Eliane Brum: A ditadura que não diz seu nome

“Quando alguém, mesmo em círculos letrados, afirma que “sem Belo Monte não vai dar para assistir à novela das oito ou entrar no Facebook”, ou brada que “índio tem terra demais”, está cometendo muitas impropriedades. Mas está também mantendo vivo o ideário da ditadura sobre a Amazônia e os povos da floresta.”

http://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/31/opinion/1396269693_200037.html

 

O imaginário sobre a Amazônia e os povos indígenas, forjado pelo regime de exceção, é possivelmente a herança autoritária mais persistente na mente dos brasileiros de hoje, incluindo parte dos que estão no poder. E a que mais faz estragos na democracia

 

 

“Quando se quer fazer alguma coisa na Amazônia, não se deve pedir licença: faz-se.”

A declaração é do gaúcho Carlos Aloysio Weber, ex-comandante do 5oBatalhão de Engenharia e Construção, um dos primeiros a instalar-se na Amazônia na ditadura civil-militar. Em 1971, ele foi entrevistado para um projeto especial da revista Realidade sobre a Amazônia. O repórter fez ao coronel, apresentado como “lendário” em Rondônia, a seguinte pergunta: “Como é possível fazer as coisas na Amazônia e transformar a região?”. O coronel respondeu:

– Como você pensa que nós fizemos 800 quilômetros de estrada? Pedindo licença, chê? Usamos a mesma tática dos portugueses, que não pediam licença aos espanhóis para cruzar a linha de Tordesilhas. Se tudo o que fizemos não tivesse dado certo, eu estaria na cadeia, velho.

É uma declaração de sentidos explícitos – pelo tom em que foi dita, pela certeza da impunidade, pelo orgulho da falta de limites. Pela forma como o coronel vê a Amazônia como território a ser invadido e dominado pela força. O que a ditadura fez na Amazônia, tão longe dos centros de poder e das vozes de resistência, e o que fez com os povos indígenas, ainda precisa ser investigado com muito mais profundidade. Os horrores que já foram descobertos podem ser só a superfície. Mas, se o passado pede luz, o presente precisa ser iluminado com urgência.

 

Há vários entulhos autoritários corroendo nossos dias, como a Polícia Militar (que, se tem uma história anterior ao golpe de 1964, ganhou mais poderes na ditadura e os mantêm na democracia) e o “auto de resistência” (que serve para a polícia justificar a execução de suspeitos ou desafetos). Mas é no olhar tanto sobre a Amazônia quanto sobre os povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas que o Estado autoritário persiste com mais força e menos resistência na mente da maioria dos brasileiros. Persiste da forma mais perigosa, porque traveste como verdade aquilo que é apenas uma imagem a serviço de interesses políticos e econômicos específicos. Talvez em nenhum outro campo o regime de exceção tenha conquistado tanto êxito ao impor seu ideário. E o mantê-lo na democracia.

A ditadura civil-militar enraizou no imaginário dos brasileiros a visão de que a floresta amazônica é um território-corpo para exploração. Se a lógica do explorador/colonizador norteou historicamente a “interiorização” do país, é na ditadura que ela ganha um pacote ideológico mais ambicioso. As peças de propaganda que o regime produziu continuam vivas, mesmo para aqueles que nasceram depois dela, como os slogans “Integrar para não entregar” e “Terra sem homens para homens sem terra”. É na ditadura que é cimentada a ideia da Amazônia como “deserto verde”, ignorando toda a riqueza humana, a diversidade cultural e biológica que lá existia, ignorando a vida. A disseminação dessa fantasia é tão bem sucedida que se torna verdade. E se torna uma verdade que continua verdade após a redemocratização. Tão verdade que cria uma realidade paradoxal: uma ex-guerrilheira, presa e torturada pelo regime, é quem, na democracia, leva adiante o modelo de desenvolvimento da ditadura para a Amazônia.

É primeiro no governo Lula, e com mais força e empenho a partir da posse de Dilma Rousseff, que grandes obras previstas pelos militares, como a hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu – a mais polêmica, mas não a única – são impostas aos povos da floresta. O conturbado processo que forçou a construção de Belo Monte, entre outras arbitrariedades violou tanto a Constituição quanto tratados internacionais. A Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assegura aos indígenas o direito de serem ouvidos em empreendimentos que vão afetar seu modo tradicional de vida – e não foram. Outras hidrelétricas estão em curso, com grande resistência de povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, como as usinas previstas para o rio Tapajós, no Pará.

 

É nesse governo eleito que a Força Nacional baixa sobre as comunidades tradicionais que vivem há séculos na área dos megaprojetos com a justificativa, entre outras, de garantir a segurança dos pesquisadores que farão o inventário socioambiental. Na prática, é usada para reprimir a resistência legítima desses povos, cujos direitos são amparados pela Constituição. É na democracia que grandes empresas financiadas pelo dinheiro público do BNDES executam obras que alteram o ecossistema regional sem cumprir suas obrigações, na forma de condicionantes, causando estragos irreversíveis e aniquilando vidas, como se viu agora na enchente histórica do rio Madeira.

É também nesse período democrático que um instrumento criado na ditadura, a “Suspensão de Segurança”, tem sido usado para garantir a continuidade dos megaempreendimentos, como foi denunciado no último 28 de março na Organização dos Estados Americanos (OEA). O instrumento permite a tribunais superiores anular decisões judiciais de instâncias inferiores, independentemente do mérito, se as cortes entenderem que as sentenças representam risco de “ocorrência de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia públicas”. O mecanismo controverso tem sido usado para derrubar decisões favoráveis a comunidades afetadas por grandes obras, como Belo Monte e a estrada de ferro de Carajás.

E a maioria dos brasileiros não estranha – ou estranha muito pouco – essa versão do “Brasil Grande” da ditadura que se consolida com outros nomes na democracia. Não decodifica essa violência como violência, não decodifica o autoritarismo como autoritarismo. O mais perigoso é sempre aquilo que não detectamos como perigoso, aquilo que se naturaliza como inevitável – e na Amazônia a violência de Estado tornou-se natureza.

 

Poderia ser uma surpresa o fato de o mito amazônico forjado na ditadura persistir na democracia. Mas não chega a ser, porque é esse mito, convertido em verdade única, que permite que a Amazônia siga sendo tratada como objeto de espoliação, seja pelo Estado, seja pela iniciativa privada. Um corpo a ser violado, à disposição de exploradores de passagem, sejam eles técnicos do governo, políticos de amplo espectro partidário, grileiros, madeireiros, mineradores e empreiteiros. Quem nesse território permanece, nele nasce, tem raízes e constrói memória torna-se um obstáculo, como os povos indígenas. Um não-ser, como os ribeirinhos e quilombolas, os invisíveis entre os invisíveis. Um obstáculo não ao desenvolvimento, como se repete à exaustão, mas à manutenção desse mito – à continuidade do ideário que legitima, há décadas, a destruição da floresta e dos povos da floresta para acomodar os interesses dos centros de poder.

Esta é uma entre várias razões para que a afirmação de pertencimento dessas populações seja vista como ilegítima, já que a floresta não seria terra para a vida, mas para a exploração e o uso. Como reivindicar a construção de sentidos naquela que é objeto de passagem e de dilapidação? A Amazônia serve ao centro, numa lógica que ainda obedece, na segunda década do século 21, aos preceitos do sistema colonial, na qual a periferia serve à matriz.

Para muitos, incluindo burocratas do governo instalados em ministérios como o de Minas e Energia, a Amazônia é apenas uma fonte de matérias-primas e de energia para as grandes indústrias que produzem para exportação. Tem sido, também, uma fonte de pagamento de compromissos não pronunciados de campanha, na forma de grandes obras financiadas pelo BNDES. A floresta é também aquela que pode ser derrubada para expandir a fronteira agropecuária, num momento em que os ruralistas constituem a maior bancada suprapartidária, em um Congresso que se pauta pela chantagem, e alcançam níveis inéditos de influência em um governo que assegura apoio pela barganha. É ainda uma reserva simbólica para unir o Brasil que a desconhece num ufanismo tortuoso contra “os gringos que querem tomar a Amazônia”. Nada parece mais eficaz do que criar uma ameaça externa para engordar nacionalismos de ocasião, que só favorecem aos mesmos de sempre. Se é disso que se trata, convém perceber que há um tipo de “gringo” que há muito está lá, em megaprojetos de multinacionais que expulsaram as populações locais com o apoio de sucessivos governos. Na ditadura, mas também na democracia.

 

A Amazônia é devastada em nome de várias manipulações, concretas e simbólicas. Para que continue a servir aos interesses dos centros de poder, é preciso que o modelo de exploração persista. E, para que persista, quando o aquecimento global e a destruição do meio ambiente se tornam temas vitais no mundo, quando a questão da água ascende ao topo da pauta, é preciso forjar novos inimigos. É nesse contexto que os povos indígenas passam a ser vendidos à população, predominantemente urbana do país, como “entraves ao desenvolvimento”. Isso no discurso tanto de setores conservadores da sociedade quanto em falas oficiais de setores do atual governo.

Aqueles que pertencem à terra são convertidos em despertencidos, o sentido mais profundo de “entrave”, para que a Amazônia se mantenha no mesmo lugar de corpo para violação. Em nome de “interesses nacionais”, quando, de fato, o que se mascara como nacional são, historicamente, projetos de poder de grupos políticos específicos e projetos de lucro de grupos econômicos privados. Estes, fazem alianças circunstanciais ou permanentes para manter a lógica de espoliação intacta. Fizeram na ditadura, fazem na democracia. Sem que se estranhe o suficiente, porque a distância da Amazônia não é apenas geográfica. Para compreendê-la é preciso se arriscar à alteridade – e nada mais perigoso para quem quer manter seus privilégios do que experimentar outras possibilidades de estar no mundo.

Os povos indígenas resistem desde 1500, mas nesse século ampliaram sua voz, pelas possibilidades abertas pela internet, e passaram a divulgar suas narrativas múltiplas. Em comum, a resistência ao genocídio que segue em curso e ganhou roupagens mais sofisticadas. É também por isso que os ataques contra esses povos se acirraram, não apenas na forma de agressões físicas e destruição de aldeias, mas nos vários projetos que tramitam no Congresso e que significam, na prática, sua aniquilação física e cultural. Como não é mais possível silenciar a sua voz, é preciso transformá-los em inimigos. O inimigo não se escuta, diga o que disser, porque não lhe é reconhecida a legitimidade para dizer. Esse é o objetivo da bem sucedida propaganda em curso, que coloca os mais de 200 povos indígenas, habitantes também de outros ecossistemas além da Amazônia, como “entraves ao desenvolvimento” do Brasil. Por estarem no caminho das grandes obras, por estarem coletivamente sobre as terras cobiçadas para lucros privados.

 

Nada é mais autoritário do que dizer ao outro que ele não é o que é. Essa também é parte da ofensiva de aniquilação, ao invocar a falaciosa questão do “índio verdadeiro” e do “índio falso”, como se existisse uma espécie de “certificado de autenticidade”. Essa estratégia é ainda mais vil porque pretende convencer o país de que os povos indígenas nem mesmo teriam o direito de reivindicar pertencer à terra que reivindicam, porque sequer pertenceriam a si mesmos. Na lógica do explorador, o ideal seria transformar todos em pobres, moradores das periferias das cidades, dependentes de programas de governo. Nesse lugar, geográfico e simbólico, nenhum privilégio seria colocado em risco. E não haveria nada entre os grandes interesses sem nenhuma grandeza e o território de cobiça.

Quando alguém, mesmo em círculos letrados, afirma que “sem Belo Monte não vai dar para assistir à novela das oito ou entrar no Facebook”, ou brada que “índio tem terra demais”, está cometendo muitas impropriedades. Mas está também mantendo vivo o ideário da ditadura sobre a Amazônia e os povos da floresta. No momento em que o Brasil disseca o golpe que completou 50 anos, tão importante quanto jogar luz sobre o passado é compreender o que dele permanece entre nós – com a nossa estreita colaboração.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficçãoColuna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da RuaA Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Email:[email protected]. Twitter: @brumelianebrum

Redação

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  1. “HERANÇA” DA DITADURA MILITAR NO PAÍS AINDA PERMANECE NA AMAZÔNI

     

    “HERANÇA” DA DITADURA MILITAR NO PAÍS AINDA PERMANECE NA AMAZÔNIA

    http://amazoniareal.com.br/heranca-da-ditadura-militar-no-pais-ainda-permanece-na-amazonia/

    por Elaíze Farias

     

    Comunidade Jatuarana, localizada dentro de área do Exército. Foto: Elaíze FariasComunidade Jatuarana, localizada dentro de área do Exército. Foto: Elaíze Farias

    O regime militar brasileiro acabou há quase 30 anos, mas seu legado e seus fundamentos permanecem. E, em algumas situações, são resgatados com as tintas da democracia. Na Amazônia, a herança é mais evidente nas esferas das estruturas do poder criado para “desenvolver” a região, nos impactos ambientais causados por grandes obras sem estudo prévio e na violação dos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais. O alerta foi o teor do debate “Amazônia contra o autoritarismo – 50 anos depois”, promovido pelo Ministério Público Federal na sexta-feira (28), na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

    A sombra do regime militar também permanece na retomada de obras planejadas naquele período. O exemplo mais notório são as obras de usinas hidrelétricas, sendo que a mais emblemática é Belo Monte, projetada nos anos 70 e que foi desengavetada  no governo Lula e executada no governo Dilma. A diferença é a consolidação de movimentos sociais que se fortaleceram para confrontar estes projetos. 

    Um dos aspectos mais evidentes desta herança é a continuidade de órgãos criados pouco tempo depois do golpe de 1964, como a Sudam (Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia), o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e até mesmo a Zona Franca de Manaus e a manutenção dos mesmos moldes e interesses econômicos e políticos construídos já naquele período.

    “O autoritarismo não está só no período ditatorial. Ele está nos períodos ditos democráticos. A criação da Sudam, quase junto com a Suframa, veio com a ideia de reunir interesses industriais com os interesses sobre as terras e sobre os recursos naturais e de criar uma poderosa coalizão de interesses. Veio com a tentativa de fazer que essa coalizão de interesses represente a identidade regional”, disse o antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, durante sua intervenção no debate.

    O antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida observou que, durante o discurso de abertura da Sudam, em 1966, o então ministro do Planejamento, Roberto Campos (governo de Castello Branco) ressaltou que a “verdadeira” vocação da Amazônia era a mineração e não o extrativismo vegetal.

    Antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida diz que há uma "coalizão de interesses" na região. Foto: Elaíze Farias

    Antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida diz que há uma “coalizão de interesses” na região. Foto: Elaíze Farias

    Junto à mineração, outros interesses foram incorporados: madeireiros, projetos agropecuários, indústrias beneficiadas por incentivos fiscais. Projetos que estão hoje cada vez mais fortes nas agendas governamentais.

    “Tem algumas instituições permanentes na sociedade brasileira que nos obrigam a repensar esse autoritarismo que transcende aos próprios períodos autoritários. Essa reflexão ganha corpo hoje porque a sociodiversidade e os fatores étnicos estão fortes na vida cotidiana. Se apresentam mais completa, estigmatizadas, com violências permanentes”, comentou.

    Na Amazônia, conforme o antropólogo, esta situação se agrava, mas ele destaca que a resistência de formas organizativas dos movimentos sociais é que se difere do momento atual para aquele período. “Temos recursos naturais estratégicas. O desenvolvimentismo bebe nas fontes do autoritarismo, mas ele não repete exatamente os anos 70. A construção de Tucuruí não é igual a Santo Antonio e Jirau.  A nossa forma de perceber mudou muito rapidamente”, afirmou.

    Ribeirinhos

    O evento na Ufam foi assistido por uma plateia de mais de 100 pessoas e contou com a presença do procurador da República Julio Araujo, do indígena Ivanildo Tenharim, do procurador do Trabalho Renan Kalil e do indigenista Egydio Schwade.

    Um grupo formado por vários ribeirinhos que vivem em comunidades na zona rural de Manaus e cujas terras são ocupadas pelo Centro de Treinamento de Guerra na Selva (Cigs) esteve presente. Eles lembraram que, em 2009, o Exército tentou retirá-los das comunidades e transferi-los para outra área da zona rural de Manaus. Os ribeirinhos resistiram e se mobilizaram para permanecer na área. As comunidades mais afetadas são Jatuarana e São Francisco do Mainã.

    O conflito fundiário começou no início dos anos 70, quando as terras, pertencentes ao Estado do Amazonas, foram doadas pelo governador Danilo Areosa à União para receber soldados em treinamentos. Na época, não se falou que, diferente do discurso do “vazio demográfico”, havia famílias ribeirinhas morando na área. Depois de vários conflitos, impasses e tentativas de diálogos, as famílias estão atualmente em processo de regularização fundiária e tentam conviver pacificamente com o soldados do Cigs, apesar das restrições para se deslocarem em locais pré-determinados (não podem pescar em todos os lagos, por exemplo) devido aos treinamentos.

    Transamazônica

    Em outubro de 1970, o marco inicial da Transamazônica era inaugurado pelo então presidente Emílio Garrastazu Médici. O general realizou a solenidade no município de Altamira, no Pará. Para “comemorar” o momento, uma castanheira foi derrubada. Dois anos depois, a rodovia que atravessa as regiões Norte e Nordeste projetada para marcar o regime militar era inaugurada. A Transamazônica fazia parte do projeto do regime militar de ocupação da Amazônia, em uma época em que se propagava que a região era um vazio populacional.

    Ao mesmo tempo em que a obra da rodovia destruía imensas áreas de floresta, impactava a fauna da região e incentivava a imigração, no território do Estado do Amazonas, uma terra indígena estava sendo atravessada e impactada. Índios tenharim viram sua população ser drasticamente reduzida e os índios jiahui quase desapareceram. Hoje, os jiahui são pouco mais de 100 pessoas.

    Mais de 40 anos depois, não deixa de ser relevante lembrar que os efeitos negativos da Transamazônica perduram. Os tenharim e os jiahui nunca receberam compensação alguma. E o que pensa Ivanildo Tenharim, liderança indígena e secretário para os povos indígenas de Humaitá, no sul do Amazonas sobre este período?

    “A ditadura deixou uma cicatriz muito grande, uma ferida ainda viva nos povos indígenas. Meu pai trabalhou na obra sem receber nada, como se fosse escravo. E nunca fomos compensados. Depois chegaram os madeireiros e os fazendeiros que não gostavam da gente. Essas consequências estão até hoje. Mas parece que a ditadura quer voltar de outra forma. Os indígenas não são mais consultados sobre os projetos que afetam suas vidas. Quando a obra é de interesse capitalista, os licenciamentos são facilitados. Quando é para o desenvolvimento sustentável das populações, colocam várias dificuldades”, afirmou Ivanildo, que participou no debate realizado na Ufam.

    Em janeiro deste ano, o Ministério Público Federal no Amazonas entrou com uma ação na justiça pedindoindenização pelos imensos impactos causados na vida dos tenharim e jahui com as obras da Transamazônica

    Ivanildo Tenharim: "ditadura deixou ferida ainda viva" nos indígenas. Foto: Elaíze Farias

    Ivanildo Tenharim: “ditadura deixou ferida ainda viva” nos indígenas. Foto: Elaíze Farias

    O pesadelo na vida dos tenharim, agora, é o projeto de construção da Usina Tabajara, cuja barragem está prevista para ser construída no rio Machado, divisa de Rondônia com Amazonas, prometida há vários anos pelo governo federal, mas cuja execução está cada vez mais próxima. Ivanildo diz que os impactos da usina podem ser mais ferozes do que os da Transamazônica.

    “Pelo que vi nos estudos, essa usina vai inundar a Terra Indígena Tenharim. Será pior. Vai ser um impacto muito grande. Não fomos consultados nem uma vez. Nunca fomos procurados. Mas na visita que a presidente da Funai (Maria Augusta Assirati) fez na nossa aldeia recentemente cobramos dela providências”, relatou.

    A resistência à construção da usina de Tabajara não é recente, mas somente nos últimos meses é que mobilização contrária ao empreendimento começou a se delinear de forma mais consistente e prática. No último dia 23, a Organização dos Povos Indígenas do Alto Madeira (OPIAM), da qual os índios tenharim e jiahui fazem parte, entregaram um documento à procuradora da 6ª Câmara do Ministério Público Federal, Deborah Duprat, pedindo providências.

    Conflitos

    Ivanildo, assim como toda a população tenharim, vive um momento delicado. Desde o início do ano, a maioria da população limita-se a transitar somente dentro das aldeias, localizadas à margem da Transamazônica. Poucos se arriscam a ir na cidade, desde os conflitos de final de ano, quando uma parte das populações de Humaitá, Apuí e distrito de Santo Antônio do Matupi promoveram manifestações contra os indígenas após o desaparecimento de três homens na terra indígena. Cinco índios tenharim estão presos sob suspeitas de serem os assassinos dos três homens.

    Durante o debate na Ufam Ivanildo comentou esse episódio. “Esse era um projeto antigo (referindo-se aos protestos). O que aconteceu foi apenas uma oportunidade que eles (fazendeiros e madeireiros) estavam esperando. A etnia tenharim não tem pensamento de criar conflito, até porque somos vizinhos”, disse.

    Depois de três meses desde o início do conflito, os poucos tenharim que vão a Humaitá, onde está o maior foco de tensão desde o início dos protestos, ainda não conseguem andar tranquilamente na cidade. Quem é aluno de escolas da cidade, continua sem estudar. “Eu ainda não consigo trabalhar, nem ficar na minha sala na Prefeitura. Quando ando na rua, todos me olham. Mas apesar das ameaças, a gente quer fazer uma campanha de paz, quer voltar à normalidade”, diz.

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