Denúncia vazia: com crença e convicção, mas sem provas nem razões, por Marcelo Neves

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Denúncia vazia: com crença e convicção, mas sem provas nem razões

por Marcelo Neves

No regime legal do inquilinato, a chamada denúncia vazia é aquela em que o locador tem o poder jurídico de pedir a retomada do bem imóvel sem qualquer razão ou justificativa.  Na locação residencial, dada a suposição da hipossuficiência do locatário, a legislação atual é restritiva, só a admitindo para contratos de locação por trinta meses ou mais, no fim de sua vigência.

A expressão do direito privado pode ser aplicada, com a devida contextualização, à denúncia do Ministério Público Federal contra o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, especialmente às alegações finais apresentadas em 2 de junho de 2017, mediante peça encabeçada pelo Procurador da República Deltan Martinazzo Dallagnol. As alegações finais revelam crença e convicção, mas carecem de provas e razões.

Dallagnol e seus colegas sustentam (p. 52):  

“Antes de se passar à análise das provas, para, a partir delas, concluir pela presença de juízo de convicção, suficiente para uma condenação criminal, da existência dos crimes e da sua autoria, é necessário, ainda que brevemente, abordar algumas premissas teóricas relevantes.”

Essas premissas teóricas são baseadas exclusivamente em uma monografia do próprio Dallagnol. Os procuradores recorrem ao “explanacionismo”, que enfatiza as inferências abdutivas no campo do realismo científico. A respeito, citam, sem referências bibliográficas, de Charles Sanders Peirce a Sherlock Holmes (pp. 58-59):

“O explanacionismo tem por base a lógica abdutiva, desenvolvida por Charles Sanders Peirce no início do século XIX [sic]. Para se ter ideia da força que assumiu a abdução, que foi denominada inferência para uma melhor explicação (“inference to the best explanation”) pelo filósofo [Gilbert] Harman, pode-se citar uma obra da década de 80 em que Umberto Eco, junto com outros renomados autores, examinaram exemplos do uso dessa lógica em inúmeras passagens de Sherlock Holmes.”

Tal uso de autores e obras importantes em um contexto em que não se aplicam revela antes um tipo de folhetim bacharelesco do que uma argumentação jurídica consistente. A inferência abdutiva defendida no realismo científico de Charles Sanders Peirce aplica-se ao campo das ciências em sentido estrito, nas quais a verdade ou a falsidade decorrente de uma inferência não prejudica diretamente nenhum ser humano. Tal inferência pode ser revista a qualquer momento, sem prejudicar uma pessoa humana. Isso porque a inferência abdutiva tem a seguinte estrutura na obra de Charles Peirce (Collected Papers, 5, Cambridge, MA, 1934-1935, p. 189):

“O fato surpreendente, C, é observado. Mas se A fosse verdade, C seria um fato natural. Logo, há razões para suspeitar que A seja verdade” (grifei).

Como se verifica, a inferência abdutiva é digna para amparar uma suspeição.  

No campo do normativo, especialmente no âmbito jurídico, seria absurda a admissão de provas simplesmente por inferências abdutivas. Enquanto na ciência propriamente dita (primariamente cognitiva) a argumentação permanece indefinidamente aberta sem prejuízo para nenhum dos envolvidos no discurso científico (pelo contrário), o direito (primariamente normativo) envolve um discurso que exige uma decisão que interrompe a cadeia argumentativa, para que se alcance um mínimo de segurança jurídica. Daí por que as provas no direito, particularmente no direito penal, são limitadas e exigem inferências indutivas inquestionáveis no momento da decisão condenatória, não sendo suficiente a suspeição. As inferências abdutivas de Sherlock Holmes a respeito de crimes servem ao romance ou à novela policial, dimensão da arte ou do entretenimento, mas não podem servir de padrão a um investigador, promotor ou juiz no Estado de direito.   

O grande risco de jovens estudantes brasileiros que, sem nenhuma base teórica sólida anterior, visitam centros acadêmicos dominantes no exterior, fazendo, por exemplo, um LLM em Harvard, um curso massificado para estrangeiros, é voltar ao Brasil sem nenhuma capacidade crítica em relação ao que ouviu dizer por lá. Tornam-se muitas vezes “papagaios”, sem capacidade reflexiva sobre os autores a quem se aproximaram em sua estada de estudo no exterior. Essa situação manifesta-se nos “pressupostos teóricos” das alegações finais do MPF a respeito da suposta aquisição de um apartamento tríplex pelo ex-Presidente Lula, da qual se infere abdutivamente crime de lavagem de capital e corrupção passiva.

A fragilidade dos pressupostos teóricos combina com a carência de prova capaz de motivar um convencimento judicial. Dallagnol e seus colegas recorrem à noção de prova indiciária”, relacionando-a à inferência abdutiva. Esse tipo de prova é superestimado pelos senhores procuradores, que recorrem até mesmo ao Supremo Tribunal Federal. Entretanto, não levam a sério a advertência do próprio STF, por eles citada (p. 58), de que “seu uso requer cautela e exige que o nexo com o fato a ser provado seja lógico e próximo” (HC 70.344). De acordo com a peça dos procuradores, bastam, sem qualquer cautela, os indícios, mas não o nexo lógico e próximo com o fato a ser provado.

Dallagnol e seus colegas reconhecem expressamente “a dificuldade probatória”, mas se concentram “em medir o ônus da acusação” (p. 53) na busca desesperada por indícios, escolhidos arbitrariamente, como se formassem verdadeira “prova indiciária”. A alegações finais referem-se frequentemente, de maneira genérica, com um quê de mantra, a um “caixa geral de propinas”, mas em nenhum momento esclarece-se do que se trata. E qual a relação do suposto “caixa” com uma ação ou omissão ou benefício do ex-Presidente Lula? Não há nenhuma prova de tal conexão.

Enfim, as “provas” invocadas nas alegações finais dos procuradores são decorrentes de “colaborações premiadas” de homens de empresa, as quais, segundo a lei, servem para a “obtenção de provas”, mas não constituem provas; de planilhas de custos das empresas referentes ao imóvel da praia de Guarujá e outros imóveis; e de conversas telefônicas ou e-mails em que homens de empresa discutem a reforma do apartamento de Guarujá, com a suposta intenção de servirem ao ex-Presidente e à sua falecida esposa. Não consta nenhuma ação ou omissão, nenhum benefício potencial ou atual do ex-Presidente em relação à obtenção do referido imóvel localizado em Guarujá. Não se prova, em nenhum momento, que o ex-Presidente tenha sido proprietário do mencionado apartamento.

As alegações finais de Dallagnol e seus colegas são um misto de fundamentalismo jurídico-religioso (muita crença e convicção em prejuízo das provas e razões), neoconstitucionalismo (princípios, conceitos e métodos vagos, facilmente manipuláveis, em detrimento de regras) e direito alternativo às avessas (postura punitiva contra legem, em detrimento dos direitos assegurados legalmente).                

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Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

12 Comentários

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      1. Não basta escrever em português

        Pro Dallagnol entender, não basta escrever em português. Como diz o Romulus, tem que desenhar, e com bichinhos.

    1. Razões como fundamento

      Em primeiríssimo lugar, quero destacar que razões (fundamento) é o plural de razão. Não podemos fazer pactos de mediocridade. Quando Marcelo Neves fala em razões, remete ao entendimento de que inexistem fundamentos irrefutáveis e mais ainda, existe uma profunda superficialidade no uso da teoria das inferências abdutivas, onde Dallagnol na verdade faz uma salada intragável de autores e obras em verborragia sem sentido para condenar apenas com base em provas indiciárias.  Então, antes de pedir uma correção, acho que você deveria ao menos entender superficialmente a semântica aplicada ao texto deste Jurista que é muitíssimas vezes mais reconhecido e respeitado no mundo que essa vexatória peça com CTR + C e CTR+ V deste procurador que em busca de olofotes se passa por intelectual da miscelânia de nada sobre nada. Assim corrigindo você: razão não há. Razões?? Menos ainda.

  1. A peça acusatória é como papel higiênico usado

    Prezados,

    Pelo que respeitados e renomados juristas como Marcelo Neves, Eugênio Aragão, Lênio Streck e outros, essa peça acusatória do núcleo curitibano da Fraude a  Jato, liderado por Deltan Dallagnol, tem tanto valor jurídico quanto papel higiênico usado; e  num País em que vigorasse o Estado de Direito Democrático deveria ter o mesmo destino.

  2. Uma passadinha rápida pela

    Uma passadinha rápida pela Wikipedia, que não é e nem pode e nem deve ser  referênciapara ”operadores” do direito  , mas serve para leigos  e, se percebe o tamanho da loucura ( da falta de erudição e da tacanhez) dos chicagos boys made in Brazil.

     

    Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

    A abdução é uma das três formas canónicas de inferência para estabelecer hipóteses científicas. As outras duas são a indução e a dedução. A abdução foi a noção que Charles Sanders Peirce adaptou, usando-a no suposto sentido aristotélico, e contemporaneamente é utilizada em pesquisas acadêmicas, principalmente na Semiótica e nas Ciências da Comunicação.

    A forma lógica é a seguinte: Tem-se observado B (um conjunto de dados ou factos) e A podendo explicar B.

    É provável que A esteja certo. Assim, a abdução é a inferência a favor da melhor explicação. A hipótese A, ao ser verdadeira, explica B. nenhuma outra hipótese pode explicar tão bem B como A. Logo, A é provavelmente verdadeira. [1]

    Na abdução utilizam-se certos dados para se chegar a uma conclusão mais ampla, como acontece nas inferências da melhor explicação. [2]

    Na abdução, o que está implicado não é uma função de verdade, mas antes uma relação de causalidade. A abdução estabelece a probabilidade da conclusão da inferência e não necessariamente a sua verdade. O facto de um conjunto de dados B poder ser o efeito da causa A, pode não permitir inferir categoricamente uma ilação de A sobre B, dado ser uma causa possível entre muitas outras. O mesmo efeito pode ser consequência de diferentes causas. Mesmo naqueles casos em que a massa de dados disponível a favor de uma dada hipótese seja tão grande quanto possamos desejar, é sempre possível imaginar consistentemente que outra causa originou o conjunto de efeitos conhecido. A selecção de uma dada hipótese causal tem de depender de outros critérios de escolha, como por exemplo a simplicidade da explicação. Assim, o objectivo de um processo abdutivo é o de alcançar uma explicação para um determinado acontecimento ou conjunto de acontecimentos. [3] Um exemplo poderia ser ao se deparar com pegadas de um equino, estando num país não africano, a abdução mais provável seria de que esta marca pertencesse a espécie Equus ferus caballus, ou seja, um simples cavalo, do que uma zebra.

    Ou seja,  algo assim :  passei pelo pedágio  logo,  o sítio onde fiquei no fim de semana é meu!

  3. Bem planilha eu sei q dá para

    Bem planilha eu sei q dá para fazer a qquer hora com o que eu quiser colocar lá. Emails tbém. Só não sei mudar as datas. Mas penso q um cara bom em programação ou coisa q o valha consegue não? E lembrem q ficção é arte, literatura, sempre superada pela realidade. Então meu personagem falaria assim : ” bem tu tá sabendo que o Dotô qué q tu faças umas planilhas né? ” E não sou escritora e nem quero. Mas que dá uma historinha legal dá. Um dia alguém vai escrever, tomara.

  4. Finalmente está provado que
    Finalmente está provado que Lula é o dono do triplex do Guarujá, mas não foram Dallagnol e seu Powerpoint mequetrefi ou Sérgio Moro que conseguiram provar, a prova veio de longe,  da Inglaterra, mas precisamente de 221B  Baker Street, Londres, residência de Sherlock Holmes. E a gente bancando um baita salário para esses concursados transformarem um processo penal em um romance policial.

  5. Não sou pessoa de cultura

    Não sou pessoa de cultura relevante, portanto, necessito do esclarecimento de alguém sobre o fato desta relevante peça jurídica ter a necessidade de ser expressa assim, no seguinte trecho : “…que foi denominada inferência para uma melhor explicação (“inference to the best explanation”)…”. Acaso as palavras no idioma nativo se distanciam do conteúdo enunciado ?! Não bastariam as aspas na expressão em português ?! Como disse, não sou pessoa de cultura relevante, mas este senhor me induz a deduzir que (diante do seu texto) existe a convicção de que é válida a suspeição de que eu seja. 

    1. Daí, como ele cita a si mesmo

      Daí, como ele cita a si mesmo para “corrobar-se”, responderei a mim mesmo. Na sentença exalada pelo neo-juiz Moro sobre o ex-ministro Palloci, aconteceu o mesmo que havia acontecido anos atrás, com o Mensalão :  diante das dificuldade para substanciar a reprovação ao petismo, revelou-se uma velha prática como se fosse nova, sob nova palavra (Mensalão). Não sou pessoa de cultura relevante, mas a sentença é REVELANTE : …Moro tascou ali, com todas as letras, o modus operandis utilizado pelos tucanos na sofisticada arte de corromper o Estado. Concluindo :  assim como (provavelmente) o maior mérito de dona Dilma foi evitar que um desqualificadíssimo Aécio chegasse ao poder pelas vias eleitorais (a nação escapou !) a simples ascensão do PT ao poder, continua fazendo com que a nossa História pós-ditadura, venha à tona, em fascículos ora mensais… ora semanais, proferidas inclusive por pessoas “acima debaixo de qualquer suspeita”. Viva a língua presa do Palloci, que deu vida e significado à língua solta do Moro !!!

  6. Alicerces de pó.

    Em primeiríssimo lugar, quero destacar o brilhantismo deste artigo ao ressaltar o cem número de palavras ocas e falsa intelectualidade inventados pelo PGR para sustentar-se em linha de fiapo sobre o abismo que ele próprio criou ao forçar um processo sem provas. Não podemos fazer pactos de mediocridade. Quando Marcelo Neves fala em  ausência de razões, remete ao entendimento de que inexistem fundamentos irrefutáveis e mais ainda, existe uma profunda superficialidade no uso da teoria das inferências abdutivas, onde Dallagnol na verdade faz uma salada intragável de autores e obras em verborragia sem sentido para condenar apenas com base em provas indiciárias. Homens de coragem como Marcelo Neves erguem sua voz diante do silêncio nada eloquente do restante da base intelectual do país que se curiva diante dessa sucessão de tragédias e melodramas perpetrados por uma direita que distorce o sistema jurídico para fundamentar ideiais golpistas imediatistas, trazendo sobre si e sobre a nação uma onde de consequências advindas da insegurança jurídica instaurada que no futuro consequentemente se voltará contra eles próprios.

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