Insensatez a todo gás, por Ikaro Chaves

Assim como há uma geopolítica do petróleo, também há uma geopolítica do gás e o jogo costuma ser pesado.

Insensatez a todo gás

por Ikaro Chaves

Em entrevista ao SBT, em parceria com o portal Poder 360, no último dia 9 de outubro de 2019, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia DEM/RJ abordou a questão da expansão da infraestrutura de gás natural no Brasil.

O deputado citou o Qatar como exemplo de país que se valeu do gás natural para seu desenvolvimento. De fato, o pequeno emirado do golfo pérsico possui a terceira maior reserva de gás natural do mundo, o que, juntamente com sua também grande reserva de petróleo, permitiu que esse pequeno país, menor que o estado de Sergipe, ostentasse a segunda maior renda per capta do planeta.

Maia recorda que o Qatar simplesmente não explorava o gás que possui, concentrando-se na exploração de petróleo, mas que isso mudou a quase 30 anos, quando “se descobriu a tecnologia para se transportar gás via navio”. Claro que o Qatar não distribui todo esse gás natural em seu território através de gasodutos, o próprio Maia afirma que o Qatar exporta seu gás. Sim isso é verdade, é o quinto maior exportador do planeta e faz isso comprimindo e liquefazendo o gás em plantas especialmente construídas para isso.

Depois de liquefeito o gás, ou melhor, líquido à alta pressão, é acondicionado em grandes navios taques, transportado até o destino e regaseificado em plantas também especialmente construídas para isso. Esse processo torna, via de regra, o Gás Natural Liquefeito (GNL), menos competitivo que o transporte à baixa pressão em redes de gasodutos.

Assim como há uma geopolítica do petróleo, também há uma geopolítica do gás e o jogo costuma ser pesado. Um dos principais motivos que levou a Síria a ser quase destruída por uma sangrenta guerra civil foi justamente o interesse do Qatar em construir um grande gasoduto passando pela Arábia Saudita, pela Jordânia até a costa mediterrânea da Síria e de lá para toda a Europa. Esse movimento foi percebido pelos russos, que saíram em socorro dos sírios, pois a Rússia não tem a menor intenção em ter os qatarianos concorrendo em pé de igualdade na Europa.

A disputa pelo mercado europeu também opõe diretamente a Rússia aos EUA, que são hoje o maior produtor mundial de gás natural, no caso deles o shale gás. Mesmo sendo grandes consumidores, os EUA produzem excedentes exportáveis, mas que devido aos elevados custos de produção (tecnologia de fracking) e transporte, são menos competitivos que o gás russo. Enquanto para os EUA é preciso liquefazer o gás e transportá-lo em navios, já para a Rússia, basta transportá-lo direto por gasodutos de seu território até os consumidores na Europa.

Por isso os EUA pressionam de todas as formas os países europeus, mas especialmente a Alemanha a abandonar a parceria com a Rússia em projetos de gasodutos como o Nordstream e o Turkstream no Mar Báltico e no Mar Negro, respectivamente.

Mas e o Brasil? É certo que juntamente com o petróleo do pré-sal existe também grande quantidade de gás natural e ao ganhar um desses blocos de exploração, as petroleiras estrangeiras levam de brinde, além do petróleo, o gás que estiver ali presente. Com o petróleo é fácil, basta colocá-lo num navio e exportá-lo para qualquer lugar do mundo, mas com o gás, como vimos, é um pouco mais complicado.

O mercado de GNL no mundo vive um período de excesso de oferta, construir uma rede de gasodutos conectando os países da América do Sul para podermos exportar esse gás também parece pouco viável, não só pelos custos elevados, mas também pelo fato de haver grandes reservas no continente, como na Venezuela, na Bolívia e mesmo na Argentina, nesse último caso, recentemente descobertas. Ou seja, exportar o gás por navios parece pouco promissor, além do mais, tudo que os EUA não querem nesse momento é mais um concorrente nesse mercado e pela nossa vizinhança também não parece haver boas perspectivas.

Claro que as petroleiras estrangeiras, que estão tomando conta do pré-sal sabem disso. Se a ideia fosse exportar o gás brasileiro, não se estaria discutindo no congresso a criação de um tal Brasduto, fundo público a ser criado com recursos vindos da exploração do pré-sal, para que empresas privadas possam construir gasodutos pelo país. Para além do absurdo de retirar recursos do Fundo Social do Pré-sal, destinados à saúde e educação, para destinar a empresas estrangeiras construírem gasodutos, esse fundo deixa claro que o apetite do capital no Brasil é muito grande para auferir lucros, mas minúsculo para fazer investimentos.

A privatização da rede de gasodutos da Petrobras e a criação do Brasduto deixam claro que ao contrário do que o presidente da Câmara dos Deputados afirma, o projeto das petroleiras e do governo não é exportar o gás do pré-sal ou das reservas recém descobertas no Nordeste, mas abastecer o mercado interno. O objetivo é levar redes de gasodutos para o interior do país para ser consumido internamente, caso contrário estariam sendo projetados terminais de liquefação no Rio de Janeiro, em Santos e em Sergipe. Mas como esse gás será utilizado, então?

O gás natural poderia ajudar muito na indústria. Em processos industriais que usam calor é muito mais eficiente usar o gás que a energia elétrica. Mas com a indústria brasileira à míngua será que haverá mercado estável e promissor para o uso industrial desse gás? O setor automotivo é outro que poderia utilizar gás natural brasileiro, mas com os carros elétricos cada vez mais eficientes e baratos será que em 15 ou 20 anos ainda vai se vender carros à combustão?

Certamente o melhor, mais promissor e estável mercado para o gás natural brasileiro é o setor elétrico. Basta ver a evolução do uso do gás natural no Brasil e as projeções para o futuro elaboradas Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Segundo a EPE em 2020 as termelétricas representarão 14% da capacidade de geração instalada no país, já para 2029 a projeção é que esse índice salte para 19%, a maior parte disso através de térmicas a gás natural. Por outro lado, a mesma EPE projeta um crescimento também substancial da energia solar e eólica e diminuição significativa da participação das hidrelétricas, que passarão de 64% para 49% da nossa matriz elétrica.

O cenário está claro. Aumento da participação da energia eólica e solar, que são limpas, competitivas, renováveis, porém intermitentes e a substituição acelerada da energia hidrelétrica pelo gás natural como energia firme para dar segurança operativa ao Sistema Interligado Nacional (SIN). Ou seja, o Brasil está optando por substituir uma fonte de energia limpa, renovável e barata por outra, poluente, geradora de Gases de Efeito Estufa (GEE), não renovável e cara.

Há certamente os que, como o Ministro da Economia, Paulo Guedes, argumentam que com o aumento da oferta do gás natural do pré-sal e a quebra do monopólio da Petrobras, haveria um tal “choque de energia barata”. Para aqueles que acreditam nisso, recomenda-se olhar a política de preços de combustíveis do país. O Brasil já é exportador líquido de petróleo, que é extraído, refinado e distribuído com custos em reais, mesmo assim, os preços da gasolina, do Diesel e do gás de cozinha estão vinculados ao preço internacional do petróleo e à cotação do dólar, pesando cada vez mais no bolso dos consumidores. Porque esperar que uma cadeia produtiva de gás controlada por empresas estrangeiras funcione de forma diferente?

Para quem duvida que o Brasil está substituindo a hidroeletricidade pelo gás natural o resultado da chamada da EPE para o leilão A-6 de outubro de 2018 deixa bem claro qual é a tendência. Foram habilitados 41.718 MW em projetos a gás e apenas 1.185 MW em projetos hidráulicos, entre micro, pequenas e grandes centrais hidrelétricas. Há, portanto, 35 vezes mais projetos de térmicas a gás habilitados para esse leilão do que hidrelétricas. Um dos motivos que levam a isso é a facilidade de se obter licenças ambientais para termelétricas quando comparadas às licenças de hidrelétricas. Ou seja, na prática, os órgãos ambientais brasileiros estão incentivando o aumento das emissões de GEE na atmosfera.

Que o Brasil possui grandes reservas ainda não provadas de gás natural é quase certo, esse gás poderia ser utilizado na indústria, no comércio e mesmo nas residências para a geração de calor com vantagens econômicas e até ambientais. Porém há indícios mais do que suficientes de que o caminho que os agentes privados e o governo vêm escolhendo é o mais simples, porém mais desfavorável ao meio ambiente e à população em geral que é utilizar essas reservas gasífera para gerar energia elétrica mais poluente e mais cara. Infelizmente o caminho que o Brasil vem tomando na expansão do setor elétrico é coerente com a visão do atual governo de questionamento do próprio conceito do aquecimento global e dos impactos das ações humanas nesse fenômeno.

O Brasil ao longo das décadas construiu um setor elétrico dos mais sustentáveis do mundo, gerando energia barata utilizando fontes renováveis e limpas. Desde o início do processo de mercantilização e privatização do setor elétrico ainda nos anos 90 do século passado, a tendência tem sido o aumento da geração térmica baseada em combustíveis fósseis e o encarecimento da conta de luz para o consumidor. A descoberta das reservas de gás do pré-sal, ao contrário de beneficiar a população, pode acabar por se tornar apenas mais uma oportunidade de lucro para petroleiras internacionais, ao custo de tornar a energia elétrica no Brasil ainda mais cara e ainda colocar o Brasil na contramão dos esforços globais na busca da sustentabilidade ambiental.

Observação: Conforme já estava previsto o leilão de energia nova A-6 da ANEEL, realizado no último dia 18 de outubro, o destaque foi justamente para as UTE’s (Usinas Termoelétricas) movidas a gás natural, com 735MW contratados, nada menos do que 64% de toda a energia contratada nesse certame. Aumentar o uso de combustíveis fósseis, no Brasil chamam isso de transição energética.

karo Chaves – Engenheiro Eletricista e Diretor da Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras

Redação

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