Uma homenagem aos avós e a José Saramago

A homenagem de André Raposo aos avós, à literatura e à vida

Enviado por MiriamL

Da Fundação José Saramago

A homenagem de André Raposo aos avós, à literatura e à vida

Colocado no Youtube há duas semanas, o vídeo Carta aos meus avós – a partir de José Saramago, realizado por André Raposo e João Descalço, já foi visto mais de 100 000 vezes. A ideia da produção de uma peça baseada no texto Carta a Josefa, minha avó, de José Saramago, foi do publicitário André Raposo, de 22 anos. «Um amigo passou-me essa crónica, eu já havia lido o Memorial do Convento e o Ensaio Sobre a Cegueira, além de algumas crónicas do Saramago, mas essa eu não conhecia. Gostei muito. Faz dois anos, quando o meu avô materno faleceu, voltei a ela. Fiquei muito próximo desse texto, li-o várias vezes, e comecei a pensar em trabalhá-lo de alguma maneira.»

A sua experiência teatral levou Raposo a pensar, de início, em adaptar a crónica de Saramago como um monólogo e apresentá-la no Teatro Rápido (espaço para obras de 10/15 minutos), mas logo a ideia de realizar um vídeo se sobrepôs. «Achei que teria mais projeção, e como não havia realizado nada, chamei um amigo, o João, para fazê-lo comigo.»

Durante seis meses Raposo andou às voltas com a ideia. Primeiro decidiu que o vídeo seria feito em Beja, no Alentejo, terra natal sua e de sua avó Maria Alice, de 81 anos, a outra protagonista do vídeo. «Ela aceito o convite na hora, mas fez algumas exigências: como, por exemplo, contracenar só comigo.»

Avó_Saramago

(Fotos de Cristiano Morais)

Após a escolha dos atores, André Raposo foi em busca do cenário. O local escolhido foi a casa da outra avó (paterna, já falecida). «É uma casa grande e bem iluminada», explica o publicitário. No início de julho, durante quatro dias, ele e a avó interpretaram o texto escrito pelo Nobel português em 1968. Ainda foram precisas mais duas semanas de edição – ao lado de João Descalço – e finalmente no dia 23 de julho, três dias antes do Dia dos Avós em Portugal, o vídeo foi colocado nas redes sociais.

Era para ser uma homenagem aos avôs e avós. O que não imaginavam Raposo e Descalço é que o vídeo rapidamente se tornaria, no jargão da Internet, «viral». «A divulgação foi só mesmo nas redes sociais. Primeiro passei aos amigos, depois os amigos aos amigos, e os amigos dos amigos aos seus amigos, e foi assim», explica o publicitário. Além de muitos elogios e mensagens de carinho, a dupla recebeu pedidos para que o texto estivesse disponível em outros idiomas. A primeira legenda, em espanhol, já está visível; e em breve também será possível ler o texto em inglês.

Processed with VSCOcam with c1 preset

A avó Maria Alice também gostou do resultado, relata o neto. «Ela é muito comunicativa e as pessoas falam com ela na rua, contam que viram o vídeo.» Mas, segundo ele, ela não tem ideia da dimensão e do alcance do trabalho que fizeram. Só sabe que em Beja o vídeo fez sucesso.

Além de homenagear os avós, o publicitário diz que queria com o vídeo demonstrar que José Saramago, ao contrário do que algumas pessoas pensam, é acessível a toda gente. «Esse texto da avó Josefa é prova disso», conclui. Era para ser uma homenagem aos avós, e acabou por ser um presente para todos os leitores de José Saramago.

Assista ao vídeo de André Raposo e da avó Maria Alice:

-x-x-x

“Carta a Josefa, minha avó” (1968)

30 Julho, 2014

No ano de 1968, José Saramago publicou no jornal A Capital, de Lisboa, a crónica Carta a Josefa, minha avó. Anos mais tarde, ela seria publicada no livro Deste Mundo e do Outro. Abaixo segue a reprodução da página do jornal Capital em que foi originalmente publicado o texto.

carta

Carta para Josefa, minha avó

Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo — e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e de formadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água.

Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira — sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.

Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com  isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja.(Contaste-mo tu, ou terei sonhado que o contavas?)

Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém. Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos — e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti — e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava. Não teremos, realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas — e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, por que te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: «O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!»

É isto que eu não entendo — mas a culpa não é tua.

Redação

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Já vi o vide no YouTube
    Já vi o vide no YouTube varias vezes e recomendo a todos . Pois e muito emocionante e profundo.
    Depois dele veio o maior interesse por esse fantastico escritor ,que por nossa sorte e de língua portuguesa.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador