Fernando Horta
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Cegos, Surdos e Loucos, por Fernando Horta

Cegos, Surdos e Loucos, por Fernando Horta

No primeiro semestre da faculdade de História, na saudosa UFRGS, tive a oportunidade de cursar uma disciplina que era geralmente direcionada aos alunos com mais bagagem: História da Cultura Ocidental. Por algum motivo, naquele ano ela não tinha pré-requisito e lá foi aquele rapaz recém-saído do segundo grau a assistir aulas sobre “cultura”, “ocidental” … em forma de “história”. Logo de início, o falecido professor Luiz Roberto Lopez deixou clara sua preferência por uma disciplina “visual”. Haveria textos, claro e todos estavam já no “xerox”, mas em cada aula o professor iria despejar de 150 a 200 slides de sua monstruosa e belíssima coleção.

Lopez dissertava com uma verve e uma didáticas primorosas sobre História da Arte, contando detalhes estilísticos e partes da vida dos pintores e escultores. Enquanto a ideia de “arte” estava atrelada à ideia de “belo”, meus sentidos acharam as aulas maravilhosas. A arte grega e a romana me pareciam toscas, sem os conhecimentos sobre profundidade e o jogo de luz sombra. Chegava-se no trecento (primeira fase do Renascimento) e as pinturas tinham erros de proporção gravíssimos. Braços e pernas eram maiores que o corpo. Mas no quatrocento ficava tudo uma perfeição. O belo em condição primorosa. É Michelangelo ordenando que seu Moisés falasse. Era só o que faltava.

O cinquecento vinha com cores mais escuras a predominância do preenchimento frente ao traço, a diminuição do tamanho das obras e as questões urbanas aparecendo como temas importantes. E então a gente via a ideia-síntese de que toda obra de arte é uma obra de vários autores. Há aquele que a faz, mas há também a sociedade que a produz, que a permite existir. A sociedade com a qual a obra dialoga, recebendo seus insumos e provocando um pensar. A arte funciona como um acumular de pensamentos, sentimentos, medos e sonhos. O artista apenas dá vazão – obviamente através de si como lente – para um turbilhão de sentidos que são materializados num momento. A arte renascentista, que fora objetivamente uma arte de louvação ao homem e assim, por conseguinte, louvação ao Deus e à sua Igreja Católica, dava lugar no cinquecento a uma releitura protestante. Era o incômodo da sociedade que questionava a Igreja Católica transposta para as telas. Era o urbano se tornando mais importante que o religioso.

Enquanto a disciplina seguia, em algum lugar no século XIX houve um divórcio entre a noção de “belo” e a noção de “arte”. A pintura que tanto tentava representar as realidades haveria de ser superada pela fotografia. Houve um mal-estar no ocidente. Nada conseguiria reproduzir a realidade com tamanha precisão como aquela máquina estranha, que na segunda década do século XIX passava a retratar o mundo. Me recordo que Luiz Roberto Lopez dedicou uma aula inteira a esta ruptura. O sentido de belo apenas ocasionalmente voltaria a dançar com a arte. E sempre por entre o interesse do artista, e não mais como imposição fundante. A explicação era sólida e racional. Mas a ignorância do aluno não aceitava este divórcio, e tal qual um filho que nega a separação dos pais, eu passei a me colocar contrário a esta “arte moderna”. O que era o cubismo? O dadaísmo? Senão formas imperfeitas e mal postas em telas mal pintadas que jamais – ja-mais – teriam o condão de se equipararem ao Renascimento. Arte moderna então … lixo.

Assim pensava arrogantemente aquele aluno, que dentro de uma sala tentava transformar a vida do professor num inferno para mostrar o nível de “degeneração” artística que tudo vinha se tornando no século XX. Me recordo que numa das aulas, cheguei a levar uma reportagem de “ass painting”, que era o “último grito” em “Niu Iórqui”. “Ass painting” consistia em a artista ficar nua com seu ânus virado para a tela, derramar tinta sobre suas partes “pudendas” e, em seguida, soprar com força seus gases internos para que produzissem uma marca na tela. Eu não sei se eu fiquei mais ensandecido de ler a reportagem artística ou de leva-la ao professor e ver sua expressão quando disse “que interessante!”. Estava claro para mim que aquele professor não sabia o que ensinava. E estava claro para o professor que ele não me ensinava o que sabia. Ambos chegamos à conclusão que era necessária mais força.

De minha parte, me tornei mais contundente nas críticas, sobretudo na “arte” do século XX. Todas críticas infantis. Nada que prestasse. De parte do professor, recebi um convite: haveria uma apresentação da orquestra da universidade e ele me perguntou se eu gostava de música clássica. Respondi que sim. Claro, conhecia Mozart, Beethoven, Bach e até Ravel. (O “até” vai para demonstrar o pedantismo e ignorância do aluno). O professor me convidou para assistir Masao Ohki, sinfonia número 5. Ao chegarmos no local ele me colocou bem na primeira fileira, bem defronte ao espetáculo e saiu para o meio do teatro com um leve sorriso. E fiquei a li ouvindo Masao Ohki tocado quase dentro dos meus tímpanos. A partir do décimo quinto minuto começa uma dissonância metálica desconfortável. Aos vinte e três minutos, a dissonância metálica fica quase insuportável, mas é a partir do minuto 30 que você começa a se arrepender de ter sentado na frente.

Ao sair, atônito, da apresentação, o professor me perguntou: “o que achaste?”. Do alto da minha ignorância eu disse que era exatamente sobre o que eu falava, que aquela sinfonia não chegava aos pés da beleza de uma quinta ou mesmo da nona de Beethoven. Aquilo não era arte, eu tinha ficado muito transtornado com a apresentação, inquieto e desconfortável. Luiz Roberto Lopez era baixinho, e gostava de falar caminhando. Depois de alguns passos em silêncio ele me disse: “O nome da sinfonia é Hiroshima. Me surpreende que você queira que o autor mostre algo de belo sobre Hiroshima. Me surpreende que você sequer tenha buscado saber o que ia ouvir. Arte é o sentimento canalizado e não a técnica. Arte é o questionamento, a visão enquadrada e não o domínio de pincéis ou cinzéis.”

Levei algumas horas para compreender a lição. Levei alguns meses refletindo sobre ela.

O que assusta, não é a ignorância do MBL e seus seguidores atacarem uma mostra de arte Queer. O que assusta é a postura do Santander de deixar-se ser pautado por pessoas cegas em sua ignorância, surdas para qualquer argumento racional e completamente loucas em seu ódio ao diferente. A própria reação do MBL deixa claro que a exposição é essencial. Que precisa acontecer. Esta e outras. O próprio despreparo de uma parte da sociedade ao se enxergar no espelho é a demonstração cabal da necessidade de mais Arte, mais Filosofia e mais História. Precisamos ser desconcertados, precisamos ser transtornados. Precisamos ficar desconfortáveis com o mundo. Arte mostra o que a sociedade não quer ver, a Filosofia questiona o que ela dá por certo e a História lembra do que ela quer esquecer.

Fernando Horta

Somos pela educação. Somos pela democracia e mais importante Somos e sempre seremos Lula.

16 Comentários

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  1. Democracia

    Toda e qualquer manifestação artistica deve ser respeitada.

     

    Toda e qualquer manifestação popular, individual ou organizada deve ser respeitada.

     

    Sempre cabera ao consumidor o seu consumo…

  2. Luiz Roberto Lopez

    Fiz esta diciplina aos sábados pela manhã na casa de cultura Mário Quintana. Me emocionei ao lembrar da maravilha que eram as aulas do grande professor Luiz Roberto Lopez. Parabéns pelo texto.

  3. Luiz Roberto Lopez

    Fiz esta diciplina aos sábados pela manhã na casa de cultura Mário Quintana. Me emocionei ao lembrar da maravilha que eram as aulas do grande professor Luiz Roberto Lopez. Parabéns pelo texto.

  4. “O que assusta, não é a

    “O que assusta, não é a ignorância do MBL e seus seguidores atacarem uma mostra de arte Queer. O que assusta é a postura do Santander de deixar-se ser pautado por pessoas cegas em sua ignorância, surdas para qualquer argumento racional e completamente loucas em seu ódio ao diferente.”

    Não assusta não. É o sistema financeiro aqui representado pelo Santander que transformou a economia nesta tragédia e que esta ocupando os estados nacionais, fazendo uso de suas riquezas e colocando a margem as nações. 

    A forma de ocupação financiou, no golpe brasileiro, esses grupos fascistas e portanto são seus criadores. Pra mim o mais chocante foi ver o principal agitador contra a mostra: ele é negro. Pior ainda: o Holliday do MBL de São Paulo é negro e homossexual. O que esperar de resistência desse Brasil representado por essas pessoas?

  5. os erros desta exposição

    Um belíssimo texto. A bem da verdade, eu também sempre considerei a arte moderna um lixo, uma enganação. Mas compreendi a lição do professor e vou tentar aolhá-la comolhos diferentes a partir de agora.

    Mas vamos a questão da exposição em si.

    è justo que todo e qualquer grupo social ou comunidade tenha o mesmíssimo direito a expor sua cutlura, história, crenças e sentimentos. Logo sou favorável a que haja exposição de cultural homossexual. Ponto final quanto a isto.

    O que me incomoda profundamente é que há várias obras que simplesmente provocam ou mesmo ofendem valores caríssimos aos católicos. Qualquer outro grupo não católico pode falar abertamente que discorda de nossa cultura ou história, e pode professar contra nós. Mas sempre com respeito. Desrespeitar jamais. E há obras que desrespeitam imagens sagradas cristãs.

    Os homossexuais exijem (com razão) que não podem ser perseguidos, enxovalhados ou humilhados por outros grupos. Porém, tudo é uma vida de mão dupla, e se querem exigir respeito com eles e seus valors, devem também respeitar os outros e os valores dos outros.

    Sou favorável que se mantenha a exposição, mas que obras que ofendam claramente e diretamente valores caros a outros grupos sejam retiradas. Simples assim.

    Se você não concorda com o catolicismo, és livre pra nãos er católico e livre pra expor publicamente por que não concorda. Mas ofender, desrespeitar, jamais.

    Sou católico, não sou homofóbico, já defendi homossexuais mais de uma vez publicamente, desejo uma sociedade livre do preconceito e homofobia. Então porque os homossexuais (ou uma grande parte deles) tem que detestar e perseguir a minha religião?

    E se a questão é mágoa profunda por conta de todas as equivocadas perseguições que a Igreja já prompoveu contra os homossexuais, então afrimo: Construir uma cultura com base em mágoa e dívida, é contruir uma cultura condenada ao fracasso. Não sigam por este caminho.

    1. Sobre a liberdade

      Gy Francisco, acho perigoso esse tipo de raciocínio. Ao aceitar a censura de algumas obras, abre-se precedente para a censura de todas. Tudo pode ser discutido, questionado, contestado. E a linguagem que o artista usa para discutir, questionar e contestar é a subjetividade, o simbolismo, as metáforas, analogias, referências… A releitura de um conjunto de símbolos, a mistura desses símbolos com outros de significação distinta e até oposta não configura, necessariamente, desrespeito. Isso está perfeitamente dentro do campo da discussão e da criação artísticas. Existem leis que protegem a liberdade de crença e o respeito a objetos de culto. Elas devem mesmo existir, mas é preciso delimitá-las frente a um direito bem mais importante: o direito à liberdade de expressão. Esse tipo de lei deve ser utilizado para coibir ataques diretos a pessoas, tentativas gratuitas de humilhação, incitação ao ódio, vandalismo contra templos e acervos, mas nunca para proibir manifestações artísticas. Ninguém ganha com esse tipo de proibição, pois o resultado seria uma limitação tosca e desnecessária da capacidade social de pensamento e reflexão. Nenhuma das obras da exposição interrompida chega perto de atitudes criminosas. Um exemplo de crime nesse sentido é o caso dos traficantes que estão destruindo casas nas quais se praticam cultos de determinadas religiões. E o pior: coagindo os próprios praticantes a promoverem a destruição. É preciso ter em mente que a liberdade religiosa deve sempre pressupor também a liberdade de crítica às religiões. Caso contrário, não seria liberdade. A religião, como um conjunto de crenças e ideologias, não pode ter uma condição privilegiada dentro da arena de debates, assim como nenhuma outra questão. Se alguém utilizasse, por exemplo, símbolos do universo LGBT, como a bandeira do arco-íris, para criticar algum comportamento da militância LGBT, teria que ter todo o direito de expor sua obra (caso alguma curadoria a julgasse relevante), desde que não estivesse incitando o ódio ou promovendo a discriminação. Mas se simplesmente decidisse pisar sobre a bandeira, como fez um pastor em um programa de tevê estrangeiro, aí deveria ser impedido, pois seria uma clara tentativa de humilhação gratuita. Veja quantos significados há na imagem do Cristo crucificado: o martírio, o sacrifício, a redenção, a expiação… Quando o artista faz brotar braços nessa imagem, cada qual oferecendo uma futilidade qualquer, ao mesmo tempo remetendo a uma divindade de outra crença (o hinduísmo) e ao Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci, perceba a riqueza de significados e reflexões que daí emerge, seja por complementação, seja por contraste,  pelas referências, pelo estilo… O sistema capitalista, a cultura ocidental, o papel da religião, o consumismo e até a oposição entre os ensinamentos de Cristo e a visão de mundo dominante. As interpretações, obviamente, são múltiplas e não necessariamente críticas à religião. Agora pegue o significado das hóstias: o pão, o corpo… Ao escrever nelas nomes de partes do corpo ligadas à atividade sexual, o artista acrescenta uma nova camada de significados e reflexões e “explode nossa cabeça”. Crime seria não permitir a utilização artística desses símbolos. O importante é preservar a vida, a liberdade e a dignidade das pessoas, com total respeito à integridade de todos e com vistas à promoção da paz. Proibições nesse sentido resultariam em uma sociedade mais burra, menos crítica e menos consciente de suas conquistas e desafios.

  6. Enquanto esse “Movimento de

    Enquanto esse “Movimento de Boçais Livres” (e outros) não for tratado pelo que é, ou seja, um bando de estúpidos de marca maior, eles vão só ganhar espaço. É im-pres-si-o-nan-te como tanta gente boa não se apercebe disso. É um er-ro ficar de “cavalheirismo” com esses cretinos..

  7. E ideologicos

    Por que o espanto? A arte e artistas em diversos momentos foram atacados pela “sociedade do bem pensar”. Não entendem o que vêem ou ouvem. Por falar em incomodar e no maldito ou à margem, como não pensar em Caravaggio e sua representação de uma igreja bem distante daquela que até então se estava acostumado a ver representada nas catedrais romanas… Caravaggio fez a arte dar um salto logo apos Michelangelo e outros artistas da época terminarem parte da Capela Sistina. Usando do humor, ironia, perspicacia, recolocou a igreja catolica do santo papa em um lugar à parte e não mais no centro do universo. O MBL da época detestou Caravaggio, assim como Picasso, samba, e tantos mais.

  8. Susto do quê?

     

    Os bancos roubam metade do orçamento público, devastam a população com a agenda neoliberal, derrubam presidentes de esquerda; 

    Vejam o que o Santander está fazendo com Porto Rico

    Como alguém instruído ainda se assuta com um banco golpista atender ao mbl??????

  9. Vários anos de História da

    Vários anos de História da Arte, Rosângela Cherem é o nome dela, uma das melhores professoras que já tive, tudo o q escrevestes e  tudo e muito mais que não cabe em um só texto. 

    Mas  o fim da picada é o MBL através da , quem sabe um eufemismo para cloaca favor postar,   de seu ”líder” vir dizer que prezam pela civilidade, não prezam nem pela língua mãe.

  10. Precebe-se o mestre por seus discipulos

    Caro Fernando,

    Nunca vi uma aula, uma revisão extremamente curta, tão eficaz como esta que focastes. Minha visão sobre a arte mudou radicalmente sobre o que ensinastes.

    Ontem expressei um pensamente que fechou perfeitamente com tudo o que disse. 

           “Não estamos em crise, continuamos nela. Antes nos viamos por uma vidraça mas agora nos vemos pelo espelho”.

  11. Engraçado

    O moralismo mebelento e bolsonariano.

    É um grito de socorro.

    “Por favor ajudem a esconder e controlar o que não consigo.”

    [video:https://youtu.be/22VmzX35pvM%5D

    Ao longo dos tempos sempre foi a moral sexual a causar rubores e espasmos.

    A imoralidade da violência física e moral, da miséria extrema, das guerras e genocídios, da exploração, do lucro espúrio, da indiferença e diferença social…essa imoralidade é convívio eterno.

     

  12. muito bem

    Continue assim FERNANDO.

    Dessa gente tipo Holiday (isso é nome?!) não podemos esperar nada de bom. Temos que os combater, não quero que pautem meu conhecimento. Eu decido o que quero ler, ver ou ouvir.

    FORA FASCISTAS! 

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