“Drama de Angélica” – Alvarenga e Ranchinho

Murilo Alvarenga (1912-1978) e Ranchinho *¹ (1913-1991)

Ao contrário do que, comumente, ocorria com a maioria das duplas caipiras, Alvarenga e Ranchinho estrearam primeiro no cinema (1935) a convite de Ariovaldo Pires, conhecido como Capitão Furtado (compositor, grande escritor de “causos”) e futuro parceiro da dupla. Ao longo da carreira participaram em 49 filmes.

Despontaram no disco, em 1936, com modas de viola, desafios e sátiras com ênfase a figura do caipira, sempre com muito humor e inteligência, consolidando um estilo de interpretação.

Neste post destacaremos apenas a composição – “Drama de Angélica”, em parceria com M.G. Barreto. É uma obra criativa/bem humorada, composta por quatro atos, em que quase todos os versos terminam em proparoxítonas.

No ato inicial, a dupla apresenta como a história começou e faz uma incursão metalingüística: “Poesia épica / Em forma esdrúxula / Feita sem métrica / Com rima rápida”.

No segundo ato, depois de relatar o adoecimento de Angélica, a canção conta a ida ao médico e a imprudência do farmacêutico, que vende o remédio errado.

No terceiro ato, a mulher agoniza até a morte depois de ingerir ácido fênico e “ácido prússtico”. Após mencionar a autópsia e o funeral, o marido fecha o quarto ato com a frase registrada na lápide de Angélica: “Cá jaz Angélica / Moça hiperbólica / Beleza helênica / Morreu de cólica.

Drama de Angélica” (Alvarenga/M.G.Barreto) # Alvarenga e Rachinho. Disco Odeon (12219-A), 1942. *²

http://www.youtube.com/watch?v=p6ZpokgoSdY

Ouve meu cântico quase sem ritmo
Que a voz de um tísico magro esquelético…
Poesia épica em forma esdrúxula
Feita sem métrica com rima rápida…

Amei Angélica mulher anêmica
De cores pálidas e gestos tímidos…
Era maligna e tinha ímpetos
De fazer cócegas no meu esôfago…

Em noite frígida fomos ao Lírico
Ouvir o músico pianista célebre…
Soprava o zéfiro ventinho úmido
Então Angélica ficou asmática…

Fomos ao médico de muita clínica
Com muita prática e preço módico…
Depois do inquérito descobre o clínico
O mal atávico mal sifilítico…

Mandou-me célere comprar noz vômica
E ácido cítrico para o seu fígado…
O farmacêutico mocinho estúpido
Errou na fórmula fez despropósito…

Não tendo escrúpulo deu-me sem rótulo
Ácido fênico e ácido prússico…
Corri mui lépido mais de um quilômetro
Num bonde elétrico de força múltipla…

O dia cálido deixou-me tépido
Achei Angélica já toda trêmula…
A terapêutica dose alopática
Lhe dei em xícara de ferro ágate…

Tomou num folego triste e bucólica
Esta estrambólica droga fatídica…
Caiu no esôfago deixou-a lívida
Dando-lhe cólica e morte trágica…

O pai de Angélica chefe do tráfego
Homem carnívoro ficou perplexo…
Por ser estrábico usava óculos:
Um vidro côncavo o outro convexo…

Morreu Angélica de um modo lúgubre
Moléstia crônica levou-a ao túmulo…

Foi feita a autópsia todos os médicos
Foram unânimes no diagnóstico…
Fiz-lhe um sarcófago assaz artístico
Todo de mármore da cor do ébano…

E sobre o túmulo uma estatística
Coisa metódica como Os Lusíadas…
E numa lápide paralelepípedo
Pus esse dístico terno e simbólico:

“Cá jaz Angélica
Moça hiperbólica
Beleza Helênica
Morreu de cólica!”

Quase trinta anos após o lançamento da música – “Drama de Angélica” -, Chico Buarque de Holanda, utilizando os mesmos recursos, criou a imortal “Construção”, de grande riqueza melódica e uma primorosa letra em dodecassílabos, alternando rimas em proparoxítonas.

Em 18 de janeiro de 1978 morria Murilo Alvarenga considerado o “Pai dos Caipiras”. Ficaram os discos, uma legião de fãs, admiradores e seguidores da sua arte simples, singela, mas que botava o dedo na ferida da realidade sócio-política do país, via suas inúmeras paródias.

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*¹ Ao longo da existência da dupla Alverenga e Ranchinho, foram três “Ranchinhos”. O primeiro, Diésis dos Anjos Gaia; o segundo Ranchinho foi Delamare de Abreu, irmão de Alvarenga por parte de mãe (atuou apenas por dois meses) e o terceiro Ranchinho foi Homero de Souza Campos.

*² Segundo o pesquisador Samuel Machado Filho, o nome de Alvarenga não aparece na primeira gravação de “Drama de Angélica”, só nas posteriores.

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Fontes:

– Nova História da MPB – Música Caipira: Tonico & Tinico, Alvarenga & Ranchinho e outros. Editora Abril, 1977.

– Revista BRAVO! Especial 100 Canções essenciais da MPB. Ed. Abril, 2008.

– Site YouTube (vídeos).

– Fotos internet.

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Laura Macedo

7 Comentários

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  1. A tragédia…

    Ouve meu riso com muito ritmo

    Sobre um corrupto petista dialético

    Roubalheira épica em forma múltipla

    Colheita tétrica, rapina rápida…

    Chamei a ética virtude anêmica

    Pudores flácidos, funestos ávidos

    Partido indigno com muitos ímpetos

    De enriquecer colegas e o povo náufrago…

    1. Segura a onda, Rebola.

      Dá um tempo, cara. Deixa de ser desagradável. Qual a necessidade de enfiar teu antipetismo xiita em uma postagem sobre música caipira?

    2. A verdade….

      Resposta rápida a sua fala mórbida

      Sobre branca poeira vinda de helicóptero

      Seria cômico se não fosse trágico

      Pois o jurídico mostrou-se estúpido

       

      Sendo a ética um problema histórico

      Com elites governando há séculos

      O PT chega sim com ímpetos

      Para salvar o povo de tucanos cínicos

    1. Valeu Jota A.

      Amigo, satisfeita pela “saudades dos meus posts”. Aproveito para parabenizá-lo por sua excelente produção aqui no GGN. Posts completíssimos com excelentes textos, fotos e vídeos. Muitas vezes não comento por absoluta falta de tempo, mas nenhum deles passa batido, viu?

      Eu até que tenho produzido. O difícil é emplacar um post aqui no LNO. Desconfio que a editoria de Cultura não goste muito das minhas postagens (rsrsrsrsrsrs).  O importante é que a referida editoria publique sempre posts na nossa área, independentemente que sejam os nossos, não é mesmo?

      Abraços da amiga

      Laura

       

  2. Construção: Chico Buarque / Barbosa

    Bateu na sua mulher quando ainda era mínimo…

    Pegou o seu diploma e se sentiu messiânico…

    Atravessou o planalto com seu passo tímido…

    Subiu no Judiciário qual se fosse máquina….

    Ergueu no STF uma barreira sólida…

    Partiu para Alemanha a mitigar as cólicas…

    Voltou com muita raiva pra prender políticos…

    E condenou Dirceu como se fosse único…

    Genoino com Delúbio num desenho sórdido…

    E liberou geral quando o assunto é tráfico..

    Comprou casa em Miami como aristocrático…!

    E graças ao Dirceu deu entrada na política!

  3. Jorge Nogueira e Alexis

    Jorge Nogueira e Alexis, independentemente de suas ideologias vocês demonstraram suas veias “poéticas” 🙂

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