Cinquenta anos de samba pelas Quebradas do Mundaréu, por Daniel Costa

Não seria exagero comparar a trajetória do samba de São Paulo com algum personagem da dramaturgia de Plínio Marcos

Cinquenta anos de samba pelas Quebradas do Mundaréu

por Daniel Costa

“Eu conto história das quebradas do mundaréu. Lá de onde o vento encosta o lixo e as pregas botam os ovos. Falo da gente que sempre pega o pior, que come da banda podre, que mora na beira do rio e quase se afoga toda vez que chove, que só berra da geral sem nunca influir no resultado. Falo dessa gente que transa pelos estreitos, escamosos e esquisitos caminhos do roçado do bom Deus. Falo desse povão, que apesar de tudo, é generoso, apaixonado, alegre, esperançoso e crente numa existência melhor na paz de Oxalá”.

É assim que o dramaturgo santista Plínio Marcos abre o disco que viria a ser referência para aqueles que pretendem conhecer os caminhos do samba de São Paulo, um caminho sinuoso, com altos e baixos; vitórias e derrotas. Não seria exagero comparar a trajetória do samba de São Paulo com algum personagem da dramaturgia de Plínio. Vivendo a margem da famigerada indústria cultural, o samba paulista foi traçando seu caminho nas calçadas, nas rodas, nos botequins, nos cordões e escolas sem renunciar a suas características e identidade.

Gravado em janeiro de 1974 e lançado no mesmo ano pela gravadora Chantecler, o álbum “Plínio Marcos em prosa e samba – Nas Quebradas do Mundaréu”, apresentou ao grande público os compositores, Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro. Ao lado de Plínio, os três compositores apresentaram a síntese do samba feito em São Paulo. Indo do rural ao urbano, o álbum apresenta a multiplicidade de sotaques e sonoridades que marcam nosso samba. Como o sotaque rural de Toniquinho Batuqueiro em “Ditado Antigo”, o lirismo de Zeca da Casa Verde em “Linda Manhã” e a denúncia do racismo e da violência policial feita por Geraldo Filme em “Silêncio no Bixiga”. O samba de Geraldo foi uma homenagem póstuma a Pato N’Água, então apitador do Vai-Vai que fora abatido pelo famigerado Esquadrão da Morte.

Quem quiser saber meu nome, não precisa nem perguntar. Eu me chamo Plínio Marcos, sou pagodeiro do lugar”, o disco lançado em 1974 não foi a primeira iniciativa de Plínio para a divulgação do samba da Pauliceia. Em 1971 fora lançado pela Fermata a trilha do espetáculo, Balbina de Iansã, com composições de nomes como Jangada, Carlão, Toniquinho Batuqueiro, Zeca da Casa Verde e Geraldo Filme interpretadas por Sílvio Modesto, Talismã e Grupo Barra Funda. O disco passou quase despercebido pelo público e crítica apesar do relativo sucesso obtido pela montagem.

De acordo com Oswaldo Mendes, biógrafo de Plínio a estreia de Balbina de Iansã foi uma festa, “a rua Albuquerque Lins, onde fica o Teatro São Pedro, estava cheia de gente, guardas proibiam até a entrada de carros no quarteirão. Na porta do teatro, num palanque, instrumentistas; e na rua, desfilando, uma escola de samba”. Porém, o sucesso da primeira noite não garantiu a permanência da peça no teatro localizado na Barra Funda, transferida para a quadra do Morro da Casa Verde, onde enfim Balbina encontra seu público.

Quanto a aproximação do dramaturgo com os sambistas da capital, Mendes aponta a parceria estabelecida com Carlão Costa, o Carlão do Boné com quem fundaria a Banda Bandalha, como marco inicial. O nome escolhido para a banda, segundo Mendes, remetia a figura de Nenê Bandalho, um jovem bandido metralhado pela polícia ao se render. Ainda segundo Mendes, na Bandalha cabiam todos, “ilustres e anônimos, malandragem, senhoras de respeito, prostitutas, travestis, batuqueiros e doentes do pé, na Banda Bandalha quem chegasse, estava bem chegado”.

O samba é a forma da gente minha, falar dos seus mais ternos sentimentos. E é nesse embalo que eu vou. Vou contar do samba da Paulicéia e de sua gente, que é do tamanho do mundo, porque não se acanha de contar as histórias do seu pedaço de chão de terra firme. Com licença dos mais velhos, vamos de samba”, e assim o espetáculo que fora pensado de forma despretensiosa ficaria em cartaz por oito meses no Teatro de Arte do TBC.

Como explica Osvaldo Mendes, “o sucesso de Humor grosso e maldito das quebradas do mundaréu rendeu em setembro de 1974, convite da Secretaria de Turismo da Prefeitura para uma série de 24 palestras shows, intitulada Plínio Marcos canta a história do samba de São Paulo. Fazia parte do Projeto Universitário que procurava despertar o interesse por uma carreira profissional, o Turismo, e enfatizar a hospitalidade que se deveria dispensar aos visitantes. Uma das estratégias era aproximar os jovens paulistanos da história e da cultura de sua cidade. Humor grosso também foi o trunfo de Plínio quando as coisas engrossaram nos anos seguintes. Em abril de 1976, ele reuniu os pagodeiros disponíveis – Geraldo, Zeca, Talismã, Silvio Modesto e  Toniquinho – e começou uma nova temporada do espetáculo na Igrejinha, casa de música popular brasileira no Bixiga, na confluência das ruas Santo Antônio e Treze de Maio. Sem trabalho na imprensa e com as peças proibidas, Plínio inventava o que fazer”.

Ôôô seu Dionísio da Barra Funda, Inocêncio Mulata do Camisa Verde e Branco, Nenê da Vila Matilde, Vitucho, Marmelada, Jamburá, Sinval do Cambuci, Nego Braço, Carlão do Peruche, Pé Rachado do Vai-Vai, a gloriosa alvinegra do Bixiga. Pato n’água, Vassourinha, seu Zezinho do Morro, Dito Caipira da Unidos de Vila Maria.

A todos vocês que estão no samba desde o tempo do tamborim quadrado e do surdo de barricão. Tempo em que a polícia acabava com o pagode na base do chanfralho. Tempo que o negro pra sustentar samba na rua tinha que fazer e acontecer. A todos vocês eu peço licença.

Dona Sinhá da Barra Funda, Dona Eunice da Lavapés. Donata. Senhoras de valor provado nos desfiles da avenida. A benção tias e licença que eu vou falar do samba da Paulicéia. Juarez da Cruz da Mocidade Alegre do Bairro do Limão, Eduardo Basílio da Rosas de Ouro da Vila Brasilândia, Ângelo do Vai-Vai, Feijoada e Chiclé do Vai-Vai também, alô Mestre Mala, irmão lá do Tatuapé, o dono do samba, alô-alô Renato Correia de Castro, alô-alô Sarmento, vocês todos que são do samba, me deem licença que eu vou falar do samba da Paulicéia. Vou contar a história de Geraldão da Barra Funda, Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro. Três histórias do samba de São Paulo. Vou no balanço do samba dos batuqueiros de Santa Izabel. E vou na paz de Oxalá, que me guarda e guia”.

O espetáculo que misturava piadas e causos em meio aos sambas, além de uma forma de Plínio driblar a censura pesada imposta pela ditadura civil-militar que tinha proibido várias de suas obras usavam a improvisação, a linguagem da malandragem e genuína cultura popular para denunciar a violência do Estado. Antes de Geraldo Filme cantar “Silêncio no Bixiga”, o dramaturgo vinha com uma introdução que denunciava o arbítrio vigente, vejamos: “O maior artista popular brasileiro, o maior apitador de samba que já houve em São Paulo, o melhor chefe da torcida organizada do Corinthians. Ele amanheceu, uma manhã, boiando numa lagoa, comido de peixe e de bala. A notícia chegou no bairro do Bixiga na hora da Ave Maria e o povo das quebradas do mundaréu chorou a morte do grande sambista. Geraldo, legítimo poeta do povo, chorou por todos nós nessa joia que é Silêncio no Bixiga”.

Dirigido por Emílio Fontana, o espetáculo e por consequência o álbum despertou o público para um tipo de produção musical que andava fora da mídia. A cidade que na década anterior havia se tornado a terra dos festivais, berço da nova MPB, de movimentos como a tropicália e porto seguro para artistas surgidos durante a bossa nova como Alaíde Costa, Johnny Alf e Claudete Soares, relegava seus sambistas ao quase anonimato, sendo reconhecidos apenas por aqueles que faziam parte ou frequentavam as escolas de samba.

Plínio Marcos em Prosa e Samba apontava para uma direção muito diferente da produção de figuras como Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini, os dois principais nomes do samba de São Paulo para o grande público. O disco do “quarteto” apontava para um samba negro paulista,  feito por netos de escravizados, que lutavam para manter a tradição em suas comunidades, escolas e quintais. Forjando um samba urbano que não renegava o passado rural, pelo contrário, não só exaltava essa herança como procurava adapta-lo aos “novos tempos”.

Composto por treze faixas, o álbum é aberto por Geraldo Filme, grande compositor e articulador político do carnaval e do samba paulistano, com passagem por escolas como o Paulistano da Glória,  Unidos do Peruche e Vai-Vai, responde por cinco faixas: “Tiririca”; “Vou sambar n’outro lugar”; “Tradições e festas de Pirapora”, samba composto para a Unidos do Peruche no carnaval de 1971; a já mencionada “Silêncio no Bixiga” e “Tebas. O escravo”, samba do Paulistano da Glória para o carnaval de 1974.

Em seguida entra em cena, José Francisco da Silva, ou Zeca da Casa Verde, o compositor que passou por agremiações como Camisa Verde e Branco, Morro da Casa Verde e Rosas de Ouro apresenta quatro sambas: “Brasil recebe o mundo de braços abertos”, samba do Morro da Casa Verde para o carnaval de 1972; “Congada”, e as líricas “Linda manhã” e “Noite encantada”.

Por fim quem adentra a roda é o piracicabano Toniquinho Batuqueiro, que assim como milhares de jovens decidiu trocar o interior pela capital e enquanto trabalhava como engraxate na Sé e República trava contato com a tiririca, e outras mirongas. Compositor de grande versatilidade, ainda integrou a ala de compositores das escolas Rosas de Ouro, Unidos do Peruche e Unidos de Vila Maria. No disco é responsável pelas faixas: “Ditado antigo” e “Bloco do Chora Galo”.

O disco ainda conta com o tema folclórico, “De Pirapora a Barueri”, também interpretada por Toniquinho e a instrumental “Samba de lei”, com o conjunto, Batuqueiros de Vila Santa Isabel, responsáveis pelo acompanhamento musical do álbum. Ao completar cinquenta anos, “Plínio Marcos em Prosa e Samba – Nas Quebradas do Mundaréu” continua uma obra obrigatória para quem deseja conhecer os caminhos e descaminhos do samba de São Paulo e a faceta sambista de Plínio Marcos, o bendito maldito, como bem nomeou Oswaldo Mendes na essencial biografia desse santista insubmisso.

Ao apresentar uma seleção de peças do autor, a pesquisadora e crítica teatral Ilka Maria Zanotto aponta que, “Plínio Marcos dizia-se um contador de histórias com princípio, meio e fim, e era bom nisso como poucos em nossa dramaturgia; aristotélico, sem que isso o preocupasse minimamente, mas por intuição. Esquadrinhava suas criaturas como o ourives contempla as facetas do prisma”, a primazia apontada por Ilka fica perceptível para aquele que ouvir o disco do começo ao fim, as intervenções de Plínio como introdução aos sambas serve como a linha que costura e traz coerência para essa pequena história do samba de São Paulo cantada por Geraldo, Zeca e Toniquinho.

Daniel Costa é historiador, pesquisador, compositor e integrante do G.R.R.C Kolombolo Diá Piratininga.

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