Indiferença à Assimetria Democrática: Desigual e Contrário
por Fernando Nogueira da Costa
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.
Indiferença – Bertolt Brecht
A opinião pública e a intelectualidade alemãs ofereceram pouca resistência à queima de livros de autores “pouco alemães” pelos nazistas. A imprensa burguesa tomou distância, minimizando sua responsabilidade ao atribuí-la ao “fanatismo estudantil”.
Essa lição da história ensina: quando um candidato à presidência da República leva à entrevista do Jornal Nacional um livro como um exemplo, entre outros, que estaria disposto a “queimar”, caso se eleja, não dá para nenhum democrata ficar indiferente. Uma pessoa omissa não deve adotar o autoengano, tipo “entre petistas e antipetistas, essa briga não é minha, eu não importo porque eu me coloco como superior a ambos”.
No segundo turno de uma eleição entre um candidato democrata e outro fascista à la brasileira, não há falso dilema ou falsa dicotomia. A terceira possibilidade (invalidar o voto) deve ser excluída pela consequência dessa indiferença política. Esta é apontada no poema de Brecht na epígrafe. Nesse caso, não há como fugir do pensamento preto ou branco. O essencial na discussão política está reduzido a duas categorias opostas: ao rejeitar a pior das opções – o regresso ao regime militar autoritário –, o eleitor não tem alternativa a não ser aceitar a melhor – o avanço das conquistas da cidadania.
Está aí um dos erros da “grande” (sic) imprensa brasileira: tratar indistintamente ambos candidatos sem se posicionar também em defesa da democracia contra um deles. Ele não aceita o resultado soberano das urnas em caso de derrota e, na outra hipótese, não se obriga a respeitar a Constituição e os direitos fundamentais de todos os cidadãos ao conduzir o governo. Ele não.
Ele lança suspeição infundada sobre o sistema eletrônico de votação caso não seja o vencedor da eleição. Ele não.
Ele louva torturadores do regime militar ditatorial (1964-1984). Ele não.
Ele debocha das mulheres e desrespeita as minorias. Ele não.
Ele tem um vice-general a ordenar o capitão reformado dar um autogolpe. Ele não.
Ele tem um “ministro-posto Ipiranga” a pregar apenas os votos de lideranças partidárias para impor o CPMF, a alíquota de 20% de imposto de renda para todos, a privatização de todas empresas estatais, o regime de capitalização em lugar do regime de repartição da Previdência Social. Ele não.
O bordão “Eleição sem Lula é fraude” foi apenas de uma minoria do PT. Não é aceita pela maioria do partido. A própria campanha civilizada e propositiva de Haddad desmente em público esse questionamento. Lula ganharia no primeiro turno. Haddad sim, vencerá a eleição.
A mídia busca impor um purgatório cristão ou uma autocrítica estalinista ao PT. Prega um “ato de contrição petista pelo apoio incondicional à atroz ditadura venezuelana”. Ora, ela deveria sim lembrar aos (e)leitores: o objetivo mais ambicioso da política externa ativa e altiva, adotada pelo governo Lula e preservada no governo Dilma Rousseff, era modificar a posição do Brasil na divisão internacional do trabalho. Foi reconhecido por líderes mundiais o sucesso dessa estratégia do ministro Celso Amorim e seus sucessores. Basta a comparar com o isolamento da atual política externa brasileira. Haddad sim, voltará com uma política externa independente da norte-americana e sem ingerência na política interna de Nações independentes.
Lula não pleiteou novo mandato através de reeleição, aliás, como fez Fernando Henrique Cardoso, assim como os presidentes do Equador, Venezuela e Cuba. E no auge da popularidade, no fim de seu governo (85%), certamente Lula conseguiria apoio popular e congressual para isso.
Não houve durante os governos Lula e Dilma nenhuma censura à imprensa hostil ou rebelião às decisões arbitrárias do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, embora ambos tenham sofrido muito, seja com o golpe parlamentarista no presidencialismo, seja com a prisão política com base em delações encomendadas e falso pretexto de apartamento não possuído. Lula não partiu para um autoexílio. Está preso com o sentimento de injustiça, aguardando um julgamento protelado no STF.
A mídia direitista inculcou em mentes dispostas o refrão “2 neurônio” (sem S, Tico-e-Teco): “PT, uma quadrilha”. Como se pode considerar “uma quadrilha” um partido de massa com simpatia de 29% do eleitorado brasileiro?! Simpatia esta nascida justamente por seu combate ao autoritarismo militar e, depois, por seguidas disputas eleitorais dentro das regras do jogo democrático. Aceitou as derrotas de 1989, 1994, 1998. Ganhou 2002, 2006, 2010, 2014. Atitude contrária teve o candidato do PSDB, derrotado nessa última eleição: ele resolveu “encher o saco do PT”, dando início ao golpismo.
Esse pensamento simplório comete a Falácia da Composição: como partes (alguns dirigentes) de um todo (partido) adotaram a prática contumaz de outros partidos – o financiamento empresarial corrupto de campanha eleitoral –, infere então o todo também deve ter aquele mesmo atributo. Esses ex-dirigentes estão pagando por seus erros. O Partido dos Trabalhadores deve tentar a Falácia da Divisão (inversa da outra): as partes (milhares de militantes) terem um atributo ético pertencente ao todo (partido). Instituições emergem do comportamento de adeptos de regras coletivas.
Dado o sofrimento causado por alguns erros na experiência anterior de financiamento eleitoral por empresários, dessa feita a conquista de direitos civis, políticos, sociais e econômicos deverá ser realizada com o cumprimento de deveres éticos e a impessoalidade exigida em cargos públicos por parte de todos os membros do futuro governo. O autocontrole pessoal e a fiscalização pública serão muito maiores.
“Não se deve repetir os erros do passado quanto há tantos novos a cometer”, recomendou ironicamente Bertrand Russell. Novo governo do PT não terá o direito de cometer os mesmos erros. Os próprios petistas zelarão por isso para não se comprometerem novamente com erros alheios em governo com coalizão partidária.
Ninguém deve se iludir ingenuamente. Tanto para ganhar a eleição em segundo turno, quanto para governar, serão necessárias alianças político-partidárias. É impossível ser purista em realpolitik. Este termo se refere à política ou diplomacia baseada principalmente em considerações práticas, em detrimento de noções ideológicas. O termo é, frequente e equivocadamente, utilizado de modo pejorativo, indicando tipos de política coercitiva, imoral ou maquiavélica.
Mas é uma questão política – e matemática. Somando Haddad (25,2%), Ciro (9,4%), Marina (2,3%) e Boulos (0,4%) obtém-se 37,3%. Como Haddad está com 42,7% no segundo turno, obtém ainda mais 5,4% dos demais eleitores, inclusive de democratas do PSDB. Um quinto (20%) do eleitorado é de indecisos, brancos e nulos. Restam 37,3% direitistas dispostos a votar na volta do regime militar.
A taxa de reeleição no Congresso Nacional, estimada em 54%, pode ser considerada como piso. A mesma dificuldade de constituir uma base governista majoritária persistirá.
A diferença será um governo de alianças sob a presidência da República de um excelente ex-ministro de Educação e inovador ex-prefeito muito preparado. Ele tem graduação em Direito, mestrado em Economia, doutorado em Filosofia, foi professor universitário em Ciência Política na USP e no INSPER. Enquanto isso, o ex-capitão reformado é deputado federal desde 1991, atualmente em seu sétimo mandato. Ele se notabilizou apenas por pertencer à bancada da bala e ser de extrema-direita. Ele não. Não são “iguais e contrários” como quer fazer crer a “grande imprensa”. São desiguais e contrários.
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