30 dias de um Chile que quer mudar 30 anos

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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O Chile não é o mesmo de 35 dias atrás. Empoderada, a população não crê em uma democracia hierárquica e não negocia a total participação cidadã

Foto: Pablo Matias Ubilla/GGN

O Chile deste 22 de novembro não é o mesmo de 35 dias atrás. Empoderada, a população sentiu pela primeira vez em trinta anos a capacidade de articulação e voz. Não crê em uma democracia hierárquica e não negocia a total participação cidadã

De Santiago, Chile

Jornal GGN – O mea culpa já virou constante nos discursos de Sebastián Piñera, que sai em rede nacional de uma a três vezes por semana. Mas a população não lhe dá crédito. Completado um mês de manifestações do colapso social de um Chile que acordou, o resultado dos mortos, feridos, torturados, violados e cegos mantêm milhares nas ruas, mesmo após o anúncio de um plebiscito nacional para uma possível Assembleia Constituinte. Desacreditada, a população mostra que resistirá até ter certeza de enterrar uma Constituição que criou o mito de um “milagre econômico” às custas da pobreza, endividamento e desigualdade.

A incógnita de 35 dias consecutivos de manifestações com a vitória de algo que se aproxima da principal petição das ruas, a Assembleia Constituinte para criar um novo modelo de país, ainda deixa incertezas. Desde o primeiro dia de protestos, o GGN acompanha o que acontece no país latino-americano e explica abaixo por que, mesmo com o tão esperado anúncio, centenas de pessoas seguem diariamente nas manifestações.

1) Acordo com quem “pela Paz Social e Nova Constituição”?

Como o próprio nome diz, na madrugada da última sexta-feira (15), depois de horas reunidos, os deputados do Congresso chegaram a um “acordo”, uma saída para o que se tornou a maior crise social e política desde a ditadura no Chile (1973-1990). Tanto os partidos governistas, quando uma parte da oposição fizeram um esforço de tentar fechar naquela noite uma proposta que respondesse aos anseios da sociedade, um dia antes da marcha que estava convocada para ser a maior até então, com a chegada inclusive de caravanas de diversas regiões do país.

Além do nome “acordo”, a data estratégica era apenas um dos fatores que levantou as suspeitas sobre as negociações. Outras características daquele encontro também deixaram dúvidas a uma população que, mesmo após 30 anos de redemocratização, ainda não consegue acreditar na representação política, porque o sistema chileno traz resquícios de uma transição do modelo ditatorial não lograda em democracia.

2) A transição não lograda

Considerando que a Carta Magna que até hoje rege o país é, com algumas reformas, a de 1980, a que estratificou os planos dos Chicago Boys, jovens economistas chilenos formados pela Escola de Chicago do norte-americano Milton Friedman, tornando o Chile -por leis e políticas- o experimento prático do neoliberalismo dos Estados Unidos, o que veio nos anos seguintes não rompeu com o modelo de se fazer política instalada na ditadura.

As consequências das pequenas reformas e mudanças desde 1990, no fim da era do ditador Pinochet, materializaram-se em uma população desacreditada e cética. O Chile de hoje, desde os que viveram a ditadura até a nova geração, já nasceu não confiando em mudanças. Somado ao fato de que as eleições no país não são obrigatórias, o alto nível de ausência conforma um modelo ainda menos representativo, fazendo com que os que hoje estão no Congresso e o presidente do país não necessariamente representem a maioria da população.

A exemplo, o atual presidente Sebastián Piñera venceu as eleições de 2017 por 54,58% dos votos no segundo turno. Entretanto, menos da metade (49%) dos eleitores chilenos compareceram às urnas. O significado disso é que, efetivamente, o candidato eleito obteve somente 26,7% do apoio da população apta a votar.

3) Portas fechadas e o fim da participação hierárquica na política

O que ocorreu no Executivo também se deu no Congresso. Hoje os parlamentares da coligação de Piñera são 46% da Câmara e Senado juntos, uma significativa base direta, sem contabilizar os partidos de centro-direita e centro-esquerda. Os cânticos das ruas que vêm pedindo a derrubada de Piñera e da conformação atual da política tampouco consideram legítima qualquer decisão tomada a portas fechadas pelos parlamentares.

O resultado do “Acordo pela Paz Social e Nova Constituição” saiu de dentro deste Congresso, às 2h da madrugada da última sexta-feira. A desconfiança foi levantada não somente pelo horário – justificada pela dificuldade de a pequena parcela da oposição que transitou nas salas do Ex-Congresso do país chegar a um acordo com o oficialismo, mas também pela ausência de três partidos opositores que não aceitaram integrar as mesas de discussões e, principalmente, por uma vez mais, a resposta vir de maneira hierárquica, partindo dos detentores do poder e tendo que ser aceita pelo povo.

Porque o Chile deste 22 de novembro não é o mesmo de 35 dias atrás. Empoderada, a população sentiu pela primeira vez em trinta anos que tinha capacidade de articulação e organização próprios, não somente pelas massivas e resistentes manifestações ao longo do mês, como também pelos desdobramentos em todos os níveis de vida social – expressões da comunidade artística, levante de trabalhadores marginalizados, reuniões de vizinhos, convocatórias de Universidades, as centenas de cabildos (espécie de Assembleia Popular) realizados diariamente, e até mesmo as filas de supermercados e bancos tornaram-se espaço para discutir o futuro do país.

4) As vozes que já foram caladas

O empoderamento político-social veio concomitante a uma resposta controversa do governo, que com ainda mais furor nos dias de hoje não poderia passar despercebida pelos chilenos: a dura repressão do aparato estatal, resposta esta sentida, como nunca antes, pelas ruas em todos esses dias de manifestações.

Os números, que até a data desta publicação continuam crescendo, falam por si só: 23 mortos confirmados durante os protestos. A última vítima foi morta no dia do anúncio do Acordo pelo Congresso, sofreu um infarto em meio a bombas de gás lacrimogêneo, pimenta e tiros das forças policiais, que também atacaram o próprio Serviço de Atenção Médica (SAMU) durante o resgate do jovem de 29 anos, impedindo de salvá-lo.

Entre os que não perderam a vida, 222 pessoas já perderam parcial ou totalmente a visão de pelo menos um dos olhos, até a tarde desta segunda-feira (18). O número é um recorde internacional, sem precedentes de comparação no mundo. As feridas oculares são geradas pelos tiros de balas de borracha diretamente nos rostos dos manifestantes. Um deles é um jovem de 21 anos, que após receber tiros dos policiais na cabeça, no último dia 9 de novembro, três balas atravessaram seu crânio e ele perdeu os dois olhos.

Do dia 19 de outubro até o dia 11 de novembro, 160 dos mais de 2.390 feridos por balas de borracha e de tiro, armas de fogo, golpes e maus-tratos eram menores de idade. Mais de 270 pessoas denunciaram terem sido torturadas pelos policiais e forças de segurança em delegacias e locais desconhecidos. Outras 66 entraram com processos por serem violadas sexualmente. E estes dados são os que puderam ser confirmados pelo Instituto Nacional de Direitos Humanos, órgão independente, mas submetido ao governo.

As redes sociais trazem outras centenas de registros, diariamente, de violências, agressões, feridos, torturados e desaparecidos, além dos mais de 6 mil manifestantes que foram levados presos em meio aos protestos. É por essa inédita repressão em democracia que as ruas seguem enchendo-se de cartazes e presenças, pedindo a condenação do presidente Sebastián Piñera por crime de responsabilidade, contra a impunidade e pelo “direito de viver em paz”, referência à canção do perseguido pela ditadura Victor Jara, que hoje volta a ser o hino do país.

5) Até que a dignidade seja costume

E também “por dignidade”. Este foi o nome, modificado pelos próprios cidadãos, à praça que antes se chamava Itália, o principal ponto de concentração dos protestos na capital do país, Santiago. A Plaza de la Dignidad recebeu de algumas centenas até mais de 2 milhões de pessoas que vêm pedindo melhores condições de vida.

Porque apesar de o anúncio dos parlamentares ter incluído um tipo de Assembleia Constituinte -também levantando suspeitas, foi dado outro nome ao processo: Convenção Constituinte-, que a população pedia e que pretende ser o fim de todo o marco legal do modelo político-econômico do país, os chilenos demonstram que o “enquanto isso” exige incansáveis pressões.

Enquanto isso, a população promete fiscalizar os atores políticos e está fazendo por conta própria a política, nas articulações da sociedade pelas diversas reuniões, cabildos, assembleias, concentrações a nível acadêmico ou de praças de bairros. Discutem, analisam e decidem como deve ser feita essa Assembleia, como será o plebiscito marcado para abril de 2020, o que deve entrar na nova Constituição, como impedir que a antiga deixe resquícios.

E promete não aceitar mais ser enganada, mesmo em meio a uma incerteza velada de que essa chance poderá, uma vez mais, fracassar. A certeza que sobra é de que o Chile de hoje é completamente diferente daquele 35 dias atrás. É o que hoje vê esperanças de modificar mais de 30 anos de desigualdade, “até que a dignidade seja costume”, dizem os cartazes.

 


Abaixo, cenas destes 30 dias de repressão, captadas pela repórter Patricia Faermann, nos protestos do Chile:

 


A COBERTURA ESPECIAL NO CHILE:

 

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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