Estado policial atinge a todos, por Marcelo Semer

Enviado por Assis Ribeiro

Do Terra Magazine

Estado policial chega aos poucos, mas atinge a todos

Marcelo Semer

Quando os primeiros pontos fora da curva começaram a ser bordados no julgamento da ação penal 470, não foram poucos os que silenciaram. À direita e à esquerda houve quem até se regozijasse com interpretações draconianas apenas por ressentimentos ou proveitos eleitorais.

Quando a reação desproporcional a manifestações prenuncia a abertura de portas demasiadamente amplas ao Estado policial, o silêncio, quando não a cumplicidade, envolve muitos que prioritariamente vinham sendo objeto dos protestos, em especial autoridades de governos supostamente distintos e distantes.

O buraco negro do processo eleitoral liberta os mais primitivos instintos, por meio dos quais interesses sobrepõem-se a princípios e a política, por paradoxal que possa parecer, contribui fortemente para aniquilar conceitos primários da democracia.

Afinal, Estado policial nos outros é refresco.

Nem se pense que a equação que envolve o mais rudimentar dos corporativismos se limita à política partidária.

Já faz tempo que a porção predominantemente conservadora do aparato judicial tem recorrido ao senso comum do crescimento da criminalidade para justificar um maior rigorismo penal, baseando-se no sentimento fortemente difundido pelos meios de comunicação, que, como se sabe, elegem o assunto como a prioridade de suas telas e páginas.

Dos programas policialescos aos editoriais retumbantes, a criminologia midiática, como denomina Raúl Zaffaroni, vem sendo o principal catalisador das novíssimas interpretações no direito, ainda que nem tão jurídicas assim.

Quando se dirige ao próprio Judiciário, todavia, a mídia é, enfim, reputada por seus membros como fortemente sensacionalista, por expor as mazelas dos juízes na superfície, no exagero e na seletividade –como faz, aliás, com tantas outras vítimas.

Há uma certa ação suicida das instituições jurídicas na aceitação passiva do crescimento do Estado policial e da ideia nela embutida de jurisdição popular –tão cara, por exemplo, ao também popular ministro Joaquim Barbosa.

É que ouvir a voz das ruas em um julgamento criminal só mostra o quanto juízes e promotores podem ser dispensáveis.

O Estado policial cresce com uma contribuição inestimável do Judiciário –mas certamente prescinde dele. Ou vai ultrapassá-lo, se necessário –como ocorria com as prisões da polícia nazista, mesmo após absolvições em julgamentos.

O pretexto para o alargamento das punições, o esgarçamento das formas, a contínua antecipação de tutela e o estabelecimento do próprio processo como punição, sempre recai sobre alguma espécie de terror.

Como bem iluminou Mia Couto, em uma conferência de sete minutos em Estoril que ensina mais do que décadas de doutrina penal: “Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. (…) Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade”.

Continua o escritor moçambicano: “O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos – como cidadãos e como espécie – em permanente situação de emergência. Como em qualquer estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.”

A exacerbação do medo tende, então, a corroer os limites, que são a própria razão de ser do direito penal, controle social cujo respeito inalienável às formas é o que o separa, nem sempre com linhas nítidas é verdade, da pura selvageria.

O Estado policial amputa limites gradualmente, algumas vezes com estardalhaço, outras de forma silenciosa, mas quase sempre num contínuo avançar que, aos poucos, esquece das fronteiras até então traçadas.

Nada gratuito, nada à toa.

Sempre haverá uma justificativa contundente, um insano que espalha a peste negra pelas noites, o comunismo que destrói a família e o Estado, o fundamentalista que é inimigo do direito, o traficante, o adolescente, o manifestante etc.

A falsa promessa de alcançar a todos os crimes, a urgência em evitá-los, a ânsia em impedir com prisões que futuros autores se apresentem, estarão nas cartas-programas daqueles que primeiro se voluntariam para limpar a banheira, mas que não temem jogar o bebê junto com a água do banho.

Como o exemplo norte-americano, cuja guerra ao terror destroçou, com prisões sem processos de Guantânamo e o Patriot Act, o que ainda restava de sua antiga democracia liberal. Uma sociedade que, como traduz Jonathan Simon, professor da Universidade de Berkeley, passou a ser governada em função do crime e substituiu o cidadão e o consumidor pela vítima como seu principal paradigma.

Num episódio da segunda temporada do seriado Homeland, um deputado suspeito vocifera contra a prisão incomunicável em que é mantido por agentes da CIA, sem ordem judicial. “Eu sou um congressista e vocês não podem fazer isso”, grita ao investigador que lhe responde de bate-pronto: “Graças a você e seus colegas, podemos sim”.

Mais hora, menos hora, a ficha cai. O Estado policial atinge a todos.

Redação

13 Comentários

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  1. Misturando alhos com bugalhos para defender Sininho ?

    No fundo toda esta conversa que vai da AP470 à guerra do Iraque, tem o objetivo de defender os fabricantes de coquetéis Molotov e de bombas caseiras com PREGOS dentro. Quer dizer que apreender as bombas que matariam pessoas e seus fabricantes, seria um dos exemplos de “Estado policial” ?  Teria sido mais “civilizado” deixar que bombas explodissem e pessoas fossem mortas ?  Ou talvez que elas fossem jogadas em Vladimir Putin ou algum outro dirigiente mundial que estava a menos de 1 Km de distância ?

    1. E o que faz a “inteligência”

      E o que faz a “inteligência” da polícia, para prevenir isso? Ou é mais conveniente reprimir? 

  2. Assis, obrigado pela matéria,

    Assis, obrigado pela matéria, que, como se dizia na década de 70, é válida, lúcida e inserida no contexto.

  3. Artigo diz o óbvio; mas há cegos q nao querem ver…

    Seja por censura aos manifestantes — censura que compartilho, mas direitos democráticos nao devem valer apenas para aqueles com quem concordamos — , seja por ressentimentos contra o Psol, que se comportou vergonhosamente quando o arbítrio foi voltado contra o PT (mas só crianças acham que “ele fez primeiro” justifica o erro posterior…), vejo comentaristas neste Blog esquecendo qualquer sentido de justiça E DE PRUDÊNCIA! 

    1. Eu concordo em parte, com vc,

      Eu concordo em parte, com vc, Analú. O que eu estou achando muito estranho mas muito estranho mesmo, é a movimentação da comunidade jurídica, especialmente os acadêmicos ( os teóricos não os advogados que militam na Justiça ). Esqueça os partidos políticos; política é política e todo mundo sabe como funciona. O que pode prejuidicar meu adversário, eu exploro… Desde que começaram as arbitariedades da AP 470, o que nós reclamávamos era, exatamente, uma posição da Comunidade Jurídica e do Congresso nacional, em especial, o Senado. Omitiram-se ao limite da vergonha, como se fossem lucrar alguma coisa com o episódio. Não há termos de comparação entre o que foi feito na AP 470 e o que aconteceu aos manifestantes. O que eu quero dizer é que se a comunidade jurídica omitiu-se, PROPOSITADAMENTE, na AP 470, deve ter uma razão muito forte para ter enlouquecido com a prisão ( desnecessária, a meu ver ) dos manifestantes. Parece que já estava tudo pronto mesmo para o tal protagonismo do Judiciário que se daria, a partir dos desmandos da AP 470; a comunidade jurídica não foi omissa, foi cúmplice da AP 470. É óbvio que sabiam que o que fosse decidido ali, valeria para a sociedade inteira; se nós aqui nos blogs sabíamos, é óbvio que todos os que hoje assinam manifestos, tb sabiam, mesmo que só na teoria. Não, por acaso, já estavam todos, devidamente ” patenteados” para a Nova Democracia do Fux; advogados ativistas; juízes democráticos ( suponho que devemos ter os juízes não democráticos )… E, o mais incrível é que o ícone da Nova Democracia era ninguém menos que JB, um “democrata” como não se via há muitos anos. Minha impressão é que o pessoal prepaprou uma arapuca e foi pego nela. Alguma coisa saiu errada e acredito que tenha a ver com o fiasco da AP 470. Se tivesse dado tudo certo, já estaríamos em plena ” Nova Democracia” e a caça as bruxas ficaria restrita a desafetos políticos, a exemplo do Ficha-Limpa, tb recebido pela comunidade jurídica como uma grande oportunidade para se ” limpar” a política ( o Judiciário, como podemos ver sempre foi limpinho ). O primeiro passo para a cassação de direitos políticos foi dado ali. O que alguma pessoas estão exigindo, agora, é que observemos leis que não foram observadas pq os estilhaços atingiram os seus. Caso não tivessem atingido, estariam silenciosos como sempre estiveram durante toda a AP 470. Continuo esperando os manifestos da comunidade jurídica em solidariedade aos condenados e PRESOS da AP 470 ( nem todos estão em regime aberto ou semiaberto ).

      1. Mas eu concordo com vc quanto a isso tudo

        Pode até ser por oportunismo, e nao por convicçao democrática, que agora os membros da comunidade jurídica estejam defendendo os direitos democráticos. Mas isso nao me interessa, eu defendo os direitos democráticos por acreditar na necessidade deles. E por interesse e prudência, vivi a época da Ditadura, sei que o arbítrio quando começa nao tem limites e nao quero nenhum “patriot act” por aqui. 

        Acho que a gente (é um “a gente” genérico, nao estou falando sobre você e eu) tem que parar de misturar coisas diferentes. Ser contra as manifestaçoes nao nos deve levar a bater palma para a repressao ILEGÍTIMA aos manifestantes. Achar que o PSOL foi oportunista nao é justificativa para ser oportunista também, até porque isso seria uma enorme falta de coerência e lógica. Reconhecer tudo isso que você diz nao deve nos levar a agir com o mesmo oportunismo, e só defender os direitos democráticos quando nos interessa diretamente. Se os outros têm duas caras e usam de 2 pesos e 2 medidas, nao devemos ter também! Se fizermos isso, perdemos completamente a moral para censurá-los. 

        1. Concordo com vc; só quis

          Concordo com vc; só quis alertar para o fato de a comunidade jurídica estar metida nesse imbróglio até o pescoço. Não é uma questão política stricto sensu. Fou uma armação e contou com a cumplicidade dos que agora querem posar de defensores da democracia. Varrer tudo para a política, fingindo não estar fazendo política baixo nível, entende? De resto é o que já postamos, várias vezes, as prisões foram arbitrárias e o problema está resolvido, em parte. Ainda resta o julgamento dos denunciados. De qq forma, não podemos ter duas legislações como está defendendo a comunidade jurídica, sabe-se lá pq. A lei que vale para os manifestantes é a que deveria ter valido para os condenados da AP 470. Insisto na AP 470 pq foi a porta para o golpe do judiciário, aqui, inclusive, os ministros contavam com essas manifestações para chancelá-lo e fizeram questão de não esconder isso. Uma coisa é manifestante bucha de canhão de 30 anos que liga para os país qdo a coisa aperta; outra bem diferente, é jurista golpista.

          1. Senti isso d q vc fala desde q cassaram o governador do Maranhao

            Mas nao cassaram Roseana, igualmente acusada de crime eleitoral. E nunca aprovei a Lei da Ficha Limpa. Sempre me lembrava de como uma pessoa íntegra como Erundina quase perdeu o único bem que tinha como “puniçao”. Claro que nao sou favorável à corrupçao, mas acho o discurso contra a corrupçao extremamente perigoso, porta para que a força da lei se abata só sobre uns. 

  4. Pontinhos, pontinhos, pontinhos….

    Quando não se quer explicar algo, ou porque é muito difícil ou simplesmente fica difícil porque é inexplicável, é possível utilizar a técnica dos pontinhos, pontinhos e pontinhos. Poderia dizer simplesmente o nome dos pontinhos, as reticências, mas aí ficaria óbvio demais.

     

    A origem latina da palavra reticência vem de calar e no sentido que se usa as reticências é não dizer algo para que o leitor preencha as lacunas.

     

    Quando se emprega reticências, cada um preenche os pontinhos com seu próprio raciocínio, que conforme o autor pode ser único e bem mais amplo do que já foi escrito.

     

    Porém, sem colocar os pontinhos, é possível escrever um texto pleno de reticências, simplesmente eliminando partes comprometedoras do raciocínio e deixando que o leitor a preencha.

     

    O problema da técnica de textos com reticências implícitas é que este se torna um texto somente para iniciados, colocam-se frases curtas e de forma aparentemente desconexas para que os iniciados no assunto preencham as lacunas. Se o iniciado for alguém brilhante e persistente, ele preencherá as lacunas, gerando mentalmente um texto brilhante que muitas vezes passa longe do que o autor desejava. Se o iniciado não for brilhante, ou não tiver a mínima vontade de trabalhar pelo autor, o resultado torna um texto maçante, desconexo e dúbio.

     

    Pois bem, o texto acima, “Estado policial atinge a todos” me parece uma obra prima da reticência, as lacunas entre os diversos parágrafos são intensas e bem mais desconexas do que o desejável, não há o famoso ordenamento lógico que deveria lavar uma conclusão final, mas aparenta erudição!

     

    Imensas lacunas não permite que quem está de acordo com a conclusão final, que retroage ao título, a prova da tese. Lê-se uma vez, duas ou três e somente se visualiza uma verdadeira colcha de retalhos que dá uma imensa preguiça ao leitor de costurar esta colcha, porém dá uma ideia de erudição que num país como o nosso onde a tradição e elogio do bacharel são intensas até parece que o autor tem mais classe do que qualquer um.

     

    Agora, sem pontinhos, colocando em português chulo e vulgar, tá uma Bosta.

    1. Em matéria de reticências, esse comentário dá de dez

      Faz exatamente o que censura. Além da irrelevância de tanto texto para dizer (na verdade insinuar) tao pouco. 

    2. Não entendi muito bem o que

      Não entendi muito bem o que vc quis dizer. De qq forma o autor é um dos poucos que lutam pela não seletividade na aplicação do Direito. O uso das reticências foi, apenas para não colar a íntegra de um texto que, provavelmente, não alteraria o sentido da postagem.

  5. Sabedoria

    “Quando a reação desproporcional a manifestações prenuncia a abertura de portas demasiadamente amplas ao Estado policial, o silêncio, quando não a cumplicidade,”

     

    Quem protestou, quem silenciou, quem foi cumplice? Quem é quem nessa história?

     

    “O buraco negro do processo eleitoral liberta os mais primitivos instintos, por meio dos quais interesses sobrepõem-se a princípios e a política, por paradoxal que possa parecer, contribui fortemente para aniquilar conceitos primários da democracia.”

     

    Por isso, não me meto em política. Sou neutro. Um ser acima do bem e do mal. Um sábio.

     

    ““Eu sou um congressista e vocês não podem fazer isso”, grita ao investigador que lhe responde de bate-pronto: “Graças a você e seus colegas, podemos sim”.”

     

    Aí, o cipó de aroeira (aquele que se volta no lombo de quem mandou dar) dá um nó na lógica do argumento.

    Resumindo, fora da política não há saída. Ou participamos dela, para transformá-la, correndo riscos… Ah, os riscos – de ser chamado de ladrão, corrupto, de poder ser condenado, não pelos fatos, mas por uma teoria que os domina – sobrepondo-se a eles. Para que correr riscos metendo o pé na lama política. 

    Mas e a realidade, injusta e cruel? Ora, vou continuar criticando-a, de forma neutra, limpa, pura, SÁBIA.

  6. Profissionais

    O Estado por si só é muito pesado.É quase onipresente, mesmo numa democracia de instituições fortes.Tal realidade para quem está ou se se considera no alto da pirâmide muitas vezes é subestimada.Quando ocorre atropelos envolvendo cidadãos politicamente influentes , principalmente entre aqueles que representam o poder do Estado, uma teia protetora se forma ao redor dos supostos transgressores. Vozes influentes tentam conturbar e deturpar o ordenamento jurídico utilizado para isolar do convívio social estes elementos que  mancharam a moral e a ética imposta pela  ordem institucional.

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