Caso Celso Daniel: como se fabrica uma conspiração

ÉPOCA – Paulo Moreira Leite

Sérgio Sombra mataria sua galinha dos ovos de ouro?
7:23 | ter , 16/11/2010
Paulo Moreira Leite
Geral, Justiça Tags: Celso Daniel, corrupção, Santo André

(Esta é a primeira de uma série de quatro textos sobre a morte de Celso Daniel. O julgamento dos acusados começa nesta quinta-feira).

Nesta quinta-feira, começa o julgamento dos acusados pelo sequestro e morte morte do prefeito de Santo André, Celso Daniel. Ocorrida em fevereiro de 2002, a trágedia deixou o país em estado de choque. Abriu uma crise entre a Polícia Civil e o Ministério Público, que tem visões opostas sobre o caso. Nove anos depois, o crime inspira mais dúvidas do que certezas.

A tese do Ministério Público é que Celso Daniel foi vitima de um crime
encomendado. Conforme a acusação, seu assessor e tesoureiro político, Sergio Gomes da Silva, batizado como Sombra pela imprensa que cobriu o caso, contratou um grupo de pequenos criminosos do ABC paulista para cometer o crime. Para não deixar pistas que pudessem levar ao mandante, os criminosos foram instruídos a agir como se tivessem cometido um crime comum, mais um sequestro entre tantos que ocorrem na violência brasileira.

Chamada para investigar o caso, a Polícia paulista concluiu meses depois que não havia elementos para sustentar a tese de crime encomendado — ou crime de mando, como dizem os promotores. A visão de crime comum está no inquérito conduzido pelo primeiro delegado encarregado do caso, Armando de Oliveira Filho. Alguns anos depois, a delegada Elizabeth Sato foi encarregada de fazer uma espécie de inquérito sobre o inquérito. Reabriu as investigações, examinou o trabalho anterior e concluiu que nada tinha a acrescentar diante do serviço de Armando de Oliveira Filho.

Nas primeiras semanas após a tragédia, eu estava convencido de que a tese de crime encomendado fazia mais sentido. Celso Daniel não era uma vítima qualquer e não me parecia razoável que tivesse sido morto num crime qualquer. O caso tinha implicações políticas muito além de Santo André. O prefeito acabara de ser nomeado para integrar a coordenação da campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, que as pesquisas já apontavam como favorito na sucessão de Fernando Henrique Cardoso. Eu já tinha ouvido os rumores sobre casos de corrupção em Santo André e achava que uma coisa poderia levar à outra.

Hoje estou convencido de que ao menos até o momento em que escrevo estas linhas não surgiram elementos sólidos para sustentar essa visão. Podem até aparecer novidades antes ou durante o julgamento mas, depois de quase uma década, não se conhece nenhum elo de ligação entre Sombra e os criminosos. Não há indícios de que tenha — mesmo remotamente ou através de terceiros — feito contato com aquela quadrilha de sequestradores para encomendar o crime Encarcerados há mais de oito anos, desde o momento em que foram presos, os bandidos sustentam a versão de que cometeram o crime por conta própria e não modificaram seus depoimentos de lá para cá. A policia apurou e investigou o relato dos criminosos e conseguiu reunir indícios de que podem estar falando a verdade.

A versão do ministério público se apoia em hipóteses promissoras, como
raciocínio, mas que carecem de indícios consistentes. Os promotores sustentam que, depois que foi chamado para integrar a coordenação da campanha de Lula, Celso Daniel decidiu dar um basta no esquema de corrupção de Santo André, afastando-se de Sombra e de um grupo de assessores que intermediavam negócios com fornecedores da prefeitura. Inconformados, segue o raciocínio, decidiram sequestrar e matar o prefeito.
Não é uma possibilidade irracional, me disse um promotor ligado ao caso. Numa conversa em 2005, ele conta que estava convencido — embora não pudesse provar — que o próprio Celso Daniel mantinha grandes reservas financeiras num paraíso fiscal e que o sequestro seria uma forma de obrigá-lo a fornecer a senha de acesso a esta fortuna. Mesmo promissora, essa possibilidade não pode ser confirmada por indícios capazes de demonstrar a existência dessa conta. Não há papeis, nem mensagens, nem extratos que, mesmo de forma encoberta, pudessem indicar isso.

Outro ponto discutível é a visão de que Sérgio Sombra e Celso Daniel tiveram uma ruptura depois que o segundo foi nomeado para a campanha de Lula. Há muitos sinais na direção contrária. Os dois eram amigos de longa data. Sombra chegou a mostrar-se companheiro de Daniel até mesmo nas ocasiões em que o prefeito enfrentava crises em casamentos e relações mais passageiras. Nos meses anteriores à sua morte, Daniel estava ampliando as atribuições do amigo, federalizando sua atuação no partido. Comparecia em encontros fechados de dirigentes do PT, com Sombra a tiracolo, para falar de fornecedores e investimentos nas prefeituras. Para quem sabia do que acontecia nos bastidores do partido, Celso Daniel estava subindo — e ia levar o tesoureiro junto.

É um fato estabelecido que a amizade com Celso Daniel modificou o patrimonio de Sergio Sombra — para muito melhor. Ele era um agente de segurança. Virou empresário, com negócios e empresas que o olho clínico de quem conhece a corrupção política brasileira costuma associar a negócios com a adminstração pública.

Por parte de Celso Daniel, havia um sentimento de gratidão pela presença de Sombra. Um dirigente do PT recorda que o desembaraço de Sombra para procurar recursos junto a empresários do ABC salvou Daniel de uma derrota certa numa de suas últimas campanhas. Por parte de Sombra, havia um sentimento correspondente. Um policial que conheceu os dois, muito antes do crime, me disse que havia ali uma amizade verdadeira entre bons amigos.

Mesmo ignorando este aspecto, e reduzindo toda a convivência a interesse, ambição e jogo baixo, há uma pergunta difícil de responder: por que Sombra iria matar sua galinha dos ovos de ouro?”

Confesso que até hoje não encontrei uma resposta aceitável para essa questão.

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Grampos não mostram assassinato encomendado, disse delegado
ter , 16/11/2010
Paulo Moreira Leite
Geral, Justiça Tags: Celso Daniel, corrupção, Santo André

(Este é o segundo texto de uma série de quatro sobre o julgamento dos acusados pela morte do prefeito Celso Daniel, de Santo André)

Quando eu era diretor do Diário de S. Paulo, um repórter recebeu a notícia de que uma testemunha teria visto Sombra próximidades do local onde se escondiam integrantes da quadrilha que sequestrou Celso Daniel. Não havia diálogo, nem encontro. Apenas proximidade. Mesmo assim, fomos apurar. Nunca se sabe. Quando a informação foi examinada com vagar, descobriu-se que naquele dia Sombra encontrava-se fora do Estado e que a suposta testemunha sofria de um disturbio mental que faz certas pessoas se colocarem no centro de grandes acontecimentos que só acompanharam pelos jornais e pela TV.

Ouvi pessoalmente mais de uma dezena de pessoas envolvidas nas investigações. Entrevistei um médico presente à autópsia do corpo do prefeito. Perdi a conta de entrevistas feitas com autoridades, fosse para entender sua visão global, fosse para esclarecer detalhes específicos. Ouvi dirigentes do PT que faziam oposição política a Celso Daniel e apontavam para aspectos condenáveis de sua gestão, fosse pela orientação política, fosse pelas irregularidades subterrâneas. Ouvi aliados e pessoas que acompanharam o prefeito desde seu tempo de militante estudantil no Movimento de Emancipação do Proletariado, o MEP, organização clandestina de esquerda nos tempos do regime militar. Fiz várias entrevistas,
muitas gravadas, com promotores e delegados.

Também entrevistei familiares e pessoas próximas de Celso Daniel. Em 2005 encontrei parentes sinceramente convencidos da tese de crime encomendado e que se sentiam sob ameaça a ponto de pedir — e obter — direito de asilo em país estrangeiro. Mas tive uma imensa dificuldade em acreditar que estes familiares estivessem, de fato, em situação de perseguição, sob ameaça, por qualquer razão, política ou não. Passei uma manhã inteira com uma pessoa da família.

Tenho certeza de que se trata de uma pessoa digna, com um passado de luta contra a ditadura. Mas, encarregado de fazer uma reportagem sobre o caso para o jornal Estado de S. Paulo, tive de desistir da matéria por falta de dados objetivos. Tenho certeza de que não ouvi depoimentos dados de má fé. Mas não encontrei fatos que pudessem dar credibilidade ao que me diziam. Não havia uma narrativa. Era uma questão de fé, que me cobrava uma cumplicidade que ia além daquilo que se considera jornalismo. Mesmo a leitura de jornais que noticiaram o pedido de asilo não oferece um relato consistente sobre as ameaças que teriam sofrido.

Ouvi amigos do prefeito, fiz contato com a última namorada. Num esforço de
apuração, compilei argumentos da polícia civil — para em seguida conferir com promotores. E vice-versa. Conversei com responsáveis da área de inteligência da polícia paulista. Fiquei frustrado quando tentei promover uma mesa redonda entre as partes. A polícia civil concordou. Um promotor me disse que o Ministério Público declinava do convite, naquele momento.

Alguns fatos me chamaram a atenção durante a apuração. Apos a morte de Celso Daniel, delegados da polícia paulista gravaram conversas entre os principais personagens da prefeitura de Santo André. Não fui autorizado a ouvir os diálogos mas tenho certeza de que, se acrescentassem alguma novidade, teriam sido incluídos no inquérito — ou requisitados por uma das partes ou ainda teriam sido vazados para algum órgão de imprensa.

Um delegado familiarizado com os grampos me assegurou, em tom de quem está cansado de repetir uma observação que nunca recebeu atenção devida dos jornalistas, que não se ouvia nenhum diálogo que podesse sugerir o envolvimento daquelas pessoas no sequestro e no assassinato. “Havia muita corrupção no PT de Santo André,” me disse. “As conversas eram essas. Mas não chegamos a nada que indicasse envolvimento no sequestro do prefeito.”

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ÉPOCA – Paulo Moreira Leite
A pressão da política e da mídia no caso Celso Daniel
ter , 16/11/2010
Paulo Moreira Leite
Geral, Justiça Tags: Celso Daniel, Santo André

(Este é o terceiro texto de uma série de quatro sobre o julgamento dos acusados pela morte do prefeito de Santo André)

Longe de mim querer estabelecer uma ligação forçada entre o julgamento dos acusados pela morte de Celso Daniel e o caso do capitão André Dreyfuss, oficial do Exército frances julgado e condenado a penas duríssimas em função de uma acusação — falsa — de que era espião a serviço do Exército alemão.

No inicio do século passado o judeu Dreyfuss foi vítima do anti-semitismo dos comandantes militares de seu país, que o incriminaram sem provas de culpa. Mais tarde, quando o erro já havia ficado claro, montaram uma segunda operação para acobertar as próprias falhas e omissões.

Após uma luta demorada dos familiares para reestabelecer a verdade, Dreyfuss foi inocentado mas jamais recuperou seus direitos nem teve sua carreira militar recuperada. No pior de seus momentos, ele chegou a ser mantido acorrentado ao sol na ilha do Diabo, na Guiana francesa.

Autor de um texto obrigatório, conhecido pelo título “Eu acuso!”, o escritor Emile Zola entrou para a história universal da imprensa pela coragem de denunciar tamanha injustiça. O texto de Zola não se limitava a criticar os comandantes militares, porém. Ele também acusou a imprensa de seu país. Tinha razão: jornais franceses tiveram um papel decisivo para estimular a injustiça e impedir que o caso fosse debatido com a objetividade necessária, na hora em que isso era possível.

O escandalo produzido pelo artigo de Zola no Aurore possui este segundo aspecto: era um texto que destoava da visão da maioria da imprensa. Politicamente alinhados com o comando do Exército, os jornais de Paris reproduziam as acusações contra Dreyfuss de modo acrítico, sem conferir nem questionar. Se até hoje a prática atual dos melhores jornais do mundo nos lembra que a isenção e a objetividade são objetivos nem sempre fáceis de se alcançar, imagine-se como era a coisa naquela época.

Os jornais exploravam o anti-semitismo de seus leitores, então um sentimento bastante popular, e competiam na divulgação de denúncias sem muito critério. Como os oficiais do exército, os jornalistas também permitiram que um aspecto subjetivo — uma visão preconceituosa sobre cidadãos judeus — determinasse o rumo de seu trabalho. Com manchetes barulhentas, que alimentavam conversas nas casernas, nos cafés e nos camarotes da Ópera, impediam que os argumentos da defesa fossem ouvidos e considerados. O saldo é que os dois acabaram derrotados.

Os militares franceses fizeram papel de bobos. Acabaram manipulados pelo governo alemão e seus agentes reais, que valiam-se do preconceito para proteger o verdadeiro espião. A imprensa permitiu que o rigor de seu trabalho fosse afetado por questões subjetivas que iam além da obrigação de investigar e relatar os fatos.

Penso nisso quando retorno a 2002. Apesar das óbvias diferenças entre os dois casos, a força dos aspectos extra-policiais e extra-jurídicos me parece considerável. Ocorrido num ano de eleição presidencial, envolvendo um personagem de primeira linha do partido que iria ganhar as eleições daquele ano para inaugurar uma série de três vitórias consecutivas, o episódio possui implicações políticas evidentes, o que sempre dificultou um exame distanciado e sereno dos fatos.

É bom recordar que, em vários momentos, as linhas de interesse político entre o PT e o PSDB se cruzaram no caso Celso Daniel. Em função do longo reinado tucano no governo de São Paulo, promotores ligados ao PSDB tornaram-se proprietários de uma imensa área de influência no Ministério Público paulista.

Eles tiveram uma atuação decisiva no processo, em especial para rejeitar as conclusões do inquerito policial e alimentar a imprensa de informações que mantiveram o caso em pauta por um período bastante longo. Quando a delegada Elizabeth Sato realizava um inquérito sobre o inquerito, foi levada a Brasília, onde ocorriam CPIs que emparedavam o governo Lula em função do mensalão e outras denúncias.

O fator político também determina o comportamento do PT no caso. Convencido de que toda investigação sobre o que se passou em Santo André só poderia desgastar o partido — no mínimo em função dos casos de corrupção — os petistas passaram a fazer o possível para ficar longe do assunto.

Do ponto de vista do interesse da legenda, quanto menos se falasse no caso, melhor.

Na verdade, a política estava no caso desde o início. Em 2002, nos dias seguintes ao assassinato do prefeito, só havia uma certeza no país: aquele não fora nem podia ter sido um crime igual a todos os outros. Isso porque Celso Daniel não era uma vítima qualquer. Acabara de ser indicado para integrar a campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, sinal de que teria lugar garantido no ministério, na hipótese de uma vitória que as pesquisas indicavam como muito provável.

Dias antes, o prefeito do PT de Campinas também fora assassinado em
circustâncias igualmente misteriosas.

Ocorrida logo a seguir, a morte de Celso Daniel chegou a ser vista pelas lideranças petistas, perplexas diante de uma violencia fora dos horizontes racionais dos embates políticos num regime democrático, como um ato destinado a intimidar o partido. Só podia ser um “crime político”, argumentavam. A pedido do PT, o governo Fernando Henrique Cardoso garantiu acesso da Polícia Federal às investigações, para deixar claro que também se empanharia em chegar aos culpados.

O raciocínio “não pode ser crime comum” iria acompanhar e acompanha, até hoje, a maioria das discussões sobre o caso. Vamos ser francos: num país de tantos extremos sociais como o Brasil, é humanamente complicado imaginar que uma pessoa de prestígio, com direito a um tratamento social diferenciado e uma consideração muito acima daquela dispensada a eu, a você, e aquele sujeito na fila de ônibus, possa tombar como vítima de uma tragédia típica de um cidadão comum, como eu, você e o cidadão na fila de ônibus. É dificil acreditar mas a realidade demonstra que às vezes isso acontece.

Num universo cultural como este, as teorias conspiratórias tem grande chance de prevalecer e ganhar vida própria — tenham fundamento ou não. Elas refletem, em grande parte, a desconfiança de uma parcela da população sobre o trabalho da imprensa. Também espelham a dificuldade natural de compreender episódios que atravessam vários níveis de complexidade, desde a violência do submundo da bandidagem até a corrupção das esferas políticas, as ideologias políticas e as disputas pelo poder politico. Por fim, a capacidade de divulgar rumores e convicções que interessam a um dos lados faz parte do cotidiano de toda investigação relevante — pois fortalece grandes interesses em jogo.

Aos poucos, a tese de crime encomendado, muitas vezes batizada de crime
político, foi ganhando corpo. Embora fosse um segredo de polichinelo no ABC paulista, o assassinato de Celso Daniel chamou a atenção do país para um universo de corrupção que funcionava na prefeitura, tão antigo e enraizado que sequer fora inaugurado pelas administrações petistas.

Empresários falavam sobre o pagamento de propinas cobradas para obter
concessões na área de serviços públicos. Eram frequentes as denuncias que
apontavam para o enriquecimento de assessores do prefeito. Não levou muito tempo para que os jornalistas começassem examinar a hipótese de um crime encomendado dentro do PT de Santo André. Havia outro elemento para alimentar essa hipótese.

A descoberta, já nos anos anteriores, de que o PT exibia, em algumas prefeituras, os mesmos vícios e problemas detectados em outras legendas começara a desconstruir aquela imagem de legenda ética que marcara os primórdios do partido. Havia, já, um certo desencanto. Na vida interna, o PT passava por um realinhamento político moderado do ponto de vista das opções políticas mas centralizador e burocrático no funcionamento.
Adversários da direção hegemônica na legenda, cada vez mais fortalecida em
seus direitos e prerrogativas, costumavam acusá-la de centralismo e autoritarismo.

Os críticos mais duros falavam em stalinismo. Desde as tragédias entre
comunistas, anarquistas e trotskistas durante a Guerra Civil Espanhola se sabia que a esquerda era capaz de resolver suas divergências internas pela violencia. Será que essas práticas não haviam chegado ao Brasil?

Essas perguntas foram o combustível de boa parte das reportagens sobre o caso. As certezas sobre a corrupção ajudavam a alimentar as suspeitas sobre o assassinato. Não deixa de ser sintomático que, depois de ter sido rejeitada pela polícia civil, e quase esquecida, a tese de crime encomendado ganhou novo combustível político a partir de 2005, o ano do mensalão. Foi nesta época que o Ministério Público conseguiu que a polícia fosse obrigada a realizar um segundo inquérito, para apurar possíveis omissões e falhas que teriam ocorrido no primeiro, que não encontrara nenhum indício de crime encomendado.

A descoberta de que a base parlamentar do partido em Brasilia possuía um amplo esquema de distribuição de recursos ilícitos inspirou uma revisão de vários episódios dramáticos. O perfil de grandes lideranças do PT se modificou — para pior. Muitas biografias foram reescritas. Suspeitas se generalizaram e episódios que até então eram vistos como banalidade ganharam tonalidade criminosa.

Personalidades fugazes da história do partido, já esquecidos, foram retirados do anonimato para dar entrevistas, rememorar, projetar e acusar.

Responsável pela segunda investigação, a delegada Elizabeth Sato foi a Brasilia, quando a Capital Federal era um condomínio de CPIs. Para quem esperava novidades do trabalho da delegada, considerada uma profissional independente em relação aos diversos grupos e famílias da polícia civil de São Paulo, Sato foi uma decepção. Sustentou que não havia encontrado nenhuma omissão ou falha no primeiro inquérito. Até por este motivo, a conclusão do serviço despertou muito menos atenção do que a nomeação da delegada, no início dos trabalhos.

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Uma testemunha importante do caso Celso Daniel
ter , 16/11/2010
Paulo Moreira Leite
Geral, Justiça Tags: Celso Daniel, Santo André

(Quarto e último texto de uma série sobre o julgamento dos acusados pela morte do prefeito de Santo André)

O leitor mais atento sabe qual é a dúvida crucial da investigação sobre a morte de Celso Daniel.

Se houve um sequestro encomendado, Celso Daniel foi conduzido para uma
armadilha onde seria retirado do automóvel, conduzido pelo amigo e assessor Sergio Sombra da Silva — aqui o mandante do crime — e conduzido para o cativeiro e morto. Se houve um sequestro casual, Celso Daniel estava a caminho de casa quando o carro em que viajava, em companhia do amigo e assessor Sérgio Sombra da Silva — aqui apenas dirigia o carro — foi abordado por um grupo de criminosos, que levaram o prefeito para o cativeiro, onde foi morto.

Ao serem apanhados, meses depois, oito bandidos disseram em depoimentos em separado que haviam cometido um crime por conta própria, típico de uma quadrilha em atividade na periferia paulistana.

Conforme sua versão, nas semanas anteriores à tragédia eles estavam de ôlho
num comerciante de frutas do Ceasa, em São Paulo, e planejaram sequestrá-lo numa sexta-feira, dia em que se recolhe a féria da semana. Contaram que o comerciante foi seguido naquele dia — o mesmo em que Celso Daniel seria sequestrado — mas o perderam no meio do caminho. Sem querer voltar para casa de bolsos vazios, montaram um plantão num ponto da cidade e atacaram uma vítima que parecia promissora, a bordo de uma Pajero, sinônimo de luxo e riqueza até hoje, ainda mais naquele momento. Eles também disseram que não sabiam de quem se tratava.

No país dos figurões e espertalhões, de teorias conspiratórias e muita impunidade, uma narrativa desse tipo parece lenda grega. Após meses de investigação, contudo, a polícia encontrou o comerciante — ele vende melancias no Ceasa — ouviu o depoimento e descobriu que sua história se encaixa perfeitamente com aquilo que os sequestradores diziam.

Ele conseguiu escapar dos bandidos por acaso: naquele dia tinha uma fesa em família e resolveu ir para a praia em companhia da namorada e da mãe. Mudou o roteiro no meio do caminho e tirou os bandidos da pista boa.

Um delegado que participou da primeira fase das investigações recorda que a tese de crime encomendado tem o defeito suplementar de obedecer a um roteiro amadoristico. Sua opinião é que um criminoso capaz de encomendar a morte de um prefeito tão importante na estrutura do PT não iria ficar a seu lado, no automóvel, pronto para ser encontrado pela polícia logo após o crime para ser colocado sob suspeita no minuto seguinte. Conforme esta visão, seria prudente deixar a cena do crime e ir para um local distante, de preferência fora do país, para mandar condolencias à família assim que a TV divulgasse o ocorrido.

É uma boa tese. Mas não custa lembrar que amadores também cometem atos criminosos.

Apesar do depoimento do comerciante que ajuda a sustentar a tese de crime
comum, alguns fatos pedem explicações. Várias pessoas que estiveram próximas de Celso Daniel e Sombra — inclusive o garçom que os serviu no restaurante Rubayat na noite do crime — tiveram mortes violentas. Embora os inqueritos policiais tenham concluído que os episódios não tem uma relação com o sequestro, um número razoável de observadores não acredita nisso. A dificuldade é que, mais uma vez, não surgiram fatos capazes de contestar a versão policial.

O mesmo legista que assinou um laudo médico sem anotar o mais leve sinal de tortura de Celso Daniel durante sua passagem pelo cativeiro, fez um segundo laudo, anos mais tarde — já na época do mensalão — alterando suas conclusões, um pouco antes de morrer, em circunstancias típicas de um suicídio.

A ocorrência de tortura é um dado que tem importância para quem sustenta a tese de crime encomendado: o prefeito teria sido torturado para revelar a senha de acesso à uma conta em paraíso fiscal onde teria guardado o botim resultante da corrupção na prefeitura. Como já observei em outro momento, uma dificuldade dessa versão é que não há provas da existência dessa conta secreta nem referências sobre paraíso fiscal.

Os registros de enriquecimento suspeito, em Santo André, envolvem a compra de imóveis e abertura de empresas em nome de laranjas — e já eram conhecidas antes do sequestro. A polícia encontrou, entre os livros do apartamento do prefeito, uma espécie de dossiê sobre essas denúncias, que fora entregue a Celso Daniel por Gilberto Carvalho, que era assessor da prefeitura, na época, e hoje é secretário particular do presidente Luiz Inacio Lula da Silva.

Ouvi um médico que foi convidado a assistir a autopsia de Celso Daniel. Mostrando os laudos, que havia guardado, ele me assegurou jamais ter reparado em marcas de tortura no corpo do prefeito — e que essa hipótese não foi levantada por nenhum dos presentes ao local. O corpo do prefeito apresentava manchas vermelhadas em alguns locais, mas não eram feridas nem machucados.

Procurei uma autoridade que sustentava que o prefeito sofrera tortura no cativeiro mas não ouvi um relato que fosse compatível com os laudos do IML. Para ter sido torturado do modo que se descreveu, Celso Daniel teria de ter sido levado para um segundo cativeiro em pouco mais de 24 horas, o que não foi confirmado pelas investigações.

A tortura e as mortes em paralelo podem reforçar convicções mas não alteram o núcleo da discussão — que é saber se houve um crime encomendado ou não.

Numa dessas reportagens publicada num dos oito aniversários da morte do
prefeito, o jornalista João Gabriel de Lima, que hoje é diretor da revista Bravo!, chegou a seguinte conclusão num matéria de capa publicada pela Veja: os dados reunidos pelas investigações não permitem afirmar que Sombra encomendou a morte do aliado e amigo.

Para provar que Celso Daniel foi vítima de um crime de mando, como dizem os promotores, seria preciso a apresentação de relatos críveis de uma articulação destinada a sequestrar e liquidar o prefeito de uma das principais cidades brasileiras, uma das jóias da futura campanha de Lula e um provável ministro em caso de vitória. Até o momento, isso não foi feito.

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Luis Nassif

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