Fernanda, a grande, por Walnice Nogueira Galvão

Ultimamente, à guisa de balanço de uma vida, a atriz nos brindou com dois trabalhos de fôlego. Um deles é Fernanda Montenegro – Itinerário fotobiográfico , uma beleza de edição e de pesquisa, publicado pelo Sesc.

Foto Divulgação

Fernanda, a grande

por Walnice Nogueira Galvão

O “Especial de Natal” da Globo brindou-nos Fernanda Montenegro, em  Gilda, Lúcia e o bode. É uma oportunidade única, e de ouro, para nós: um show de talento e profissionalismo da primeira atriz absoluta e grande dama do teatro, Fernanda Montenegro, aos 92 anos!  Engraçadíssimo, expõe sua extraordinária competência, encarnando  uma velhinha danadinha, em quem ninguém manda, dona de seu nariz e louca por esquemas financeiros mirabolantes, que a mantêm na bancarrota.

Foi um papel semelhante que lhe granjeou o Emmy pela D. Picucha de Doce de Mãe,  uma velhinha espevitada mas “moderna”, gabando-se de estar em dia com a cultura digital etc.

 Lembremos que foi só na meia-idade que o reconhecimento internacional finalmente chegou para a atriz, nos anos 90, servido por uma obra-prima como Central do Brasil, de Walter Salles. A protagonista é uma professora aposentada  que, para ganhar um dinheirinho, vai à estação de trem para escrever cartas (que não põe no correio) ditadas pelos pobres analfabetos, migrantes que deixaram laços de família no interior remoto. Cética e às vezes mesmo cínica, acompanha a ida de um menino ao sertão em busca do pai, após ver a mãe morrer ali mesmo na porta da estação. Viagem iniciática,  faz a mulher mudar e atingir outras camadas de seu ser, abrindo-se para a solidariedade e a amizade. E mostra um Brasil que não é de cartão postal. A bela cidade do Rio,  aliás, não é vista no filme: só vemos seu lado infernal, na violência da turbamulta em alta velocidade entrando e saindo dos trens. Certamente é o maior desempenho de uma ilustre carreira, coalhada de grandes desempenhos. Angariou-lhe muitos prêmios nacionais e internacionais, como o de melhor atriz no Festival de Berlim, com indicações para o Oscar e para o Globo de Ouro.

E, caso curioso, que acontece com algumas outras atrizes – poucas, é verdade: Fernanda foi ganhando e ampliando reconhecimento à medida que a idade avançava, bem para lá dos limites da aposentadoria dos meros mortais. As atrizes dependem muito do critério machista da beleza equacionada à juventude, é óbvio, e as carreiras femininas não ultrapassam a barreira da meia-idade. É só olhar ao redor… Alguém com o mundo a seus pés como Meryl Streep gosta de repisar esse tema, por experiência própria.

Não menos admirável é, afora a idade, assumir suas humildes origens na penúria e na carência, procurando incutir a mesma postura desassombrada em seus filhos, levando-os para conhecer “de onde vieram”: lavradores portugueses na varonia e pastores da Sardenha na linha materna. E podemos contar com ela como modelo de integridade na esfera pública.

Ultimamente, à guisa de balanço de uma vida, a atriz nos brindou com dois trabalhos de fôlego. Um deles é Fernanda Montenegro – Itinerário fotobiográfico , uma beleza de edição e de pesquisa, publicado pelo Sesc. O outro é  Prólogo, ato, epílogo, memórias escritas por ela e editadas pela  Companhia das  Letras. Ali o leitor verá que, além de tudo o mais, ela sabe escrever assim como sabe falar, em seus pronunciamentos sempre muito claros, bem formulados e incisivos, numa rara combinação de discreção e reserva com altivez.

Selecionamos aqui, como homenagem especial, a cena de catar feijão no filme Eles não usam black-tie.  Graças ao talento excepcional de Fernanda, mais Gianfrancesco Guarnieri e o diretor Leon Hirszman, na cena quase muda só se ouve o tinido dos grãos caindo na bacia de metal. É o gesto básico de catar feijão, que qualquer um entende, numa casa pobre, de operários tristíssimos após a derrota da greve, mas reafirmando a união e a perseverança, expressa no gesto que implica que a vida continua: haja o que houver, amanhã o feijão precisa estar na mesa. Ambos catam de modo diferente: ele retirando as impurezas com as pontas dos dedos, sobre o feijão espalhado em camada sobre a mesa; ela, marejados seus olhões que devoram metade da face, com a mão inteira, fazendo o bom feijão catado cair na bacia que segura no colo, enquanto com a outra mão vai retendo sobre a mesa o estragado. De gênio, ou de três gênios. Uma das mais belas cenas do cinema, e não só do brasileiro.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Walnice Nogueira Galvão

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