Aplicativo 99 pode ser processado no caso da jovem que sofreu estupro após ser abandonada em BH

Para advogada especialista em casos de violência de gênero, a 99 pode ter cometido "ilícitos cíveis"

O aplicativo de transporte 99 pode ser processado na esfera cível por danos morais e materiais, no caso da jovem desacordada que foi estuprada após ter sido deixada na calçada de sua casa, no último dia 31, por um motorista da empresa. A informação é da advogada Mariana Serrano, que concedeu entrevista exclusiva ao GGN.

O caso chocou o País nesta semana e acendeu um debate sobre a responsabilização solidária da empresa envolvida. Após ser deixada na rua pelo motorista da 99, a jovem de 22 anos foi encontrada e arrastada por um transeunte que a viu estirada no chão. O homem a levou até um campo de futebol e cometeu o estupro de vulnerável.

Ela foi encontrada por agentes do SAMU, ainda desacordada e com a calcinha abaixada. O exame de corpo de delito atestou que ela foi estuprada. O suspeito do crime, de 47 anos, foi preso em flagrante pela polícia e deve responder na esfera criminal.

A advogada Mariana Serrano, que já atendeu mais de 700 vítimas de violências decorrentes de questões de gênero, explicou ao GGN que a empresa 99 não têm relação com o crime de estupro, mas podem ser enquadrada por possível “ilícito cível”, ou seja, a vítima pode, sim, processar o aplicativo em busca de danos morais e materiais pelas ações do motorista.

“Quem cometeu o crime não foi a empresa nem o motorista, foi o estuprador. [Mas] as outras pessoas que estão nessa cadeia podem ter cometido ilícitos cíveis, questões que contribuíram para essa situação, ainda que por uma omissão”.

Por ter abandonado a jovem na rua, de madrugada, desacordada, o motorista da 99, em tese, pode ser enquadrado no artigo 133 do Código Penal (abandono de incapaz) e artigo 135 do Código Penal (omissão de socorro). Cada decisão tomada, em tese, pode ter contribuído para as circunstâncias que levaram ao estupro.

A advogada reforça que o processo por danos morais também pode se dar já que houve falha na prestação de serviços, ou seja, a falta de segurança oferecida pela empresa.

“A gente contrata um táxi esperando chegar em segurança. E não ser abandonada na rua”, afirmou Mariana Serrano.

Políticas de prevenção

Outro ponto levantado é se a empresa 99 oferece a seus motoristas alguma diretriz sobre como proceder em casos em que o passageiro está em situação de vulnerabilidade.

“O argumento mais sólido disso tudo é: quais orientações a empresa passa a esse respeito? Como que ela fiscaliza se essas pessoas [motoristas] cumprem essas orientações?”, questionou Mariana Serrano.

“Até o momento, a 99 deu uma resposta do tipo ‘suspendemos preliminarmente o acusado até que as autoridades terminem com as investigações e estamos aqui à disposição da Justiça’. Isso não é suficiente, está muito longe de ser o suficiente. É uma conduta passiva, é uma conduta que, vamos dizer o português claro, tirou o deles da reta”, disparou a advogada.

Segundo Mariana Serrano, em casos de transfobia cometidos por motoristas de aplicativo, por exemplo, já existe jurisprudência no sentido de responsabilizar a empresa de forma solidária.

Precarização da relação trabalhista

No entanto, ainda pode existir certa dificuldade na responsabilização da 99. Para a advogada, o problema maior está no fato de que as empresas de aplicativos não contratam trabalhadores com carteira assinada: elas fazem a intermediação entre prestadores de serviço e consumidores (como Uber, 99, Ifood), e assim possuem mecanismos para se isentar de culpa.

“Quando as empresas usam essa forma de contratar, que é a plataformização dos serviços, elas sempre vão ter a desculpa esfarrapada de que ‘o motorista agiu, mas eu só conecto o motorista e passageiro, eu não sou responsável pelo que ele faz’.”

Para Serrano, além do problema já existente e persistente da objetificação do corpo da mulher, este caso escancara também a enorme precarização do trabalho por parte dessas empresas.

“Por que esse motorista estava pensando em esperar [em frente à casa da jovem desacordada] no máximo 15 minutos? Eu duvido que um empregado CLT teria tentado fazer contato por apenas 15 minutos, como foi o caso. Quinze minutos é o resultado da precarização do trabalho, de uma pessoa que precisa enfiar uma corrida atrás da outra, se não ela não fecha o mês.”

Estupros no Brasil

De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registrou, em 2022, 74.930 vítimas de estupro, uma média de 6.244 casos por mês e 205 por dia.

Os casos de estupro de vulnerável, quando a vítima tem menos de 14 anos ou não é capaz de oferecer resistência sobre o ato, totalizam 75,8% das notificações, somando 56.820 vítimas em todo o país em 2022. 

O levantamento diz respeito apenas aos casos que foram notificados às autoridades policiais. Ou seja, os números são subdimensionados, uma vez que os registros representam apenas uma fração das vítimas: mulheres e homens, meninas e meninos de todas as idades.

Para a advogada Mariana Serrano, a comprovação é muito importante na hora de uma vítima prestar o Boletim de Ocorrência (B.O.), porque isso auxilia no processo de responsabilização. 

“O que eu mais recomendo para as mulheres [vítimas de abusos sexuais] é ir para uma delegacia e buscar fazer exame de corpo de delito o mais rápido possível”, aconselhou Serrano. 

“Infelizmente, por mais que doa dizer isso, não tomem banho. Uma mulher que sofreu violência sexual, a primeira coisa que ela quer fazer é tomar um banho para tirar as marcas daquilo que aconteceu com ela. Só que essas marcas são elementos probatórios muito importantes.”

A narrativa da desqualificação

O termo “narrativa de desqualificação” consiste na utilização de elementos que são irrelevantes ao crime que aconteceu com uma mulher, uma estratégia para tentar tirar dela a posição de vítima, colocando sobre ela uma integralidade ou parcialidade de responsabilidade na situação que a vitimou.

Um exemplo clássico disso é o caso da jovem Mari Ferrer, que foi estuprada dentro de uma boate em Florianópolis e que, durante a audiência do seu caso, o advogado de defesa do acusado mostrou fotos de Ferrer de biquíni.

Outro caso semelhante é o da Ângela Diniz, que foi assassinada em 1976 por seu então companheiro, Doca Street. No primeiro julgamento, Doca foi inocentado. Sua defesa argumentou que Ângela teria causado a própria morte por incitar em seu assassino sentimentos de ciúme.

“São sempre argumentos que vão para uma retórica sobre se essa mulher preenche o perfil de santa, bela, recatada e do lar. Então sempre vão tentar achar um argumento que fale que essa mulher não é santa, para dizer que, portanto, ela não merece justiça”.

Mariana Serrano, advogada feminista

Outro lado

O Jornal GGN procurou a empresa 99 por meio de sua assessoria de imprensa, mas até o final dessa reportagem, não obteve resposta. O espaço segue aberto para posicionamento.

Isadora Costa

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