Empatia alemã: a comunicação clara de Merkel e reações da população ao COVID-19

Desde seu pronunciamento na TV, em 18 de março, Merkel somou pontos de simpatia nas redes até mesmo de eleitores que rejeitam seu governo

Angela Merkel deixa o governo alemão após 16 anos

Por Fatima Lacerda 

No Observatório da Imprensa

“A gente ainda vai sentir muita falta de Merkel”, atesta um usuário do Twitter sob a hashtag #FrauMerkel. Desde que deixou a chefia (e não liderança) do partido, a chanceler não ocupava mais as pautas diárias, até o tabloide Bild exigir “administração” e “pulso” no lidar com o vírus que fez o mundo parar. Depois que Merkel se juntou ao seu ministro da Saúde, ratificou que sim, estava no comando das medidas para, senão conter a contaminação, postergá-la para quando os leitos e máquinas de respiração possam salvar vidas.

Não é preciso simpatizar com a política de Merkel. Pode-se até esquecer o estrangulamento que ela exercitou, de forma prussiana, dentro do seu partido, evitando abrir espaço para a “segunda fila”, como prescreve o jargão político midiático da Alemanha. Essa fatura caríssima, Merkel está tendo que pagar: O CDU está com uma diretora pronta para sair e a convenção nacional de abril, que escolheria um dos três candidatos homens, foi cancelada devido à pandemia.

Humanismo e empatia

Desde seu pronunciamento na TV, em 18 de março, Merkel somou pontos de simpatia nas redes até mesmo de eleitores que rejeitam seu governo.

Depois de serem veiculadas imagens de grupos alegres dançando, ouvindo música ou mesmo conversando em parques de Berlim, os usuários das redes suplicavam pela #Ausgangsperre (proibição de saída). Essa expressão foi, logo em seguida, substituída por #Ausgangeinschränkungen (limitações para saída), em consideração com os alemães originalmente do leste, sensíveis com esse tipo de denominação. Entendível para quem ficou cercado e impedido de sair durante longos 28 anos pelo sistema do “real socialismo”.

Em seu discurso, o primeiro de regime extraordinário desde que assumiu, em 2005, na medida exata entre a chefe de governo e com grande percentual empatia, atípico para seu estilo, ela apelou pelo bom senso: “Atualmente, o coronavírus muda, de forma dramática, a vida no nosso país. Nossa ideia de normalidade em vida pública, tudo isso está sendo colocado à prova como nunca antes”. Merkel, avessa à redundância do pleonasmo e adepta da filosofia de que “menos é mais”, mudou seu discurso para um texto claro e sem cosméticos. “Eu me dirijo a vocês, nesta situação excepcional, para lhes dizer, como chanceler: assim prescreve uma democracia, que as decisões precisam ser feitas de forma transparente e explicadas para que as pessoas possam entender os motivos de nossas decisões. Eu acredito piamente que nós superaremos esse desafio se todas as cidadãs e todos os cidadãos perceberem esse momento como o seu dever. A situação é grave. Por isso, a perceba como tal. Desde a reunificação das Alemanhas – não, desde a Segunda Guerra Mundial -, nunca houve um desafio que depende tanto do nosso empenho coletivo e da nossa solidariedade.”

 

A chanceler, provando que ainda está em forma sempre que precisa tranquilizar o povo, alertou, claramente, que as medidas em vigor a partir daquele dia estariam sujeitas a “ajustes”. E eles não demoraram a chegar. Entre o discurso em rede nacional e a videoconferência na tarde de domingo, com todos os ministros presidentes das dezesseis regiões administrativas, foram somente quatro dias. Nas redes, os alemães suplicavam pela implementação da #Ausgangssperre (proibição de saída). Esse ato “louvável” tem implicações históricas e não tão nobres assim, como pode parecer. Por um lado, cidadãos preocupados com a “idiotice” das pessoas que acham um direito pessoal inquestionável sair para passear nos parques ou ao longo dos rios nos primeiros dias de primavera. Merkel apelou para a solidariedade porque, nas ruas e nos supermercados, vê-se o fetiche e a compulsão imorais de comprar über quantidades de papel higiênico, farinha e macarrão. O apelo nas redes sociais tem um lado obscuro que remete à prática da denunciação, tão comum durante o nacional-socialismo de Hitler (1933-1945), e que ainda se mostra arraigado na sociedade alemã em aspectos que vão desde chamar atenção de alguém que atravessa o sinal ou reclamar com alguém que anda de bicicleta na calçada. São os exemplos light. Um dos exemplos hard core que circulou nas redes nos primeiros dias de quarentena ratifica o persistir da consciência de que o estado policial e o seu controle determinam os parâmetros de uma sociedade.

Solidariedade em alemão

Imagens invadem as redes sociais com pessoas cantando músicas populares nas varandas da Itália, um personal trainer dando aula para pessoas na janela em algum lugar da Espanha, um cantor de ópera italiano e uma pianista portuguesa adoçando os ouvidos de seus vizinhos. Na Alemanha, a prática de angariar empatia dos vizinhos é um terreno baldio e de terra podre. Um homem do bairro de Marzahn, região de baixa renda localizada no leste de Berlim, provavelmente sofrendo de extrema solidão em tempos de quarentena, ecoou os primeiros versos da música que foi carro-chefe do movimento “nova onda alemã” (Neue Deutsche Welle) no início dos anos 1980.

Ao entoar as primeiras frases – “Você tem um tempo pra mim, aí eu irei entoar uma canção sobre 99 balões e gás” -, o homem, que decerto não tinha a voz de um Roberto Carlos, foi imediatamente massacrado com gritos típicos de berlinenses bem rudes: “Cala a tua fuça” (Fresse!), “É hora de silêncio”, “Dá uma olha nos itens da ordem do prédio”, “Isso vai gerar um B.O!”.

A última vizinha a se manifestar pronunciou a palavra mágica: “Eu vou chamar a polícia!!!”, o que dizimou por completo todos os anseios de solidariedade e empatia do vizinho solitário. Sua resposta foi: “Vão se f., vocês todos”. A ironia desse episódio específico é que exatamente a música que, em sarcasmo poético, ironiza a hermeticidade e o fetiche dos alemães em chamar a polícia por qualquer coisa, foi atropelada pelo zeitgeist de uma cidade marrenta, selva de pedra chamada Berlim. Não a Berlim capital da República, mas a Berlim-cidade, cheia de cicatrizes e atormentada pelas sombras do passado.

Na manhã de segunda-feira (23), o tabloide Bild pautou uma manchete que ratifica o egoísmo da imprensa amarela que, por nenhum acaso, colhe ressonância em grande parte da população, em forma de recorde de venda de jornais.

Maratona política

Os primeiros a divulgar medidas concretas para tolher a proliferação do coronavírus foram dois ministros-presidentes com ousadas ambições.

Armin Laschet, da Renânia do Norte-Vestfália, a região mais populosa da Alemanha e a com maior número de infectados, arregaçou as mangas há quinze dias, enquanto seus colegas aguardavam a dinâmica dos acontecimentos na Itália e Espanha. Foi Laschet o primeiro a proibir eventos com aglomeração de mais de 1000 pessoas. No sistema federalista que rege a Alemanha, itens como educação, cultura e regulamento de serviços públicos são do âmbito regional. Depois da “largada” de Laschet, que é um dos candidatos para a chefia do partido de Merkel, o CDU, foi a vez de Markus Söder, o ministro-presidente da região da Baviera, membro do CSU que, junto com o partido de Merkel, forma a União.

As ambições de Söder não focam na chefia do partido (por agora), mas têm planos para seguir o caminho do Patron, Franz-Joseph Strauss (1915-1988), e candidatar-se a chanceler em 2020 ou quatro anos depois. Foi o próprio Söder que, sem esperar o parecer de outras regiões, alinhavou uma força-tarefa para alemão nenhum botar defeito. Nela, ele já incluía a proibição de sair de casa, exceto para o trabalho, o médico ou as compras de produtos alimentícios. Em coletiva à imprensa, juntamente com seu gabinete e transmitida em rede nacional, Söder mostrou-se preparado, excelentemente assessorado e sem nenhum melindre em “escaldar” os outros ministros-presidentes.

“Hoje pela manhã, o Instituto Robert Koch revelou que o número de infecções cresce de forma vertiginosa. Se não tomarmos mais providências, podemos chegar à taxa de milhão de contaminados. Não podemos esperar. Nossa maior prioridade é proteger as pessoas, por vezes, delas mesmas. Recebemos muitos apelos via redes sociais, através de cartas e e-mails para sermos mais decididos.”

Críticas em velocidade blitz

O jornal berlinense Der Tagesspiegel (O Espelho do Dia) delineou a irritação do chefe da chancelaria, Helge Braun, sobre as decisões de Söder, tomadas sozinho sem considerar as outras regiões. Durante a coletiva sobre “assuntos de governo”, o porta-voz de Merkel, Steffen Seifert, declarou a jornalistas que não havia sido avisado. Nem sobre a coletiva de imprensa, anunciada de última hora, nem sobre o seu conteúdo. Nesse contexto, para não ficar de todo como o último a saber, ele ratificou que um telefonema seria “especialmente importante”.

Söder foi rápido, eficiente e autêntico ao declarar que as medidas são indispensáveis. Fontes do conglomerado de TV aberta ARD afirmam que o clima ficou pesado entre Laschet e Söder e que, no final das contas, a chanceler teve que alinhavar também essa crise.

Merkel, durante uma breve coletiva depois do telefonema, justificou o ajuste das medidas, incluindo a limitação de sair de casa, assim também como o fechamento de salões de cabeleireiro e consultórios de fisioterapia.

“Nós estamos conscientes da gravidade da situação. O coronavírus se espalha com velocidade preocupante em nosso país. Nós conversamos sobre quais anticorpos usar. Ainda não temos um remédio nem uma vacina, mas somente: o esforço que fazemos para preparar nosso sistema de saúde, especialmente para os hospitais, para o aumento de número de infecções; e nosso comportamento. Esse é o remédio mais eficiente que temos. Isso significa reduzir a vida pública ao mínimo possível.”

“Hoje, domingo [22], constatamos que nas cidades da Alemanha, o trânsito, a economia e a vida privada exibem um outro quadro. A maioria das pessoas entendeu que cada um pode e deve contribuir. Me dirijo agora aos que terão que acatar as regras de comportamento e, para isso, eu os agradeço. Sei que isso exige muito sacrifício, econômico e humano. Quando as lojas têm que fechar, quando não se pode encontrar pessoas e, o que ainda é mais doloroso, não poder visitar os avós e encontrar os amigos. Todos nós temos que abdicar disso por um período de tempo. Que tantas pessoas estejam aceitando essas formas de comportamento, me emociona muito. Assim, mostramos cuidado com os idosos e doentes. Eles são os mais afetados pelo vírus. Dessa forma, salvamos vidas.”

Em poucos momentos de sua longa carreira como chanceler, Merkel falou com tanta humanidade. Talvez uma única exceção tenha sido durante a crise dos refugiados, em 2015, acontecimento que mudou a trilha política e a forma dela se apresentar perante a mídia. Desde então, Merkel se tornou mais humana e, por imensa ironia, bem perto de deixar, em definitivo, o circo da política internacional (ou o “sinteco político”, como prescreve o jargão midiático). Ela exibe empatia, alinhava tons humanistas e ainda faz um “vale a pena ver de novo” para os alemães, mostrando como é exímia em administrar crises. E ela, que precisou apaziguar as duas vaidades masculinas em disputa no duelo Laschet e Söder, mostra que não perdeu sua habilidade. Pelo contrário, acrescentou um ingrediente imprescindível, mas que até bem pouco tempo não constava de sua dialética: a empatia.

Quando um jornalista perguntou se ela teria “ficado com raiva” com o “atropelo” de Markus Söder, ela esboçou a fisionomia de quem está prestes a ficar desconfortável e logo engrenou uma justificativa sobre o aspecto diferencial do impacto da pandemia em diferentes regiões administrativas e ressaltou a situação de fronteira das regiões da Baviera, Saarland e Baden-Württemberg, que precisam se alinhavar com outros países (a Baviera com o governo austríaco, por exemplo), dizendo que isso requer muita sensibilidade.

Depois da coletiva de domingo, o clima na mídia e nas redes sociais é de louvor à chanceler, que conseguiu, apesar dos ambiciosos Laschet e Söder, fechar o pacote com um denominador comum.

Realidade x expectativa

Enquanto, na Baviera, os policiais fazem um controle meticuloso, o Senado de Berlim (na categoria de cidade-estado) amenizou as medidas anunciadas por Merkel. Quem se movimenta nas ruas para o trabalho, o médico ou as compras precisa exibir uma declaração por escrito. O controle dessas atividades em Berlim é quase impossível, já que o aparato policial tem outras prioridades e urgências.

O tabloide Bild, useiro e vezeiro em polemizar, continua fiel ao discurso que prega o egoísmo. Na manhã de segunda-feira (23), a manchete exibida em quiosques era “Açougueiro berlinense não tem entrega de carne”. Os leitores carnívoros terão ainda mais um motivo para se irritar e se sentir incomodados em sua liberdade de comer carne, nutrindo o comportamento ávido e o fetiche de comprar papel higiênico em quantidades astronômicas.

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Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas pela Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.

Redação

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