A cigarra e a formiga, por Carlos Pinkusfeld

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Do Manchetômetro

A cigarra e a formiga, por Carlos Pinkusfeld

Como toda boa estória infantil, a velha fábula da Cigarra e da formiga, de Esopo (recontada por La Fontaine), tem um conteúdo moral que permanece no inconsciente. O consumo é visto com uma carga moral negativa. Nas interpretações sobre o processo de desenvolvimento capitalista, em geral, ele tem um papel no máximo tolerado, mas normalmente deplorado. Não se pretende aqui adentrar no pantanoso terreno das motivações psicossociais dos méritos morais da abstinência, moderação em relação ao hedonismo, tão caras a abordagens econômicas de caráter subjetivista e individualista. Pretendo me deter simplesmente na questão macroeconômica, ainda que haja muito a se dizer sobre a forte relação ideológica entre esse julgamento moral e certas prescrições conservadoras de política econômica.

No terreno da ciência econômica, a discussão teórica do sentido de causalidade das três variáveis – consumo, poupança e investimento – é central para diferenciar as distintas abordagens macroeconômicas. Não caberia no escopo desse artigo o aprofundamento dessa questão, mas é importante anotar que seus ecos, que implicam em decisões de política econômica fundamentais para a vida da população de um país, principalmente os de poder aquisitivo mais baixo, já foram escutados em outra época no Brasil. Durante a ditadura militar ficou famosa a frase delfiniana de que seria “necessário deixar o bolo crescer para depois dividi-lo”. Nessa época o salário dos trabalhadores era utilizado, pela política de estabilização do governo militar como variável de ajuste, ou seja: continham-se os reajustes nominais dos salários para segurar a inflação com impacto negativo sobre o salário real.

A volta da democracia ocorreu em um período de terrível restrição externa, que teve como consequência a hiperinflação e o baixo crescimento. As políticas neoliberais combinadas, inicialmente, às crises da Ásia e Rússia dos anos que se seguiram à estabilização da economia, garantiram uma limitada recuperação salarial, e não geraram um crescimento sustentado do consumo e nem da renda.

Finalmente o ciclo virtuoso que se registra a partir de 2004 até 2010, permitiram a elevação do salário dos trabalhadores e especialmente o salário mínimo, objeto da mais importante política distributiva do governo Lula.

Quarenta anos depois finalmente parecia que o país trilharia um padrão de crescimento mais inclusivo. Nem todo mundo concordou, contudo. Ou concorda. O velho “bolo” da ditadura militar voltou, ainda que desprovido da metáfora culinária. Agora teríamos um “inviável modelo de crescimento puxado pelo consumo”.

O problema é que o bolo voltou não apenas solado pelos velhos motivos teóricos e ideológicos. Seus ingredientes estão errados. Troca sal por açúcar, fermento por soda cáustica. No período virtuoso de crescimento, entre 2005 e 2010, enquanto o crescimento do consumo foi de 37,7%, o do investimento agregado foi de 73,2%. Praticamente o dobro. Mas as surpresas não param por aí. O investimento agregado se compõe de compra de máquinas e construção de estruturas produtivas e residenciais. Para se ter uma ideia da importância desse último componente, desde 1929 até os dias de hoje na economia norte americana, a construção residencial representou aproximadamente 25% do investimento total.

E aí que reside, sem trocadilho, o problema no Brasil. Essa taxa elevada de crescimento do investimento brasileiro se deu a despeito de um desempenho relativamente medíocre da construção residencial. Basta dizer que entre 2004 e 2010, justamente o período do ciclo expansivo virtuoso citado anteriormente, a acumulação de capital produtivo cresceu cerca de 80% enquanto a construção civil menos de 30%. Se o leitor permite mais uma estatística, no período de 2005 a 2008, ou seja, eliminado o efeito da crise internacional, enquanto o investimento em máquinas da indústria cresceu a uma taxa média anual superior a 15%, a construção residencial se elevou ao ano a taxa anual média muito inferior, 2,7%.

Alguém poderia argumentar: mas o investimento não despencou recentemente?

Sim, mas o consumo também. A taxa média, a cada quatro trimestres em base móvel, do crescimento do consumo privado entre o último trimestre e 2004 e do malfadado primeiro trimestre de 2011, quando o governo resolveu puxar o freio da economia, era de cerca de 4,4%. De lá pra cá caiu à metade desse valor! Em outros termos: por que estariam os empresários aumentando fortemente seu investimento se o consumo doméstico despenca? Para quem venderiam seus produtos? Pra piorar: a economia mundial também não apresenta recentemente um cenário dos mais estimulantes. O comportamento dos empresários não só é racional como tem até um nome na teoria econômica: acelerador do investimento. Este opera nas duas direções: quando a economia como um todo cresce, acelera o investimento, e quando a economia desaquece derruba de forma ainda mais intensa o investimento. No ciclo recente, o Brasil não é nem de longe a jabuticaba.

A contradição tão flagrante entre dados e interpretação só pode ser reflexo de um forte viés ideológico, ou talvez excesso de La Fontaine na tenra infância. Mas seja qual a origem, resultam em desastre na política econômica. O consumo terá de crescer a taxas maiores frente às registradas recentemente, para que a economia saia de sua atual estagnação — aí incluindo a expansão do crédito ao consumo, que parece carregar uma carga moral ainda mais nefanda que o consumo por expansão de salários. Também há que se acelerar a expansão da construção civil, de resto mais que necessária num país com elevado déficit habitacional. Certamente, dado o baixo nível de renda média do país, programas oficiais, como o Minha Casa Minha Vida, terão papel a desempenhar muito importante. Quanto ao investimento privado em capacidade produtiva, talvez a metáfora cinematográfica mais adequada não seja a “fada Sininho da confiança” que teria faltado, mas que de fato não faltou, aos nossos empresários. Como confirma a longa história do capitalismo, incluindo o recente ciclo expansivo brasileiro, a metáfora correta é o filme Campo dos Sonhos. O investimento em capacidade produtiva virá sem que para isso as camadas menos favorecidas da população tenham que esperar outros 40 anos e não sei lá quantos milagres.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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  1. Por falar em ‘A cigarra e a

    Por falar em ‘A cigarra e a formiga’, essa é antiga mas é boa.

    Diz que tempos depois, num novo verão, a formiga , como sempre na sua faina diária,  ver passar numa ferrari conversível, muito bem acompanhada, a cigarra sua conhecida. A cigarra, também reconhecendo a formiga, dá marcha à ré e trava-se o seguinte diálogo, iniciado pela cigarra, oferecendo uma taça de ‘moet chandon’ à formiga, que parece surpresa:

    – Quanto tempo! Como vai passando amiga formiga?

    – Labutando, como sempre, cigarra. E você? Parece que está bem…

    – Muito bem, gozando a vida, como sempre. A propósito, amanhã estarei embarcando para Paris, pela terceira vez este ano!

    A formiga então engole seco a decepção e pergunta:

    – Você me faria um favor, lá em Paris?

    – Mas claro, o que você deseja?

    – Se por acaso você encontrar por lá um tal de La Fontaine diga a ele que vá à PQP!

     

     

  2. Tudo é como se entende a lei

    Tudo é como se entende a lei de Say.

    ” “a oferta de cada produtor cria sua demanda pelas ofertas de outros produtores”

    “Em última instância, os bens não são trocados por dinheiro — o dinheiro é apenas um meio de troca; os bens são trocados por outros bens. “

    A verdadeira Lei de Say – e não a distorção keynesiana por .

    “Keynes . . . além de não ter entendido, deturpou a Lei de Say. . . . Este é o legado mais duradouro de Keynes, um legado que deformou permanentemente toda a teoria econômica.”— Steven Kates

    Enquanto pesquisava material para a elaboração do meu livroThe Story of Modern Economics[A História da Moderna Ciência Econômica], descobri um extraordinário livro escrito pelo economista australiano Steven Kates, Say’s Law and the Keynesian Revolution [A Lei de Say e a Revolução Keynesiana].  De acordo com Kates, John Maynard Keynes deturpou a teoria original de Jean-Baptiste Say — sua famosa lei de que os mercados sempre tendem ao equilíbrio — com o único objetivo de, ao atacar essa teoria deturpada, poder gerar uma revolução na ciência econômica.  Segundo Kates, toda a Teoria Geral “é uma tentativa de refutar a Lei de Say”.

     

    A fim de refutar a Lei de Say, Keynes distorceu-a e adulterou-a gravemente.  Como afirma Kates, “Keynes se equivocou em sua interpretação da Lei de Say e, ainda mais importante, se equivocou quanto às implicações econômicas da mesma.”[2]  E vale ressaltar que Kates é totalmente simpatizante da economia keynesiana!

    Como Keynes entendeu tudo errado

    Na introdução da edição francesa da Teoria Geral, de 1939, Keynes centrou-se na Lei de Say como sendo a questão central da macroeconomia. 

    Creio que, até uma época recente, a ciência econômica em todos os lugares tem sido dominada . . . pelas doutrinas associadas ao nome de J.-B. Say.  É verdade que sua “lei dos mercados” já foi há muito abandonada pela maioria dos economistas; porém, eles próprios ainda não libertaram das suposições básicas criadas por Say, particularmente de sua falácia de que a demanda é criada pela oferta. . . . No entanto, uma teoria baseada nesta suposição é claramente incapaz de atacar os problemas do desemprego e dos ciclos econômicos.

    Infelizmente, Keynes não foi capaz de entender a Lei de Say.  Ao incorretamente afirmar que a lei diz que “a oferta cria sua própria demanda”, ele na realidade sugeriu que o objetivo de Say era dizer que qualquer coisa que for produzida será automaticamente comprada.  Logo, a Lei de Say não pode explicar os ciclos econômicos.[3]

    Keynes foi adiante e declarou que a Lei de Say “pressupõe pleno emprego”.  Outros keynesianos cometem este erro até hoje, embora nada possa estar mais longe da verdade.  As condições do desemprego não proíbem a produção e nem as vendas, ambas as quais formam a base do aumento da renda e do aumento da demanda.

    Ademais, a Lei de Say serviu especificamente de base para a teoria clássica dos ciclos econômicos e do desemprego.  Como declarou Kates, “A posição dos economistas clássicos era a de que o desemprego involuntário não somente era possível, como na realidade ocorria frequentemente, e com sérias consequências para os desempregados.”[4]

    Produção e consumo

    Mas o que é exatamente a Lei de Say?  A descrição de sua famosa lei dos mercados pode ser encontrada no capítulo 15 do livro de Say, A Treatise on Political Economy:  “Quando um produto é criado, ele, desde aquele instante, por meio de seu próprio valor, proporciona acesso a outros mercados e a outros produtos”.[5]  Quando um vendedor produz e vende um produto, ele instantaneamente se torna um potencial comprador, pois agora possui renda para gastar.  Para poder comprar alguma coisa, um indivíduo precisa antes vender.  Em outras palavras, a produção é o que gera o consumo, e um aumento na produção é o que permite que haja um maior gasto com consumo.

    Em suma, eis a Lei de Say: a oferta (venda) de X cria a demanda por (pela compra de) Y.

    Say ilustrou sua lei com o exemplo de um agricultor que usufruiu uma boa colheita: “Quanto maior for a colheita, maior será o poder de compra do agricultor.  Já uma safra ruim, por outro lado, irá afetar enormemente a venda das mercadorias.”[6]

    E Say está correto.  De acordo com as estatísticas sobre ciclos econômicos, quando uma recessão se inicia, a produção é a primeira variável a entrar em declínio, bem antes do consumo.  E quando a economia começa a se recuperar, isso ocorre porque a produção foi retomada, sendo somente depois seguida pelo consumo.  O crescimento econômico começa com um aumento na produtividade, na produção de novos produtos e na criação de novos mercados.  Portanto, os gastos em produção sempre vêm antes dos gastos em consumo.

    Podemos ver como isso funciona também na escala do indivíduo.  O segredo para um maior padrão de vida é, primeiramente, um aumento na sua renda — isto é, na sua produtividade —, seja por meio de um aumento salarial, ou de um novo emprego, ou de uma maior especialização ou pela criação de um empreendimento rentável.  Seria uma insensatez querer aumentar seu padrão de vida simplesmente aumentando seus gastos ou se endividando para comprar um imóvel maior ou um automóvel novo sem antes ter aumentado sua produtividade.  Você pode até ser capaz de viver luxuosamente dessa maneira por algum tempo, mas um dia inevitavelmente a conta chegará — no caso, a fatura do cartão de crédito ou o vencimento dos empréstimos bancários.

    De acordo com Say, o mesmo princípio se aplica às nações.  A criação de novos e melhores produtos cria novos mercados e possibilita o aumento do consumo.  Donde se conclui que “o estímulo ao mero consumismo não traz benefício algum para o comércio; pois a dificuldade jaz exatamente em como criar os meios para o consumo, e não em como estimular o desejo do consumo.  E já vimos que a produção, por si só, fornece estes meios.”  E Say então acrescentou: “Sendo assim, o objetivo de um bom governo seria apenas permitir que a produção ocorresse desimpedidamente, ao passo que o objetivo de um mau governo seria estimular o consumo.”[7]

    A causa dos ciclos econômicos

    A Lei de Say afirma que recessões não são causadas por uma insuficiência na demanda (a tese de Keynes), mas sim por um descompasso na estrutura da oferta e da demanda.  A recessão se inicia quando os produtores percebem que erraram em suas estimativas sobre o que os consumidores querem consumir, o que faz com que os bens não vendidos se acumulem nos estoques.  Ato contínuo, a produção é reduzida, a renda cai e, só então, o consumo diminui.  Como Kates esclareceu, “A teoria clássica explica as recessões demonstrando como os erros na produção surgem durante a fase da expansão econômica artificial, de modo que alguns bens permanecerão nos estoques sem serem vendidos, mesmo se cotados a preços que meramente cubram seus custos de produção.”  O modelo clássico era uma “teoria altamente sofisticada que explicava a recessão e o desemprego”, mas que foi varrida e “obliterada” de uma só vez pelo ilustre Keynes.[8]

    Em seu livro, Kates destaca as contribuições de outros economistas clássicos, dentre eles David Ricardo, James Mill, Robert Torrens, Henry Clay, Frederick Lavington e Wilhelm Röpke, que ampliaram a Lei de Say.  Vários economistas clássicos centraram seus esforços em explicar como a inflação monetária exacerba os ciclos econômicos.  Eles foram os precursores dos austríacos Ludwig von Mises e F.A. Hayek.

    Logo, nada mais apropriado do que finalizar com a própria definição de Mises sobre a Lei de Say:

    O mais sincero defensor e pregador da inflação em nossa época, Lord Keynes, estava certo, do seu ponto de vista, quando atacou aquilo que é chamado de “Lei de Say”.  A Lei de Say é uma das grandes façanhas da teoria econômica.  O francês Jean-Baptiste Say, na chamada Lei de Say, disse que você não pode aprimorar as condições econômicas simplesmente aumentando a quantidade de dinheiro na economia; quando os negócios não estão indo bem, não é porque não há dinheiro suficiente.  O que Say tinha em mente, o que ele disse quando criticou a doutrina de que deveria haver mais dinheiro na economia, era que tudo o que alguém produz representa, ao mesmo tempo, uma demanda por outras coisas.  Se há mais sapatos produzidos, esses sapatos serão oferecidos no mercado em troca de outros bens.  A expressão “a oferta cria demanda” significa que o fator produção é essencial.  Expressada mais acuradamente, ele estava dizendo que “a produção cria consumo”, ou, ainda melhor, que “a oferta de cada produtor cria sua demanda pelas ofertas de outros produtores”.  Dessa forma, um equilíbrio entre oferta e demanda sempre existirá em termos agregados (embora Say reconheça que pode haver escassez e fartura em relação a produtos específicos).

    Em última instância, os bens não são trocados por dinheiro — o dinheiro é apenas um meio de troca; os bens são trocados por outros bens.  “Você quer minhas maçãs?  O que você me dá em troca delas?”  Say acreditava que a criação de mais dinheiro simplesmente cria inflação de preços; mais dinheiro perseguindo a mesma quantidade de bens.

    E se você aumentar a quantidade de dinheiro, você não estará melhorando a situação de ninguém, exceto daquele indivíduo — ou daquele grupo de indivíduos -. para quem você dá esse dinheiro recém-criado; esse indivíduo, ou esse grupo, poderá então comprar mais coisas, retirando mais bens do mercado, privando outras pessoas desses bens, piorando o bem-estar delas.

     

    Leia também: As pedras viram pães: o milagre keynesiano

    http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1164

     

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