Impressão 3D: a nova tecnologia fará ressurgir uma religião antiga?

Ontem o Jornal da Gazeta divulgou matéria sobre uma inovação que chegou a São Paulo. A impressão de bonecos pessoais 3D feitas sob encomenda. A pessoa que contrato o serviço é fotografada numa plataforma giratória por várias câmeras. Um programa transforma as fotos numa imagem 3D e a mesma é impressa em resina por uma impressora 3D. O preço não é muito convidativo. O interessado poderia fazer imagens 3D de todas as pessoas de sua família para poder se lembrar delas como eram, disse a dona de uma das empresas que atuam no ramo.

 

O primeiro teórico a falar em “sociedade do espetáculo” foi Guy Debord http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/socespetaculo.pdf mas ele não foi o primeiro a teorizar sobre o narcisismo que a caracteriza. Em uma de suas primeiras notas sobre o fenômeno, Freud afirma que o narcisismo é a concepção do eu como objeto de amor, o reconhecimento de identificações como base do narcisismo e as relações destes com as escolhas dos objetos http://www.unifil.br/portal/arquivos/publicacoes/paginas/2012/8/494_811_publipg.pdf .

 

As selfies são, sem dúvida alguma, uma manifestação do narcisismo presente na “sociedade do espetáculo”. Quem de si tira uma foto a fim de comprovar que estava presente numa determinada reunião ou evento que considera histórico (como, por exemplo, durante o velório do Eduardo Campos) não o faz apenas para ter a foto mas para a compartilhar. Participei daquele espetáculo é a mensagem subjacente à selfie, cuja exibição por si só também constitui um espetáculo (e tem o potencial de gerar outros, como as fotomontagens que foram feitas de uma mulher que fez de si uma selfie próxima ao caixão do candidato do PSB falecido).

 

O boneco 3D referido na matéria do Jornal da Gazeta pode ser considerada uma sucessão de selfies imortalizadas num outro tipo de suporte. O simulacro 3D de resina feito sob encomenda é, sem dúvida, uma versão moderna e popularizada das estátuas de mármore em tamanho natural ou colossal que imperadores como Julio Cesar, Augusto, etc… mandavam erigir de suas pessoas. Mas em Roma antiga referidas estátuas não tinham apenas uma finalidade narcísica. Os simulacros dos imperadores também tinham uma finalidade política e religiosa.

 

Em público os romanos adoravam deuses como Jano, Marte, Júpiter, etc… Mas em casa, cada família romana adorava seu respectivo deus do lar (mane), que personificava os antepassados da mesma. Os lares ou manes eram cultuados dentro das casas, geralmente num pequeno altar – contendo estatuetas – que ficava próximo ao fogo. O próprio fogo era considerado uma espécie de manifestação do deus familiar e, portanto, deveria ser mantido sempre aceso. Fustel de Coulanges em seu livro A Cidade Antiga fornece todos os detalhes e ritos da religião dos romanos.

 

Com o tempo, simulacros dos imperadores romanos começaram a ser colocados nos templos para serem adorados como se eles mesmos fossem deuses lares (manes) da civilização romana. Em Roma e entre os povos profundamente romanizados a nova prática não causou muito escândalo. Mas quando tentaram colocar a estátua do imperador romano no Templo em Jerusalém os judeus se rebelaram e o incidente quase provocou uma guerra. Os judeus não aceitavam cultuar outro deus, não reconheciam a natureza divina do imperador romano e nem tampouco representavam Jeová com estátuas.

 

Até o presente momento não conheço ninguém que tenha cogitado mandar fazer um simulacro 3D de si mesmo em tamanho natural para ser adorado em público. A novidade porém, certamente excitará algumas celebridades excitadas que usam substâncias excitáveis O mais provável é que cada cliente que de si mande fazer um boneco 3D  mantenha o mesmo em casa. Os remediados membros da classe média paulista, que adoram novidades e raramente refletem nas suas implicações, talvez mandem imprimir bonecos 3D de toda família, erigindo em casa um altar com imagens de todos os membros da família (como, aliás, sugeriu a dona do negócio ao Jornal da Gazeta).

 

É cedo para saber exatamente o que os devotos da nova tecnologia farão com os bonequinhos 3D de seus parentes depois que eles venham a falecer. Sabemos, entretanto, que as pessoas conservam as fotos dos seus antepassados sendo razoável supor que venham a se apegar com fervor igual ou até maior aos simulacros 3D dos seus pais, avós, filhos, tios etc… impressos em resina. Uma consequencia possível desta nova e provável prática futura será o renascimento da antiga religião dos lares e manes. Por vias obliquas, portanto, a nova tecnologia e o narcisismo presente na “sociedade do espetáculo” podem nos devolver a um estágio civilizatório anterior ao atual. Se isto será bom ou não saberemos apenas quando o passado chegar aos lares brasileiros.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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