Falhas da América Latina no combate à pobreza

Os programas de transferência de renda de México, Brasil e Peru convergem para a necessidade da criação de estratégias de integração com as demais políticas de estado. As ações de combate à pobreza são implementadas pelos dois primeiros países há pelo menos 15 anos, e no Peru há 6. Ainda assim, cerca de 20% das populações do Brasil e México estão situadas abaixo da linha da pobreza, assim como mais de 30% dos habitantes peruanos.

A análise é de Luciana Rosa de Souza, realizada em sua tese de doutorado, recentemente defendida no Instituto de Economia (IE) da Unicamp, e orientada pelo professor Walter Belik. Ela conclui que os três países pecam nos mesmos pontos: desprezo pelo que foi feito nos governos anteriores, assim como na falta de integração entre as demais políticas existentes no estado.

Luciana fala em melhorias nos serviços de saúde e educação, além do mercado de trabalho, diretamente ligado às condicionantes da economia, utilizando como argumento dados do Banco Mundial – nos últimos anos o crescimento do PIB respondeu por 55% da queda da probreza na América Latina, enquanto as políticas de transferência de renda, por 20%. Em resumo, as ações de enfrentamento à pobreza são importantes “mas se estiverem articuladas a uma rede maior de proteção social, o impacto delas seria bem maior”.

Nos últimos oito anos cerca de 28 milhões de brasileiros saíram da extrema pobreza, já o governo mexicano anunciou, recentemente, o aumento em 2% do total da população situada nessa faixa. O que explica a situação do México é o fato da sua economia ser mais dependente dos Estados Unidos.

Luciana destaca que, entre as três nações, o Brasil apresenta uma estrutura de política de redução da pobreza mais complexa, no sentido positivo. Como exemplo apontou a estratégia Fome Zero, passando por reformas que deram origem em duas frentes de atuação: a primeira, emergencial, foi a distribuição de cestas de alimento. A segunda foram as ações estruturantes, como o programa Luz para Todos, que nasceu porque muitas comunidades rurais tinham dificuldade para escoar a produção por falta de eletricidade.

Acompanhe os principais trechos da entrevista à seguir.

Brasilianas.org – Como funcionam as atuais políticas de distribuição de renda em cada um dos países que analisou?
Luciana Rosa de Souza – O objetivo do programa mexicano é de longo prazo mesmo, a ideia é resolver o problema intergeracional da pobreza. Ele não está assumindo a responsabilidade de resolver o problema da pobreza dos pais, mas sim se comprometendo em resolver o problema dos filhos. Então é dado um estímulo em dinheiro para as crianças estudarem no ensino básico. Quando entram no que podemos chamar aqui como o nosso ensino médio transferem recurso e também fazem uma poupança, à parte, para esses jovens que pode ser usada só depois que se formam para entrar na faculdade ou abrir um negócio, por exemplo. Enfim, no total, ao longo dos três anos do ensino médio, pelos cálculos que fiz, consegue-se juntar no máximo até 2 mil dólares.

O programa brasileiro tem uma interface que visa aumentar a oferta e a demanda por serviços públicos. Então, o Bolsa Família quando impõe as condicionalidades [como a obrigação das crianças apresentarem um nível de frequência na escola de no mínimo 85% todos os meses] não está se colocando na responsabilidade de resolver o problema da pobreza intergerações, mas na perspectiva de fazer com que a família toda, não só as crianças, acessem os serviços de educação, saúde, que são garantidos pela Constituição Brasileira. Nesse sentido, o objetivo do programa é muito mais de aprofundar a demanda e o conhecimento das famílias mais pobres dos direitos que elas têm em relação às políticas de proteção social, em especial, educação e saúde.

E o caso peruano já é totalmente diferente, inclusive os autores consideraram um programa de terceira geração, porque o objetivo dele é realmente emancipar a família, nos termos de torná-la independente do Estado.  Então, durante quatro anos essa família vai receber o dinheiro do governo que se compromete a criar alguma forma de renda para inseri-la no mercado formal de trabalho, ou no de produção bens agrícolas, por exemplo, e aí, após quatro anos a família vai sair do programa. É uma ação bem pragmática mesmo, com o objetivo de inserir essa população no mercado de trabalho. Esses três desenhos, em tese, apontariam para caminhos e resultados diferentes, e na verdade o que pude concluir, analisando os documentos oficiais de cada país, é que não.

O que encontrou em comum entre elas?
As políticas de combate a pobreza vem sendo executadas na América Latina, basicamente, desde o Consenso de Washington (novembro de 1989). O México foi o primeiro a implementá-las e o Peru, o último. Então, uma das questões que permearam a tese foi saber se, por terem sido criadas em momentos distintos, os resultados de cada uma dessas políticas seriam diferentes, como era o esperado. Mas os resultados apontaram que não, mesmo tendo metas e desenhos diferentes, os três países têm necessidades de articular seus programas de combate à pobreza com as demais políticas sociais.  Ou seja, existe um limite que é a falta de articulação com outros serviços de proteção social, como um todo, que dificulta essas nações a acabarem com a pobreza.

Que outros serviços de proteção social seriam esses?
Na verdade, o que mais contribuiu para reduzir o número de pessoas situadas abaixo da linha da pobreza foi a melhora da economia. Recentemente, inclusive, o Banco Mundial publicou um documento onde diz que a renda do trabalho e o aumento no crescimento do Produto Interno Bruto respondem por 55% da queda da pobreza na América Latina, e as políticas de combate à pobreza por 20%. O dado mostra que essas ações [de combate a pobreza] têm uma funcionalidade importante, mas, se estivessem articuladas a uma rede maior de proteção social, o impacto seria bem maior. Entretanto, é inegável que para reduzir a pobreza é preciso ter crescimento do Produto Interno Bruto, melhoria do mercado de trabalho com aumentos no salário mínimo, expansão dos direitos trabalhistas. Nesse sentido nós reforçamos a questão da problemática do Brasil de alta taxa de juros, o impacto que isso causa sobre as variáveis de consumo, investimentos privado, como isso gera uma sangria no orçamento público, porque saem bilhões para pagar os juros da dívida e esses recursos poderiam ser aplicados em várias situações. Uma ponderação importante é que a queda da pobreza também tem a ver com os movimentos cambiais, então, se o câmbio está valorizado, o preço dos alimentos e de outros produtos caem naquela moeda. Logo, isso facilita para que as pessoas mais pobres tenham acesso maior a alguns produtos.

Explique um pouco mais sobre a conclusão que chegou sobre a desarticulação das políticas.
A política de combate à pobreza fica isolada e com efeitos muito marginais em decorrência de não existir uma articulação dela com outras políticas que os estados oferecem. Por exemplo, no caso do Brasil, entre as condicionantes do Bolsa Família está a frequência das crianças nas escolas, entretanto, nas regiões mais carentes, a oferta desse serviço, assim como da saúde, apresenta déficits na qualidade.  Conclusão: se ambas as políticas (educação e saúde) tivessem sido melhoradas, onde residem a maior parte dos beneficiários do Bolsa Família, provavelmente os impactos do programa no desenvolvimento humano seria muito maior.

É importante destacar que quando falamos que as políticas de combate à pobreza não estão conseguindo emancipar os beneficiários da pobreza, não estamos tomando o jargão dos direitistas que dizem ‘ah! O pobre tem que aprender a se virar e pescar’. A discussão do trabalho não é essa e sim a possibilidade dessa pessoa ter cidadania. Queremos apresentar possibilidades de inclusão dessas pessoas, não como consumidores, ou massa de mão de obra para o mercado de trabalho. Porque o que entendemos como pobreza não pode ser medido apenas pela renda. Uma pessoa pode ser pobre e não ter renda, mas pode passar a ter renda, por exemplo, e ainda não conseguir ter acesso a algum trabalho porque não tem transporte público, ou mora numa casa onde na rua passa esgoto. Tudo isso faz parte da pobreza. Querer reduzi-la somente pela renda é um equívoco.

Que dificuldades, além da fragmentação de políticas, encontrou durante a pesquisa?
Basicamente o núcleo duro da crítica é a questão da fragmentação das políticas e, em decorrência dessa fragmentação, a dificuldade de bons resultados dessas políticas. Mas outras questões foram levantadas na tese. Uma importante é o conceito que chamamos de path dependence, que em português poderíamos chamar de dependência de trajetória. O que observei nos três países é um padrão regular. Existe uma política, um programa que está muito bem desenhado, faz sucesso, mas sai o governo e o outro que entra despreza-o e cria um outro programa com o seu nome. Então, falta uma continuidade, isso em todos os três países. No México, o programa “Contigo” foi do governo [Ernesto] Zedillo (1994-2000), o “Vivir Mejor”, do Vicente Fox (2000-2006), por exemplo.
Essa é uma questão muito importante em termos de gestão, porque a partir do momento que os formuladores de política deixarem de desprezar o que foi feito no governo anterior e considerarem os aspectos importantes, vamos ter programas de políticas com desenhos mais aprofundados e melhorados.

Bom, falam que o programa Bolsa Família reuniu e fortaleceu várias políticas contra pobreza, do período Fernando Henrique. Podemos supor, portanto, que o governo Lula fez isso, ou seja, aprofundou e melhorou ações que já existiam, com a diferença ter dado um novo nome para tudo?
Sim. A literatura trata o Bolsa Família como um programa com path dependence (dependência de trajetória) justamente pelo fato de seu desenho ter sido originado a partir da fusão de quatro outros programas que eram executados durante o governo FHC. Nestes termos, podemos dizer que o Bolsa Família é um programa de transferência de renda cuja concepção veio do governo anterior, mas, os recursos repassados e o número de beneficiários foi amplamente aumentado com o governo Lula, lógico que em comparação ao governo FHC.  Foi uma continuidade das ações do governo anterior, mas, de forma mais unificada e atingindo um contingente maior de beneficiários.

Por outro lado, o Brasil sem Miséria se propõe a fazer o mesmo que o Peru tenta, que é inserir a família no mercado de trabalho? Um dos objetivos dessa ação é se unir ao MEC [Ministério da Educação] para a inserção da população mais carente em cursos de profissionalização, por exemplo….
Porque estamos vivendo uma fase de escassez de mão de obra especializada no país, e é sabido que a população, especialmente as mais pobres, tem muita dificuldade de acessar a educação, e de se inserir via educação no mercado de trabalho, então, um dos principais objetivos das ações do Plano Brasil sem Miséria é justamente trazer essa profissionalização para esses beneficiários de maneira a melhorar a vida deles e a disponibilidade de mão de obra para o mercado de trabalho. Nesse sentido, depois de muitas críticas que o Bolsa Família recebeu, desde 2003, me parece que o Plano Brasil sem Miséria veio contemplar essa busca para trazer essa população (extremo pobre) mais para o mercado de trabalho, de produção, no caso das famílias das regiões rurais. Mais com o objetivo de emancipá-los da pobreza. Novamente gostaria de ressaltar que o que a gente entende por emancipar da pobreza é mais do que a pessoa ter um trabalho, além disso, a pessoa deve ter acesso a serviços públicos e de qualidade, inclusive transporte, saneamento básico etc. Mas o que a literatura trata é que emancipar é uma forma de ter uma renda independente do auxílio estatal.

México e Peru também têm implementado ações que são chamadas de “estratégias”. São elas  Vivir Mejor (Mexico) e Crecer (Peru). O México desde 2001 implementa “estratégias” Contigo, 2001 – Governo de Zedillo, Vivir Mejor 2006 – Vicent Fox. No Peru os programas são relativamente novos, por isso só apareceu a Estratégia Crecer (2007). No Brasil tivemos a estratégia Fome Zero (2005) e agora o Plano Brasil Sem Miséria (2011).

Qual é a média de renda individual ou por família concedida por cada um dos países aos programas de repasse de recursos? Como seria isso contabilizado em dólares?
No México, famílias com bolsistas no ensino primário e secundario pode receber até 1.095 pesos mexicanos por mês, sendo 180 pesos concedidos como apoio alimentar e até 915 pesos concedidos como bolsa. Isso é equivalente a US$ 86,90 por mês. Famílias com bolsistas nos níveis primários, secundário e preparatório recebem até 1.855 por mês, sendo 180 pesos concedidos como apoio alimentar e 1.675 por meio de bolsa. Isso dá US$ 147,22.

No Brasil as famílias consideradas no nível de extrema pobreza, com renda per capita menor que R$ 70,00, recebem até R$ 242, ou US$ 142. Já as famílias consideradas apenas pobres, com renda per capita entre R$ 70,00 e R$ 140,00, recebem benefício de até R$ 172,00, ou US$ 101,52. No Peru, uma família recebe por mês 100 nuevos soles, algo em torno de US$ 35,00 (a preços de 2010), independente do número de crianças no domicílio. É importante destacar que os valores em dólares foram calculados a dólares constantes do ano 2010. E o poder de compra da moeda peruana é bem maior que o poder de compra da moeda brasileira e mexicana.

O que você acha do auxílio ser recebido em dinheiro?
Os três programas [do Peru, Brasil e México] transferem dinheiro porque é mais fácil do que transferir outro tipo de bem. Mas acho que tem duas questões importantes de se ponderar, no caso específico desses países. Primeiro, que os recursos em sua maioria são orientados para alimentação e gastos com educação. Todas as pesquisas apontam isso, não conheço nenhuma que diz o contrário. Mas, obviamente, quando você transfere o recursos ele pode ser utilizado para qualquer coisa. Agora, a visão que temos como economista é o seguinte, ainda que o recurso seja gasto com outros produtos que não sejam alimentação ou educação, esse gasto vai dinamizar localmente o distrito ou cidade. Então, isso foi claramente visível nas cidades do Nordeste depois que o Bolsa Família começou a ser implantado, passando a ser um sucesso. Existem relatos dos próprios jornais de que as cidades mudaram de cor etc. Assim, você gerava um movimento naquela sociedade que estava sem renda. Ao mesmo tempo respeita a liberdade da pessoa de escolher como gastar o dinheiro, se ela gastar com outra coisa pode ficar sem alimento, por exemplo.

Você também estudou as políticas de segurança alimentar dos três países?
Sim. Os três países têm problema de alimentação. No Brasil, uma pesquisa de 2008, mostrou que 54% dos beneficiários do Bolsa Família estavam em situação de insegurança alimentar ao longo do mês. Isso significa que eles não tinham certeza se o dinheiro seria suficiente para se alimentarem até o final do mês, não quer dizer, exatamente, que passam fome. O México possui muitas políticas e programas de alimentação para atender o publico que não faz parte do “Progressa e Oportunidades”, e recentemente, o que foi mais triste é que tanto a pobreza quanto a indigência cresceu 2% nesse país. O problema lá é muito mais sério porque são extremamente dependentes da economia norte-americana. E o Peru tem registrado queda nos índices de pobreza, mas tem um problema muito sério que é de desnutrição infantil, com uma das maiores taxas  do mundo. E é uma questão cultural, da forma como se alimentam. Então, na tese, discutimos o papel que tiveram as promotoras que são auxiliares das mães explicando o que têm que fornecer para as crianças etc.

O programa Fome Zero acabou entrando na estratégia do Bolsa Família?
Na verdade inverteu-se a casualidade. O programa Fome Zero era uma estratégia ampla que embarcava o Bolsa Família, só que era muito difícil de executar porque exigia ao uma a transversalidade entre ministérios e governos estaduais e municipais que é muito dificil de se obter na prática política. Então, a partir de 2005, o próprio governo passou a chamar o Fome Zero de estratégia de combate à pobreza, deixando de ser um programa. Então, quem passou a receber o status de programa e receber os maiores recursos foi o Bolsa Família, que é relativamente fácil de implementar. O MDS [Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome] tem a Secretaria de Renda e Cidadania que recebe os recursos e repassa para estados e municípios via  Caixa Econômica para os mais pobres.

Como se resumem as ações do Fome Zero?
Elas tinham duas frentes de atuação, a primeira emergencial, que era a distribuição de cestas de alimento, questões mais urgentes. A segunda são as estruturais ou estruturantes, dentre elas fomento à agricultura familiar, melhoria da oferta de serviços públicos em todos os sentidos, inclusive aquele projeto Luz para Todos surgiu no bojo da discussão do Fome Zero, porque muitas comunidades rurais tinham dificuldade para escoar sua produção porque não tinham energia elétrica. Então ele trazia essa noção, nessa parte estruturante, a ideia era estruturar serviços, redes de proteção para que essas famílias pudessem produzir e se inserir nesse marcado de consumo. E se você for analisar o Plano Brasil sem Miséria, ele tem também três níveis de execução e medidas estruturantes em cada uma delas, nesse sentido de organizar o estado, por exemplo, na construção de [uma linha de] trem para escoar a produção dos agricultores, mineiros, para o porto e exportar.

Nesse sentido, o país que teria uma estrutura de políticas para redução da pobreza mais complexa é o Brasil?
Nesse sentido o Brasil está mais à frente, sim. Em termos de combate à pobreza as discussões aqui têm sido mais polêmicas e, ao mesmo tempo, mais aprofundadas e temos tido muitas experiências boas e positivas, isso é verdade. O México, por exemplo, tem até discussão de estratégias, mas a implementação, como isso está nos ministérios do México, não é visível. O Peru também tem, mas conta com ajuda internacional, tem a UNICEF, Banco Mundial, Banco Interamericano, todos ajudando o Peru para fazer algumas coisas, aí é óbvio que alguns resultados podem ser interessantes, mas não são idéias genuínas do povo peruano. Nós, ao contrário, temos quebrado a cabeça, discutido e avançado nesses programas ao longo dos anos.

Nome da tese: “Entre a teoria e a prática: uma análise das políticas de combate à pobreza em três países da América Latina – México, Brasil e Peru”.

Redação

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