Erros e acertos da Escola sem Partido, por Villas-Bôas

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Jornal GGN – O professor universitário e pesquisador Marcos de Aguiar Villas-Boas publica mais um artigo sobre o projeto Escola Sem Partido, agora tentando apontar os aspectos positivos sobre abrir um debate acerca da doutrinação de alunos em escolas públicas.

Segundo ele, esta seria uma oportunidade para aprofundar o conteúdo oferecido aos estudantes, de maneira que, por exemplo, se o professor decidir falar sobre Karl Marx, é preciso também, “para melhor compreendê-lo, inter-relacioná-lo com Engels, Adam Smith, Ludwig von Mises e outros.”

Na visão de Villas-Bôas, o “objetivo de uma escola sem partido deveria ser orientar e cobrar professores para que ensinem os temas sob várias perspectivas, dando aos alunos uma ampla e complexa compreensão dos assuntos e deixando uma boa liberdade para que eles possam realizar as suas escolhas, mas nunca intimidar professores e limitar sua liberdade de cátedra com afixação de cartazes e previsão de reclamações contra eles.”

Marcos de Aguiar Villas-Bôas

Erros e acertos do projeto de lei da Escola sem Partido

Este texto tem o objetivo de analisar o Projeto de Lei 867/2015, aquele que, de acordo com o art. 1o, busca instituir o Programa “Escola sem Partido”. Há vários projetos de lei sobre o tema pelo país, mas esse é provavelmente o mais discutido e, para os fins aqui propostos, dá uma boa dimensão do problema.

É muito comum, nas comunicações humanas, se iniciar debates sobre temas mal estudados, criando-se espantalhos que começam a ser elogiados ou criticados, apesar de não existirem na realidade.

Na política, âmbito que envolve paixões, e, frequentemente, bem mais ideologia do que informação, isso é ainda mais comum. Por fim, no momento atual brasileiro, de grande polarização político-ideológica, essa situação quase se torna a regra.

A diferença entre uma postura aberta, que busca entender o outro, ainda que se discorde bastante dele, e uma postura de polarização, de embate constante, de fechamento, é a possibilidade de contribuir construtiva ou destrutivamente.

A postura aberta leva a cooperar, a caminhar junto, a progredir; a postura polarizada leva a competir, a segregar, a regredir.

Como já disse em texto anterior publicado aqui no Jornal GGN , ainda que a maior parte das propostas do “Escola sem Partido” sejam bobagens, se há um projeto de lei em discussão no Congresso Nacional e vários pelas Assembleias Legislativas do Brasil, todos passíveis de aprovação tais como eles são hoje, é interessante compreender aquilo que neles poderia ser aproveitado para levar o país a progredir.

Além de uma postura mais aberta e cooperativa, trata-se de uma visão pragmática, pois, num Congresso Nacional onde se tem hoje uma ampla maioria que não é progressista, não é difícil de crer que o Projeto de Lei 867/2015 seja aprovado tal como foi proposto, o que seria um tremendo desastre.

Não se nega que muitas razões por trás desses projetos envolvem limitar a liberdade do professor, evitando que se fale, por exemplo, de assuntos de esquerda nas salas de aula, de sexualidade e de outros temas dos quais os conservadores têm medo. Afinal, conservador é aquele que quer conservar, porque tem medo da mudança e, muitas vezes, quer manter certos privilégios.

Ao contrário do que os conservadores querem, assim como se faz hoje nos países mais desenvolvidos – basta pesquisar –, é preciso que as escolas falem cada vez mais de assuntos tabus como sexo, homossexualidade, preconceito, religião e outros, porém sempre mostrando as diversas perspectivas existentes sobre o assunto, inclusive as dos mais conservadores.

Muito do projeto de lei em análise sequer faz sentido, pois parte da premissa do inciso I, do seu art. 2o, segundo a qual o Estado deve ser neutro política, ideológica e religiosamente, e, assim, deveria ser a escola.

Ninguém é completamente neutro em nenhum desses âmbitos e é inevitável que as comunicações das pessoas nas relações estejam afetadas por suas escolhas. Até para ser ateu, assume-se uma determinada posição que irá influenciar as escolhas de cada um.

A própria Constituição é bastante ideológica, na medida em que protege como direitos fundamentais a igualdade, a liberdade e outros. Deste modo, o dispositivo em questão é simplesmente inconstitucional e contradiz a natureza humana.

Ninguém pode deixar de ser o que todo mundo é, inclusive o Estado e os professores, mas pode-se impor ou orientar alguém a procurar ser o mais equidistante possível, a não discriminar, a incentivar a pluralidade. Essa é a diferença entre o “Escolasem Partido” que muitos defendem e atacam, e aquela que este texto sugere.

É curioso como o “Escola sem Partido” é um programa, do início ao fim, limitador da liberdade do professor, mas são exatamente os que mais se dizem defensores da liberdade os principais apoiadores do projeto de lei. A questão é que, para defenderem sua ideologia, usam nesse caso a perspectiva isolada da liberdade do aluno.

Esse tipo de manipulação é muito comum. Toda sociedade revela diferentes liberdades em jogo, umas limitando as outras. As regras são criadas exatamente para dizer mais ou menos até onde as liberdades de cada um podem ir, de modo que não se pode defender um discurso em prol da liberdade de alguém sem contrapô-la à liberdade de outrem que pode ser limitada por ela.

O mesmo acontece com o neoliberalismo, que quer, em geral, a liberdade econômica favorecedora dos que já têm poder econômico. É importante evitar limitações injustificadas da liberdade econômica, garantindo eficiência, mas liberdade demais leva a abusos e fere a liberdade da maioria da população sem poder econômico. Daí porque liberdade e igualdade (eficiência e equidade) são faces de uma mesma moeda.

Desta forma, o objetivo de uma escola sem partido deveria ser orientar e cobrar professores para que ensinem os temas sob várias perspectivas, dando aos alunos uma ampla e complexa compreensão dos assuntos e deixando uma boa liberdade para que eles possam realizar as suas escolhas, mas nunca intimidar professores e limitar sua liberdade de cátedra com afixação de cartazes e previsão de reclamações contra eles.

Os incisos II, III e IV, do art. 2o, do projeto são bem vindos, apesar de repetições de direitos que já estão na Constituição: pluralismo de ideias no ambiente acadêmico (II), liberdade de aprender (III) e de crença (IV).

É facilmente constatado que muitos professores utilizam seus cargos para doutrinar alunos de modo a vender ideias, livros, cursos etc. Isso acontece não apenas nas escolas, mas frequentemente no ensino superior, como no Direito Tributário, área na qual me especializei.
Sendo assim, é bom o art. 4o, I, que diz não ser função do professor aproveitar a audiência cativa dos alunos para cooptá-los a corrente política, ideológica ou partidária.

O inciso II, do art. 4o, também é bom, e até necessário. Nenhum aluno pode ser discriminado por ter escolhas diferentes daquelas do professor. É preciso ter cuidado com o inciso III, todavia. De fato, a sala não é local para campanha política, mas não se pode despolitizá-la. Há que se discutir esse dispositivo e talvez esclarecê-lo em um parágrafo acrescentado ao art. 4o.

O inciso IV, do art. 4o, é a melhor parte do projeto e, se bem seguida essa orientação na educação brasileira, poderia provocar ótimos resultados. O professor deverá, ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, fazê-lo de forma justa, apresentando as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito.

Se ele vai falar de Karl Marx, deve ensinar não somente sobre comunismo e socialismo, levantando sempre que possível prós e contras, mas sobre o brilhante filósofo, sociólogo e economista que ele foi. Muitos adoradores de Marx mal o leram. É preciso também, para melhor compreendê-lo, inter-relacioná-lo com Engels, Adam Smith, Ludwig von Mises e outros.

O erro do referido dispositivo é limitar as “questões”. Esse deveria ser o modo de ensino de qualquer tema. Somente assim, o aluno pode ser livre e fazer suas escolhas por conta própria. Isso é algo defendido e praticado pelo professor de Harvard, Roberto Mangabeira Unger, há mais de duas décadas.

O professor deve emitir opinião, é óbvio, pode defendê-la, mas deve procurar ser uma figura que estimula mais a reflexão e a livre decisão do que um doutrinador, um dominador, alguém que tenta insistentemente convencer os alunos acerca de algo.

A discussão que proponho não é, portanto, apenas sobre aspectos político-ideológicos do ensino, mas diz respeito ao seu método em geral, sobre como podemos obter mais dele para formar jovens críticos, profundos, complexos e com habilidades práticas bem desenvolvidas.
Para isso, é preciso mudar o modelo educacional, que precisa ser menos enciclopédico e raso, passando a ser mais profundo, analítico, pragmático, de modo a formar pensadores e solucionadores de problemas, e não memorizadores de informações e ideias transmitidas pelos professores. 

Dificilmente discordo de Leandro Karnal, mas ouso não concordar totalmente com a sua afirmação recorrente de que os alunos pensam por si só e não podem ser doutrinados por professores. Isso contradiz, em termos, a realidade empírica. Todas as relações moldam a pessoa, especialmente nos primeiros anos de vida.

Qualquer professor pode fazer uma imensa diferença positiva ou negativa na vida de um aluno. Às vezes, até por algum tipo de afinidade subconsciente, ele pode ser levado a seguir sugestões de professores, que não deveriam tentar convencê-los, ao menos não de forma insistente, sobre quais as melhores escolhas.

Se observado atentamente, apesar de ter visões claramente mais progressistas, Karnal é bastante equilibrado e procura não tomar posições muito claras em prol de partidos políticos, correntes econômicas e afins.

É compreensível a preocupação dele e de muitos outros com o projeto de lei, mas o fato é que, como dito, ele está posto pelo Deputado Izalci Lucas (PSDB-DF) na mesa do Congresso Nacional e poderá ser aprovado. Por isso, é preciso pensar sobre o que melhor fazer com ele, chamando para o debate os especialistas, como os próprios Unger e Karnal.

Não se pode ter uma discussão de legislação educacional sem chamar os maiores especialistas sobre um tema tão complexo e crucial para o Brasil. Mudar estruturalmente o ensino médio por Medida Provisória, como se faz agora, é um risco enorme.

Um problema grave do projeto de lei é o art. 7o, que prevê reclamação à secretaria de educação e encaminhamento ao Ministério Público. Não há tipo penal que possa abarcar prisão de “professor doutrinador”. Isso é sandice completa. Tal atitude deve ser combatida na seara da política educacional e nas administrações das instituições.

Nem o projeto prevê qualquer tipo de sanção, ainda que administrativa, contra o professor. Aparentemente, seus fins são unicamente de intimação e tolhimento da liberdade de cátedra.
O PSDB e muitos conservadores são pródigos em ideias que até fazem certo sentido, mas, por estímulo das razões erradas, acabam usando feições ruins na hora de implementá-las. Cabe aos progressistas burilarem as ideias, quando couber, e não simplesmente tocar fogo nelas. 

O inciso V, do art. 4o, é outro deslize. Como o professor poderá respeitar o direito de cada pai a que seu filho tenha uma educação moral conforme as suas convicções? Cada pai tem suas convicções. A linha moral deve ser estabelecida pela escola, juntamente com os professores e com participação, no que couber, dos pais. Esses têm o direito de mudar o seu filho de escola em caso de discordância.

É por isso que, salvo o item 5 do cartaz que o programa “Escola sem Partido” traz em seu website , parece-me que o restante dele é positivo, por incrível que pareça.

A justificativa 16 do projeto, que afirma ser a moral, em regra, indissociável da religião é lamentável. Há muitos ateus mais morais do que muitos religiosos. Esse tipo de afirmação já é por si uma clara afronta ao caráter laico que o projeto supostamente defende e revela intenções enviesadas.

Por fim, cabe discussão, mas é desnecessária a afixação de um cartaz nas salas de aula prescrevendo deveres dos professores, o que pode levar a interpretações várias e estimular conflitos entre eles e os alunos.

Acima de tudo, é preciso haver debate lúcido sobre o tema. De mais de uma dezena de pessoas informadas que provoquei, todas tinham opinião sobre ele, mas nenhuma tinha sequer lido o projeto de lei, criando espantalhos a partir de pedaços de informações obtidos especialmente em redes sociais, que podem ser um excelente veículo de informação ou desinformação, a depender do uso.

Impor regras duras demais e incentivar reclamações e punições não vai melhorar a educação, de modo que os defensores do “Escola sem Partido” precisam repensar sua posição. Negar todo o programa apenas gritando “fascistas” e insuflando conflitos não vai também melhorar a educação do país, que é muito precária, e pode estimular a aprovação dos projetos de lei tal qual eles são hoje: horrendos.

Apesar de ter começado muito mal, o projeto de lei em questão pode, lá ao final, ter resultados muito positivos para o país, se debatido com seriedade e informação de qualidade, buscando conter um pouco as paixões político-ideológicas, mesma linha que deve ser seguida nas escolas.

 

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

4 Comentários

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  1. Convenhamos…

    Congelar os níveis de gastos com EDUCAÇÃO é um balde de água fria nos professores…

    E para fechar a conta, terá de haver redução na oferta de vagas por alunos, redução do custo / por aluno e se aumentarem, o que é bom, a carga horária, na atual conjuntura exigirá a redução proporcinal dos custos qu incidem sobre salários e manutenção das escolas…

    Consequência: Redução da qualidade dos cursos oferecidos, professores desistimulados na carreira…

    Esse ex-interino  A RIGOR NÃO FEZ NADA ATÉ HOJE, EXCETO VENDER ATIVOS DA PETROBRÁS!

    Esse setor de vendas de ativos da petrobrás É A ÚNICA COISA QUE DESLANCHOU NESTE GOVERNO…

    Muito sintomático….

    Deve ter pingado propina por ai…

  2. Sem ingenuidade! Aluno não é burro!!!

    Professor Marcos,

    o senhor deve saber muito bem que todos os oradores – entre eles, os professores – têm opiniões, posições, às vezes só convicções ( assim como o pessoas do MP) e tomam partido diante de causas públicas. Todos os alunos e ouvintes conhecem as posições dos oradores e professores e comentam, criticam e até parodiam abertamente essas posições entre seus colegas e mesmo em sala de aula nas escolas. Tudo isso é muito salutar!!!

    O problema real é que o professor do ensino médio e fundamental é um trabalhador e como tal, temn consciência política. Aí, a direita quer que ele deixe de pensar e sofra censura para reproduzir para as camadas exploradas o discurso das elites. Tenha dó!

  3. Uma falsa questão

    Na atual conjuntura do país, uma certa parte da comunidade se especializou em criar falsas questões. Todas com objetivos midiáticos e ideológicos.   Criaram o termo bolivarização do país, criaram o termo escola com e sem partido. Obviamente são apenas termos usados na luta contra um partido. Não existe neste falso debate uma razão real e objetiva. As escolas não tem nem nunca tiveram partido. O que elas tem é um excesso de carências. Acho que  a interferência de  partido aparece sim  na interferência nas escolas em São Paulo, e em vários outros estados.  O articulista começa a falar sobre Marx  e a necessidade de falar de Mises. Afora a grande diferença entre os dois pensadores, não me parece que isto efetivamente seja o mais relevante em nossa educação. Por um lado uma grande massa acusa o PT de não ter politizado o suficiente, e por outro o acusam de ter politizado. No entanto o que se vê são ações junto ao legislativo para  impor restrições cada vez maiores ao debate. O articulista pede aparentemente para sermos mais sensatos e discutirmos mais racionalmente. Mas isto me parece mais um artifício de retórica, para manter esta falsa questão no ar. Enquanto isto o governo pensando no corte dos gastos publicos e para satisfazer os interesses de governadores que jamais cumpriram as obrigações fiscais com a educação, faz uma reforma que não está nem um pouco preocupada, com esta falsa questão.

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