Estado inchado: mais um mito que cai, por Róber Iturriet Avila

Seria importante que os cidadãos tivessem ciência de que as despesas com servidores inativos estão em queda na proporção do PIB e do orçamento

Estado inchado: mais um mito que cai

por Róber Iturriet Avila

Nos últimos dias circulou em grandes jornais de viés ideológico liberal que, ao contrário do que é difundido no pensamento brasileiro, o Estado não tem tantos servidores públicos assim: 12,45% dos vínculos de emprego vem do setor público, muito abaixo da média dos países do OCDE e abaixo também de países com escassos serviços públicos, como Estados Unidos e Chile. O que os articulistas não chegaram a informar é que apenas 53% desses “servidores” são de fato servidores ativos, os demais são aposentados e pensionistas. Caberia ainda adicionar que este dado é de 2019 e que de lá para cá esse número com certeza caiu. Então, na verdade, a cifra é muito menor do que isso.

O Brasil não tem um Estado inchado. Falo e mostro isso em sala de aula já há muitos anos. Porém, há uma ideologia que mentirosamente difundiu informações a tal ponto de que se você traz um dado científico e verdadeiro, as pessoas duvidam da realidade objetiva e continuam a acreditar em senso comum com base em uma ideia opacamente veiculada.

Em uma dessas publicações, foi informado ainda que 70% dos servidores públicos recebem menos do que R$ 5.000,00 mensais. Caberia divulgar também que a média é de aproximadamente R$ 4.000,00 mensais. Fiquei realmente feliz em ler isso em um jornal de grande circulação, embora estes dados estejam disponíveis a qualquer um no Altas do Estado . Precisamos avançar nas informações sobre a realidade do Estado brasileiro porque os mitos foram mentirosamente divulgados por décadas.

Seria importante também que os cidadãos tivessem ciência de que as despesas com servidores inativos estão em queda na proporção do PIB e do orçamento já há muito tempo e sobretudo na União. Que o número de servidores estaduais no Rio Grande do Sul vem em queda há mais de 30 anos. Que os salários ficaram congelados por 7 ou 8 anos, o que quer dizer uma redução de salário real na ordem de 30% a 40%. Que a esmagadora maior parte dos servidores públicos são professores, médicos, enfermeiros, militares e policiais. Que embora haja distorções e aberrações em termos salariais, trata-se de uma ínfima minoria, que está em grande parte no poder judiciário. Que muitos dos servidores não são estatutários, há CLT, terceirizados, que recebem por RPA e outros vínculos temporários e com poucos direitos trabalhistas e previdenciários.

O espantalho mor do debate público é o ser genérico marajá de Brasília, que trabalha em algum ministério. Os servidores federais representam 10,4% do total e estão, em grande medida, na polícia, no judiciário, nas universidades e nos quarteis. Já 56,6% são municipários, atuam majoritariamente nas escolas e em unidades de saúde, e possuem salário médio de R$ 3.000,00.

Os exorbitantes salários dos magistrados são espantalhos potentes. No judiciário, os rendimentos médios são de R$ 12.000,00, mas chegam a valores inaceitáveis, em alguns casos. Os 3,2% de todos os servidores servem como cortina de fumaça e são tomados como ícones do patrimonialismo. Na realidade concreta, 94,4% dos servidores estão no executivo e possuem uma média salarial inferior a R$ 4.000,00.

Extintas em 2003, a integralidade e a paridade das aposentadorias são apontadas como privilégios dos servidores. Correção realizada há quase duas décadas no nível federal e em grande parte dos entes subnacionais persiste como um surrado argumento retórico.

Outro mito que antigamente era difundido e que o trabalho de pesquisadores e professores desnudou é que os ricos pagam muito imposto no Brasil. Hoje qualquer pessoa relativamente bem informada sabe que isso é mentira e que na verdade há poucos países no mundo em que os ricos paguem tão pouco imposto como no Brasil.

Lamentavelmente ainda há muito a ser esclarecido. Mesmo em um destes artigos citados, ele termina com a fakenews de que o problema não é o tamanho, mas a eficiência, que tem por traz a falsidade de que “não há retorno”.

Há mais de 41 milhões de pessoas que recebem aposentadoria ou pensão mensalmente e que 83,5% daqueles cobertos pelo INSS recebem até dois salários mínimos. Há mais de 38,3 milhões de estudantes nas escolas públicas e mais de 2 milhões nas universidades públicas. O Brasil é um país que oferece um sistema de saúde universal, desde a constituição de 1988 e neste interregno a expectativa de vida aumentou 10 anos.

Somos exemplo de vacinação e combate a doenças. Graças à ação do Estado a tuberculose, a poliomielite, o sarampo, a cólera e a leptospirose não são epidemias. O Estado está na luz dos postes, nas estradas, nos calçamentos, no transporte urbano, no transporte aéreo, no recolhimento do lixo, na destinação do esgoto, na escola pública (da pré-escola ao pós-doutorado), no policiamento, na defesa territorial. Essa é a parte mais visível. Mas há também Estado na forma de subsídios que garantem a energia elétrica, a produção de alimentos, o investimento em conhecimento, vigilância sanitária, a aquisição de imóveis e o avanço técnico. Na produtividade do agro, que tem por traz a pesquisa da Embrapa e do crédito subsidiado. Há Estado nas políticas de geração de emprego e de desenvolvimento econômico.  Ele está também na seguridade social, ou seja, nas aposentadorias, nas pensões por morte, nos seguros de maternidade e de invalidez. O Estado permite a mediação e o julgamento dos conflitos, a reclusão de malfeitores, além da própria organização das regras que nos permitem viver de forma civilizada e não no caos e na guerra como foi marcada a história humana. Não há um dia sequer que qualquer cidadão não esbarre na ação do Estado e não se beneficie diversas vezes dela.

A carga tributária brasileira gira em torno de 33%. O PIB per capita de 2022 no Brasil foi de R$ 3.289,13 por mês. Nessa medida, cada brasileiro paga, em média, R$ 1.085,41 em impostos por mês para atender uma série de garantias legais e de reclamos sociais. Embora seja possível aprimorar a eficiência e reduzir o desperdício, para quem sabe fazer conta, salta aos olhos o óbvio: é um recurso escasso para tudo o que exigimos dos governos.

Deste valor, aproximadamente, R$ 338,78 mensais são destinados para dois dos principais serviços públicos: saúde e educação. A exata verificação destes valores é relevante para observarmos que esses não são tão expressivos o quanto se imagina. Basta pensarmos quanto custam esses serviços no setor privado. Como seria o serviço de educação e saúde privadas se a soma delas fosse neste valor? Iria aumentar a expectativa de vida em 10 anos? Adicionalmente, é sempre bom ter uma referência de que a renda per capita no Brasil não é elevada, além de mal distribuída, o que já descarta de início a comparação indevida com países mais desenvolvidos.

Na comparação internacional, o Brasil está mal colocado, sobretudo quando se observam os indicadores de educação, como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), prova efetuada principalmente em países desenvolvidos. Uma análise vulgar poderia sugerir que a Suíça, que gasta 5% do seu PIB em educação, tem um retorno melhor do que o Brasil, que gasta 6,3% do PIB neste serviço. A renda per capita mensal da Suíça, é, entretanto, US$ 6.832,81 mensais. Isso não diz apenas que a arrecadação é muito superior, mas que o país dispõe de maior nível de desenvolvimento, e, portanto, de melhor qualificação dos profissionais e melhores condições para que os estudantes se dediquem integralmente à aprendizagem, sem trabalho infantil, e, provavelmente, maior acesso a sistemas de aprendizagem mais tecnológicos.

Uma comparação mais adequada seria com um país com nível de desenvolvimento semelhante. Mas mesmo nessa situação, não são levadas em conta as heterogeneidades históricas na formação socioeconômica de cada país. Até a década de 1950, não houve grande alteração social dos ex-escravos e seus descendentes brasileiros. As primeiras medidas de inclusão começaram na década de 1940. A taxa de analfabetismo em 1950 era de impressionantes 50,6%. Na década de 1960, o Brasil investia pouco mais de 2% do PIB em educação. Então, é claro que o resultado presente é cumulativo, tem relação com a história, com a desigualdade, com a formação, com o nível técnico, nível de desenvolvimento, com a escolarização dos pais, etc. O atraso é secular.

Recentemente, houve uma ampliação significativa dos gastos em educação em percentual do PIB. Em 2004, era 4,5% e atualmente está em 6,3%. Causa espanto ver especialistas e pessoas influentes no debate público imaginarem que a ampliação do gasto não teve efeito. Não apenas por não se basearem na quantificação efetiva, mas por não considerarem que o retorno em educação é lento, pois é uma política de longo prazo. De toda sorte, a escolaridade média no Brasil vem aumentando significativamente, as taxas de analfabetismo continuam caindo, embora haja um atraso pregresso, que ainda vai demorar algumas décadas para obtermos compensação suficiente.

O caso da saúde pública é análogo. O Sistema Único de Saúde ampliou de maneira bastante significativa o acesso. Terapia de câncer, hemodiálise, vacinação, consultas gerais, partos, internação e transplantes são efetuados majoritariamente pelo SUS. Durante a implantação e consolidação do SUS (1988-2010), houve um aumento de 224% da despesa em saúde em termos reais, além da inflação. Como podemos observar os resultados? A partir de indicadores como causas de mortes, expectativa de vida, mortes evitáveis, mortalidade infantil, etc. A mortalidade infantil era de 135,0 ‰ em 1950. Em 1991, passou a 45,2‰. Em 2019, caiu para 11,9  ‰. Ou seja, o SUS e outras melhorias técnicas proporcionaram uma redução de 73,67% da mortalidade infantil no Brasil. Dessa maneira, os resultados objetivos dos indicadores são expressivos.

Então, de um lado, o recurso que entra nos cofres públicos para as principais despesas é escasso, ao contrário do que se imagina no debate vulgar, já que tem por base uma renda per capita relativamente baixa, de um país relativamente pobre e secularmente atrasado. Os custos de serviços de educação e de saúde são elevados, porque, ou envolvem um longo período de formação, ou equipamentos, procedimentos e profissionais custosos. De outro lado, os resultados nos indicadores objetivos ao longo do tempo são expressivos. Não apenas das principais variáveis acima elencadas, mas também dos indicadores sintéticos que expressam melhor esses indicadores, como o Índice de Desenvolvimento Humano, que variou consideravelmente entre 1991 e 2010.

É claro que a busca pela eficiência do gasto público deve ser uma agenda permanente em qualquer sociedade e sempre é possível obter resultados melhores com gastos menores, seja no serviço público, seja no setor privado. Não resta dúvida de que o serviço público pode melhorar e solucionar problemas crônicos, muitos deles, aliás, em transformação há algum tempo, vale dizer, a qualificação do servidor público brasileiro melhorou consideravelmente e algumas reformas corrigiram distorções. Em vários ramos da burocracia há melhorias de produtividade, processos em digitalização, atendimento e até fiscalização robotizados.

 Contudo, a compreensão difundida de que no Brasil há expressiva arrecadação fiscal e baixo retorno em serviços públicos é duplamente falsa e não encontra elementos factuais que a justifiquem, a não ser a partir de análises simplórias, discursos vulgares e preconceituosos.

Se no campo da direita há muita informação falsa, as esquerdas erram e não encampar a agenda de melhoria e modernização da burocracia estatal. Agilidade, transparência, produtividade, profissionalismo, seriedade e comprometimento devem ser pautas permanentes no serviço público. Se é preciso premiar o funcionário qualificado e competente, de outro lado, a punição e mesmo o desligamento de servidores descomprometidos e com baixo desempenho auxiliariam na defesa de serviços de qualidade.

A recusa das esquerdas em encarar os problemas concretos existentes no setor público abrem flancos para os espantalhos utilizados no debate comum. Podemos e devemos melhorar o serviço público com mais agilidade, profissionalismo e com o desligamento mais fácil de maus servidores.

Há muito o que avançar em termos de indicadores sociais no Brasil, e melhoria geral, isso é válido para tudo. Mas o caminho que temos em termos de qualificação do debate público e difusão de conhecimento da própria realidade brasileira consegue ser um desafio ainda maior, não apenas no tema da despesa, eficiência e tamanho da burocracia, mas também em outros temas ainda muito carregadas de ideologias mentirosas, como no caso da questão da dívida pública e no moralismo que falsifica a realidade, tema para outra oportunidade.

Referências:

 AVILA. Róber iturriet. Despesa Pública III: Indicadores da despesa e da estrutura do Estado. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_5Mt624K0oo

Boueri, Rogério; Rocha, Fabiana; Rodopoulos, Fabiana. Avaliação da Qualidade do Gasto Público e Mensuração da Eficiência/ Rogério Boueri, Fabiana Rocha, Fabiana Rodopoulos (Organizadores) – Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional, 2015.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censos Demográficos 1950, 1960, 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010. Disponível em: < http://www.ibge.gov.br/home/>.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Atlas do Estado Brasileiro. Disponível em: www.ipea.gov.br/atlasestado

INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA (INEP). Censo da Educação Superior 2010. Brasília, out. 2011. Disponível em:< https://www.gov.br/inep/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/indicadores-educacionais/indicadores-financeiros-educacionais

SANTOS, N. R. A Reforma Sanitária e o Sistema Único de Saúde: tendências e desafios após 20 anos. Saúde em Debate, v. 33, p. 13-26, 2008.


Róber Iturriet Avila – Professor do Programa de Pós Graduação Profissional em Economia da UFRGS, Youtube.com/roberiturriet.

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