Uma dívida deve sempre ser paga? Por Thomas Piketty

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Sugerido por Alfeu

Por Thomas Piketty, em Libération

Alemanha e França, que reestruturaram suas dívidas após a guerra, explicam hoje ao sul da Europa que as dívidas públicas devem ser pagas até o último euro

Universitat Pompeu Fabra / Flickr

Da Carta Maior

Tradução de Clarisse Meireles

Para alguns, a resposta é óbvia: dívidas devem sempre ser reembolsadas, não havendo alternativas à penitência, especialmente quando gravadas no mármore dos tratados europeus. No entanto, basta olhar para a história das dívidas públicas, assunto fascinante e injustamente negligenciado, para notar que as coisas são bem mais complexas.

Primeira boa notícia: houve, no passado, dívidas públicas maiores que as de hoje e, de diversas maneiras, sempre foi possível superá-las. Podemos distinguir, de um lado, o método lento, que visa a acumular pacientemente excedentes orçamentários para, gradualmente, pagar os juros e o principal da dívida. Por outro lado, há uma série de métodos que visam a acelerar o processo: inflação, impostos excepcionais, ou anulação pura e simples.

Um caso particularmente interessante é o da Alemanha e da França em 1945, quando os dois países encontram-se com dívidas públicas da ordem de dois anos de produto interno bruto (200% do PIB), ou seja, níveis maiores de endividamento do que os da Grécia ou da Itália hoje. No início dos anos 1950, porém, aquela dívida havia caído para menos de 30% do PIB. Evidentemente, uma redução tão rápida jamais teria sido possível com o acúmulo de excedentes orçamentários. Ambos os países utilizaram, em vez disso, todo o conjunto de métodos rápidos. A inflação, muito alta dos dois lados do Reno entre 1945 e 1950, desempenha o papel central. Com a liberação, a França também institui um imposto excepcional sobre o capital privado, de até 25% sobre os grandes patrimônios, e de até 100% sobre os maiores casos de enriquecimento ocorridos entre 1940 e 1945.


Os dois países também utilizam diversas formas de “reestruturação da dívida”, nome técnico dado pelo mercado para a anulação pura e simples da totalidade ou de parte da dívida (também chamada, de forma mais prosaica, de haircut). Como, por exemplo, nos famosos acordos de Londres de 1953, quando foi anulada a maior parte da dívida externa alemã. Foram estes métodos rápidos de redução da dívida – incluindo a inflação – que permitiram à França e à Alemanha iniciar a reconstrução e retomar o crescimento no pós-guerra, sem o fardo da dívida. Foi assim que estes dois países puderam, nos anos 1950 e 1960, investir em infraestrutura pública, educação e desenvolvimento. E são estes mesmos dois países que explicam hoje ao sul da Europa que as dívidas públicas devem ser pagas até o último euro, sem inflação e sem medidas excepcionais.

Atualmente, a Grécia estaria com um leve superávit primário: os gregos pagam um pouco mais de impostos do que recebem em gastos públicos. De acordo com os acordos europeus de 2012, a Grécia deverá destinar um enorme superávit de 4% do PIB ao longo de décadas para pagar suas dívidas. Trata-se de uma estratégia absurda, que a França e a Alemanha nunca aplicaram a si mesmas.

Nesta amnésia histórica extraordinária, a Alemanha tem, obviamente, uma enorme responsabilidade. Mas suas decisões nunca teriam sido adotadas sem a aprovação da França. Os sucessivos governos franceses, de direita e depois de esquerda, provaram-se incapazes de reconhecer a complexidade da situação e propor uma refundação democrática verdadeira da Europa.

Com seu egoísmo míope, Alemanha e França maltratam o sul da Europa e, dessa forma, maltratam a si mesmas. Com dívidas públicas se aproximando de 100% do PIB, inflação zero e baixo crescimento, os dois países também levarão décadas para recuperar a capacidade de agir e investir no futuro. O mais absurdo é que, em 2015, as dívidas europeias são essencialmente dívidas internas, assim como em 1945. As detenções cruzadas entre os países atingiram de fato proporções inéditas: os poupadores dos bancos franceses detêm uma parte das dívidas alemã e italiana, e as instituições financeiras alemãs e italianas possuem uma boa parte da dívida francesa, e assim por diante. Mas se considerarmos a área do euro como um todo, nós possuímos a nós mesmos. E mais: os ativos financeiros detidos por nós fora da zona euro são maiores do que detidos pelo resto do mundo na zona euro.

Mais do que continuar a reembolsar nossas dívidas a nós mesmos durante décadas, depende apenas de nós começarmos a nos organizar de forma diferente.

Thomas Piketty é diretor de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e professor da École d’économie de Paris.

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

4 Comentários

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  1. Um dos maiores problemas da “zona euro” é exatamente esse;

    A impossibilidade de “ajustar” o valor de moeda adequado a cada economia, pela via inflacionária ou da correção cambial.

    Sem poder ajustar o câmbio e com níveis de produtividade e qualidade absolutamente assimétricos, os países europeus da “zona euro” ficaram totalmente a reboque da supremacia industrial alemã e passaram a figurar, se tanto, como “mercado consumidor cativo” da mesma supremacia alemã e, pior… Sair do euro não podem, por ser absolutamente desastroso para as suas economias, então, resta-lhes torcer pela saída da própria Alemanha da zona euro, como único modo de poderem oferecer-lhe alguma resistência e tentar recriar algum arremedo de “política industrial autóctone”, em cada país, sem estarem sujeitos ao jugo da “igualdade entre desiguais” que a “união econômica” dissociada da “união política” produziu em toda a Europa, transformando o sonho em pesadelo antes de passada a primeira década do advento do “euro”, mas…

    Fazer é mais difícil que falar.

     

     

  2. De troianos e germanos

    E a Alemanha, além de posar de moralista, é hipocrita, pois com a crise da Grécia, ela ganhou muito dinheiro, emprestando com juros baixos. Ela e outros paises europeus, que usaram das boas notas das agências de crédito pare emprestar a juros bem baixos.

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