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Também cabe a nós compreender como se materializa nas cidades a desigualdades de classe, raça e gênero. Isto para sabermos ouvir as vozes dos personagens que entram em cena e protagonizam um novo ciclo de lutas
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Engenharia Ambiental engajada na justiça socioambiental: o Brasil nunca precisou tanto!

É premente a necessidade de se deslocar a formação e a atuação da/o profissional em engenharia ambiental para modelos de desenvolvimento, que não sejam predatórios

Engenharia Ambiental engajada na justiça socioambiental: o Brasil nunca precisou tanto!

por Francisco Comaru, Luiz Felipe Silva, Rodolfo Baesso Moura e Talita Anzei Gonsales

Inúmeros cientistas dos mais diversos países têm alertado sobre a gravidade e urgência de enfrentar as emergências que atingem territórios do mundo inteiro e colocam a vida humana em xeque. Como advertido recentemente pelo prof. Paulo Artaxo (2020), vamos conviver e enfrentar emergências cada vez mais recorrentes relacionadas às crises na saúde, perda de biodiversidade e do clima, com impactos socioeconômicos em escala global, resultado de um modelo econômico insustentável e predatório[i].

Nas últimas décadas, a comunidade científica internacional consolidou consenso acerca das intensas e aceleradas mudanças climáticas associadas às emissões de gases de efeito estufa, à ocupação predatória do solo, ao uso intensivo de pesticidas e agrotóxicos, à superexploração de aquíferos, ao desflorestamento acelerado, à urbanização da desigualdade que associa miséria, pobreza, violência e despossessão com atuação extrativista do mercado imobiliário, num quase-perfeito “ambiente de negócios” onde escasseiam políticas públicas, subsídios e planejamento, temas amplamente divulgados em artigos, relatórios e vídeo-documentários.

Após tragédias em inúmeros municípios do nordeste, notadamente em municípios baianos, o povo do sudeste sofre com o descaso de governantes e gestores na época de chuvas costumeiras nessa região do país – primeiramente Minas Gerais e, recentemente, em São Paulo. Enquanto este artigo era redigido, na véspera da celebração do dia da/do engenheira/o ambiental, a mídia anunciava a morte de 19 pessoas no estado mais rico da Federação. Essas pessoas serão vítimas do descaso histórico da falta de políticas urbanas, habitacionais e de gestão de riscos, e não apenas das chuvas de verão que tendem a se intensificar em um cenário de mudanças climáticas. Vale ressaltar o que escreveram Lavell e Maskrey (2014), quando mencionam que os riscos e desastres são indicadores endógenos de desenvolvimento fracassado ou distorcido, de processos econômicos e sociais insustentáveis e insanos e de sociedades mal adaptadas[ii].

A engenharia ambiental

Instituído em 1997, o país homenageia neste 31 de janeiro o Dia da/o Engenheira/o Ambiental. Trata-se de profissional com formação interdisciplinar de engenharia, característica que permite diálogo com outros campos de atuação em defesa e preservação, não somente do ambiente, mas também de toda a vida. Oriundo de campos mais tradicionais da engenharia sanitária e engenharia civil, o profissional em engenharia ambiental possui um perfil que pode atuar em áreas como, saneamento ambiental – em geral –, incluindo abastecimento, qualidade das águas, tratamento de efluentes líquidos e sólidos e qualidade do ar, biomas, ecossistemas, clima urbano, mudanças climáticas, saúde ambiental, determinantes sociais e ambientais da saúde, planejamento e gestão do território, uso e ocupação do solo, incluindo planejamento urbano, gestão de riscos, licenciamento, impactos ambientais e sociais das obras e projetos de engenharia e desenvolvimento.

Assumir uma postura interdisciplinar, propositiva e de liderança, diante do vasto e melancólico cenário dos desastres socioambientais provocados por uma expansão desenfreada dos interesses de um mecanismo que visa, prioritariamente, saciar as ambições imediatas do capital, exige do profissional a construção de uma ética assentada na perspectiva crítica e humanista.

É premente a necessidade de se deslocar a formação e a atuação da/o profissional em engenharia ambiental para modelos de desenvolvimento, que não sejam predatórios, fundamentados somente na exploração histórica e inconsequente de recursos naturais. É necessário voltar-se para  caminhos que busquem independência e emancipação tecnológica, trazendo dignidade para toda a comunidade envolvida, em uma perspectiva baseada no diálogo com as pessoas e as comunidades, em uma relação de horizontalidade. O(a) engenheiro(a) ambiental deve aprimorar a sua criatividade técnica e social, desejável em um profissional de engenharia, para oferecer a possibilidade de conceber processos, máquinas e sistemas de solidariedade.

Necessita-se, corajosamente, renegar o endeusamento da técnica como aquela capaz de resolver todos os males. Urge livrar-se da herança que limita ou despreza os saberes e soluções populares, tantas vezes, milenares, encontradas fora dos muros das universidades e centros de pesquisa. Não abandonar a técnica, evidentemente, mas compreender claramente suas fronteiras, em face da complexidade sociotécnica enfrentada. Lembramos aqui que uma escolha ou decisão técnica dificilmente desvincula-se de uma concepção política e de valores sociais e morais, conforme nos lembra o mestre Paulo Freire. Espera-se, assim, transpor armadilhas e ingenuidades de concepções tecnocráticas gestadas sob um verniz de técnica supostamente imparcial e isenta.

O Engajamento sobre as questões ambientais relevantes é um atributo tradicional da engenharia ambiental, que compreende ações descritas anteriormente, como exemplo, entre outras de igual relevo. Vê-se com nitidez que consiste em uma valiosa ação, que busca conter ou mitigar as denominadas externalidades dos processos tecnológicos em suas diversas matizes. Atua, desse modo, no contexto construído pelas chamadas ações antrópicas e guiado pelo norte estabelecido da sustentabilidade.

Externalidades, ações antrópicas e sustentabilidade têm sido termos que designam ou atenuam o conflito gerado pelo padrão de desenvolvimento, como em um instrumento ideológico. Por suas possibilidades de formação, o(a) engenheiro(a) ambiental apresenta um potencial de contribuir para uma engenharia engajada. Precisamos que tais termos sejam tensionados e que sejam jogadas luzes sobre os seus reais significados. Ação antrópica contempla, no mais das vezes, uma definição propositalmente vaga e difusa, que oculta o conflito de classes presente, ancorado em um modelo predatório de desenvolvimento e crença em progresso e crescimento ilimitado. Externalidades são os desfechos desfavoráveis que cabem no modelo contábil de exploração, como é o caso clássico da mineração no país. Sustentabilidade é uma nova embalagem ao modelo tradicionalmente encravado, ocultando contradições insuperáveis, que, em grande parte, apresenta limites importantes para barrar a trajetória para o caos, como o cenário delineado pelas mudanças climáticas.

Eis um desafio para a engenharia ambiental que, para além de seus compromissos enraizados, precisa valorizar o engajamento no horizonte técnico e social, especialmente para a desigual realidade brasileira, comprometendo-se com a redução das desigualdades sociais, econômicas, raciais, de gênero e ambientais. Tal engajamento repercute no combate ao racismo ambiental, apoiando a promoção da plena democracia e da autodeterminação das comunidades, nas dimensões política e cultural. Estruturar a engenharia engajada, como denominado por Kleba (2017), neste cenário é imperioso[iii].

A atuação do engenheiro ambiental é fundamental

Desde uma perspectiva convencional a(o) profissional da engenharia ambiental tem atuado em empresas de consultoria ambiental, de desenvolvimento, de projetos, obras de engenharia, no mais das vezes, utilizando seus conhecimentos técnicos e científicos na sob a ótica de viabilizar processos que, de diferentes formas, tendem a impactar os territórios e atingir populações e grupos vulneráveis. Outro setor de atuação relativamente convencional refere-se ao engajamento em órgãos governamentais públicos ou agências em atividades de assessoria, análise ou gestão.

As contradições e situações-limite que se apresentam demandam, de um lado, a necessidade de atuação crítica, quer seja em órgãos públicos, quer seja nas empresas privadas. Por outro lado, torna-se urgente e necessário o engajamento das e dos profissionais de engenharia ambiental em atividades de assessoria e assistência técnica especializada e direta junto a populações vulneráveis, grupos periféricos e movimentos sociais. Essa atuação pode se dar por meio do engajamento em Organizações não Governamentais (ONGs), em escritórios de assessoria técnica, por meio de laboratórios e grupos extensionistas em universidades, empresas privadas e poder público.

O contato direto com os problemas reais vividos pela população pobre e periférica amplia as perspectivas e horizontes para resolução de tantos problemas socioambientais complexos  do nosso país. Para tanto, é essencial que o Estado brasileiro, por meio dos municípios, estados e governo federal, formule e implemente políticas públicas ambientais, urbanas e regionais subsidiadas que garantam os direitos básicos à habitação, ao saneamento ambiental, à mobilidade urbana e aos territórios sustentáveis e saudáveis.

As tragédias e as perdas humanas e materiais evitáveis que têm ocorrido cotidianamente no nosso país constituem uma face cruel do descaso, do abandono e da irresponsabilidade. A engenharia, as engenheiras e engenheiros ambientais não podem tudo, mas podem muito, numa perspectiva de reconstrução e reorganização das cidades e seus territórios.

Portanto, celebrar o dia da(o) engenheira(o) ambiental remete ao estudo e à compreensão das origens e consequências das tragédias e acidentes de nossos tempos. A homenagem serve também para reafirmar o compromisso técnico, científico e político com a justiça socioambiental, vis a vis à defesa inconteste do ambiente, que é a própria vida.

Francisco Comaru é Professor do curso de Engenharia Ambiental e Urbana da UFABC, coordenador do LabJuta e colaborador da Rede BrCidades.

Luiz Felipe Silva é Professor do curso de Engenharia Ambiental da Universidade Federal de Itajubá – UNIFEI.

Rodolfo Baesso Moura é Engenheiro Ambiental e Urbano, pesquisador do LabGRis da UFABC.

Talita Anzei Gonsales é Engenheira Ambiental e Urbana, pesquisadora no Laboratório Justiça Territorial da UFABC.


[i] Artaxo, P. (2020). As três emergências que nossa sociedade enfrenta: saúde, biodiversidade e mudanças climáticas. Estudos Avançados, 34(100), 53-66. https://doi.org/10.1590/s0103-4014.2020.34100.005.

[ii] Allan Lavell & Andrew Maskrey (2014) The future of disaster risk management. Environmental Hazards, 13:4, 267-280, DOI: 10.1080/17477891.2014.935282

[iii] KLEBA, J. B. Engenharia engajada – desafios de ensino e extensão. Revista Tecnologia e Sociedade, v. 13, n. 27, p. 170-187, 2017.

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Também cabe a nós compreender como se materializa nas cidades a desigualdades de classe, raça e gênero. Isto para sabermos ouvir as vozes dos personagens que entram em cena e protagonizam um novo ciclo de lutas

2 Comentários

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  1. Engenharia Ambiental: Pelo Direito de não cagarmos na água que bebemos. 92 anos de Estado Esquerdopata-Fascista. Construção da realidade brasileira. Nem isto foi possível ainda, depois de Getulio Vargas, Gaspar Dutra, JK, Jango, Tancredo Neves, Itamar Franco, FHC, Lula, Dilma, Michel Temer. Ainda bem que a partir de 2018 começamos a destruir a Cleptocracia para retornarmos com a Nação ao seu devido lugar de Vanguarda e Potência Continental que foi sua realidade até 1930. O Brasil que começa pelo Brasileiro. Em todos setores nacionais, inclusive no Ambiental. O Brasil que não mais defecará na água que bebe, enquanto joga o lixo da Esquerdopatia-Fascista para fora de sua História e do seu Meio Ambiente.

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