os profissionais trabalham na mais absoulta escassez de recursos, e isso certamente reflete no inquérito policial e na prova produzida. Não podemos ser assim tão simplistas com um tema tão complexo, embora eu defenda a carreira única nas polícias.

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