Ivana Bentes: Não, seu estúpido, a periferia não é “de direita”

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
[email protected]

Por Ivana Bentes

Mídia Ninja

O MBL foi o primeiro a comemorar: “Pesquisa do PT mostra que periferia é de direita”; seguido por páginas, sites e comentaristas das mídias conservadoras que usaram a pesquisa da Fundação Perseu Abramo, “Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo”, para explicar a derrota do PT na prefeitura de São Paulo e o impeachement, que seriam a expressão de uma “periferia liberal” que emergiu nos últimos anos e que só o PT ainda não tinha se dado conta dessas mudanças.

E numa primeira leitura, a hipótese inicial da pesquisa parece mesmo “um tiro no pé” afirmando que “as camadas populares passaram a se identificar mais com a ideologia liberal que sobrevaloriza o mercado”, o que explicaria a vitória de João Dória Júnior em São Paulo, o prefeito gestor, o empreendedor, o “não-político”. Só que não!

O que torna a pesquisa interessante, em um momento de geleia geral da nação e incertezas de todo lado, é justamente o que as respostas têm de aparentemente paradoxais: Nem esquerdista e nem liberal! O pragmatismo popular brasileiro não cabe nas polarizações e está em disputa.

Estado é coisa para os muito pobre!

Uma primeira revelação: A pesquisa mostra que o morador das periferias “vê o Estado como inimigo”. Dito de forma mais explícita: “O Estado não cumpre o seu papel. Só demanda dos cidadãos (impostos) e não devolve em serviços de qualidade. É ineficaz!” Ou quando “funciona” é como a máquina de morte na guerra contra os pobres nas periferias, poderíamos completar.

Mas a pesquisa avança e o que vemos não é uma demanda de Estado mínimo, mas de Estado eficaz.

Ou seja, a periferia quer serviços gratuitos e bons! Mas o Estado só funciona nas pracinhas dos bairros ricos ou defendendo o patrimônio dos poucos. O Estado só funciona ou para os muito ricos ou serve, na ausência de outra alternativa, para os muito pobres! Quem pode migra, até para se distinguir, para os serviços privados, alguns de qualidade duvidosa. Ou seja, quem pode se diferencia dos ainda mais pobres, que só podem recorrer ao Estado.

Consumo sem Consumismo e o Poder Jovem

E mais surpresas vão aparecendo: “O consumo é uma dimensão importante da vida do trabalhador, mas não há consumismo”. Ou seja, a pesquisa mostra que as pessoas se endividam para pagar um carro onde não tem transporte público, para comprar eletrodomésticos, para pagar TV a cabo, tudo que traz qualidade de vida, essa é a fala principalmente dos mais velhos.

Para os mais jovens o consumo é uma forma de distinção. É o consumo que singulariza e faz com que muitos se vejam como cidadãos. Fora que a periferia inventa moda, roupa, cabelos da hora, música, linguagens, estéticas. Uma produção e “consumo” cultural muito além do discurso redutor do consumismo.

Aqui temos um dado importante, a potência dos jovens, os novos formadores de opinião na família e nas comunidades, com o aumento da renda e do poder de compra, com a inserção na educação formal, inserção nas rede de informação e tecnologias.

A opinião dos jovens, que têm níveis de escolaridade mais elevados do que os dos seus pais, conta e muito, disputando até mesmo com a televisão.

A Periferia não quer ter Patrão

Outra questão decisiva, que as esquerdas tem dificuldade em elaborar, é o desejo de autonomia e liberdade, expressos na super valorização do empreendedorismo, seja os que se identificam com os empresários, ou com a figura do autônomo.

O empreendedorismo popular é fortíssimo: os que abrem oficina mecânica, cabeleireiro, borracharia, padaria, se tornam camelôs, fazem marmita, tudo na informalidade.

Vamos encontrar, com diferenças de contexto, o discurso do empreendedorismo na classe média cult, que fala das startups, de inovação social, cultural, coletivos, laboratórios.

Aqui temos não só o embrião do “self made man”, mas todo um novo cooperativismo, coletivismo, “brodagem”. Demanda de infra-estrutura pública de novo tipo. A precarização é tanto perda de direitos quanto oportunidades para os overqualificados desempregados, os batalhadores e os “correria”.

Trabalho vivo e o declínio da figura do “trabalhador” clássico

O que diz a pesquisa: “Como muitos entrevistados vivem experiências precárias de trabalho e remuneração, o contrato com carteira assinada ainda é valorizado, em função da segurança que traz: rendimentos fixos, direitos trabalhistas e uma série de benefícios e direitos considerados importantíssimos para todos”.

Entretanto “ser empregado”, o trabalho “morto”, não combina com ter singularidade e ambição, com esse trabalho vivo do empreendedor. Não atiça o desejo.

A meritocracia, que aparece supervalorizada pelos entrevistados, é o reconhecimento da singularidade, da individualidade, do esforço pessoal.

Mais um paradoxo: Os entrevistados “não negam a importância de políticas públicas e garantia de acesso a oportunidades, mas rejeitam aquelas que parecem ‘duvidar’ das capacidades individuais, como as cotas.”:

“Políticas feitas pelo PT, Bolsa Família, em especial Prouni e Fies, são valorizadas e consideradas necessárias. No entanto, são vistas como insuficientes frente ao déficit na Educação; e falhas existentes, pois podem beneficiar quem não precisa – precisa de mais fiscalização para conter ‘injustiças’ (principalmente no caso do Bolsa Família).
A pesquisa não diz isso, mas temos a impressão que diante desse Estado insuficiente para todos, os beneficiários da Bolsa Família, das cotas raciais e sociais que melhoraram de vida são vistos como “privilegiados” que “não fizeram nada” para merecer os benefícios.

O que se reflete no profundo ressentimento expresso contra os mais pobres nas redes sociais e discursos de desmerecimento que circulam. Se eu não tenho benefícios, melhor que ninguém tenha!

O Voto religioso não é necessariamente conservador

Outra questão importante é a constatação que “o voto religioso não é necessariamente conservador”. A igreja neopentecostal tem influência nas periferias, e a “teologia da prosperidade” está sintonizada com os valores do empreendedorismo, da super valorização da família.

Mas, como na política, a periferia migra, muda de igreja numa alta rotatividade, mudam de pauta, mudam de pastores, mesclam religiões. Ou seja, o que importa é certa “religião de resultados” e principalmente o acolhimento e pertencimento a uma comunidade de proteção.

Uma síntese diabólica

A pesquisa traz outras questões instigantes, preocupantes, provocadoras desse “liberalismo” popular brasileiro, que ao final emerge como uma colcha de retalhos e práticas de uma periferia em disputa.

Um discurso que pode soar liberal, mas cujas práticas vão muito além, e incluem a comunidade, a solidariedade, o acolhimemto, a empatia como valores do cotidiano ao lado desse individualismo meritocrático. A pesquisa não avança muito sobre machismo, feminismo, questões de comportamento.

Uma influência direta da mídia e dos processo de criminalização da política aparecem na pesquisa. A política é vista como algo sujo, sinônimo de corrupção, onde não se faz distinção entre os partidos.

Ou seja, a periferia está em disputa! O pragmatismo popular brasileiro tem efeitos imprevisíveis. Basta olhar para a figura do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, que está muito além das políticas sociais do seu governo, seus erros e acertos. Ele encarna perfeitamente a figura do batalhador brasileiro que “chegou lá”. As referencias de figuras públicas mais citados na pesquisa foram Lula, Sílvio Santos e Dória. Eis uma síntese diabólica do inconsciente popular brasileiro.

Leia a análise completa em artigo publicado na Revista Cult.

**Ivana Bentes foi secretária de Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura, é professora, curadora e pesquisadora acadêmica, atua na área de comunicação e cultura, foi diretora da Escola de Comunicação da UFRJ.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

12 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Coim o desmanche dos direitos

    Coim o desmanche dos direitos sociais, trabalhistas e a precarização do trabalho, não restará outra saída aos trabalhadores que a informalidade e a “tentativa de sobreviver por conta própria” que agora se chama “meritocracia”. Deve ser isso o tal pragmatismo da periferia. Décadas de bombardeamento do consumismo pela máquina de propaganda do liberalismo resultam na alienação da maioria, mas  ainda existe alguma  resistência nas periferias, como demonstrado no texto.  Contudo, uma conscientização política mais profunda requer mobilização, generosidade e solidariedade, e isso depende fundamentalmente da política. Com o soterramento dos políticos pela plutocracia, essa conscientização fica cada vez mais distante.

  2. Alex Alex

    O cidadão,  a muito tempo, passou a ser um consumidor/copetidor! Desumanizado! Espécie de cavalo de carreira, onde o apostador são os rentistas e a alta finança! Não importa quem chegue primeiro, não importa quem morra no meio da corrida.

    O importante é girar a roda e garantir a comissão do sistema financeiro.

    Estamos todos “com a bunda na janela”, enchendo as burras dos rentistas e da alta finança! Este é o real entrave para o crescimento do Brasil. Somente Ciro Gomes e Requião tem falado sobre o assunto.

    A real polarização que tem que haver no Brasil, é a de quem trabalha e ptroduz (empreendedores e trabalhadores) contra os vagabundos do rentismo nacional e internacional.  

     

     

  3. A periferia deixará de ser

    de direita quando começar a perder o emprego e passar fome.Aí vai lembrar do PT e do Lula que fizeram pouco pelo povo, mas muito se comparado com os 500 anos que a elite ficou no poder. Quero lembrar para periferia que a miséria vai ser muito pior que antes. A periferia vai conhecer na prática o que é o Haiti e não vai demorar.  

    1. Perfeito comentário

      Vou dizer uma coisa: O povo não é politizado a ponto de saber o que é ser de direita e esquerda.

      O povão quer é sair do sofrimento, das privações cotidianas e da fome e desemprego.

      Há uma desilusão geral e eles votarão no candidato que conseguir capitar seus anseios, medos e desejos.

      Pode ser um candiadto da direita ou da esquerda, tanto faz.

      O Ciro Gomes precisa utlizar uma linguagem mais simples, sem retóricas sofisticadas, o povo não entende.

      A conferir

  4. Nem a esquerda sabe que é de

    Nem a esquerda sabe que é de direita. É mais uma torcida do que ideologia.

    O que falta é um partido de direita.

     

    1. nem….

      Aline Barros, o seu comentário foi perfeito. A “periferia” já é uma forma preconceituosa de falar em povo, em cidadão, em brasileiro. O brasileiro quer o que qualquer um quer: liberdade. “Do povo, pelo povo, para o povo”. Mas então a sociedade perceberá a pouca necessidade de sustentar suas elites. Sejam de quaisquer ideologias. 

  5. Nossa! Um verdadeiro tratado

    Nossa! Um verdadeiro tratado para não explicar por que o Doria foi eleito no primeiro turno com todos aqueles votos. A periferia acha as politicas públicas do PT necessárias mas insuficientes. Assim votam na direita que não tem políticas públicas necessárias nem suficientes. Dá para entender? Este tipo de comportamento da periferia nem Freud explica. Mas eles vão entender quando a necessidade lhes bater à porta. A grande verdade é que consciência politica nada mais é do que necessidade transformada. Os que votaram no Haddad certamente não devem precisar de políticas publicas mas sabem quanto elas são necessarias, ainda que insuficientes.

  6. Vou na veia: sim: sua

    Vou na veia: sim: sua estúpida! A periferia é de direita. 

    Texto imbecil de quem escreve mais por masturbação mental do que quem sabe o que diz.

    Fale e conviva com alguém da periferia como eu faço. Vai ver que eles podem ter sentimentos de esquerda, mas sua conduta é de direita e é isso que vale. Ela faz e pensa como a Globo manda. Ponto final.

    Nosso país nunca vai melhorar enquanto existir gente que não enxerga o país de verdade. 

    Estou farto de intelectual retardado que escreve o mundo com deveria ser.

     

    1. De direita no plano

      De direita no plano comportamental e de esquerda em relação ao Estado, ou seja, da economia. Foi isso o que ela disse. E concordo com ela.

    2. Descontando os palavrões,

      Descontando os palavrões, concordo contigo. Eu que também moro em periferia, acho o cúmulo dizer que a população mais pobre não é de direita. Pode ser que nem saibam o que é ser de direita, aí tudo bem. Mas as “pautas” que a maioria absoluta dos pobres defendem é sim vinculada a direita do expectro político: repressão do estado, extinção de benefícios aos outros, reclamam de excessos de direitos (aos outros é claro), enfim. Mas, por favor, não chame ninguém de estúpido. Ivana Bentes deve ser respeitada, mesmo se discordamos de sua opinão. 

  7. A periferia que votou no

    A periferia que votou no Haddad 4 anos antes de repente se tornou de direita? Ela era de esquerda antes?

    O suceso do Dória, foi em cima do trabalho de marketing feito duante a campanha, muito brm feito, diga-se.

    Venderam a imagem de um Lula que em vez de virar sindicalista, virou empresário. Filho de nordestinos, cujo pai foi cassado na ditadura, trabalhou desde jovem e virou empresário de sucesso. Pronto, criou-se um mito.

    Essa é a imagem que cola em SP, Maluf sempre se vendeu como “trabalhador”. E os nordestinos que viram para São Paulo vieram para ascender socialmente através do trabalho, isso é um fato. Não  dá pra entender a surpresa de alguns com o fato do Silvio Santos ser uma referência de sucesso. Ele é o camelô que firou dono de emissora de tv. 

    Haddad foi em excelente prefeito, mas se comunicou mal em vista dos ataques que sofria 24 horas da mídia e nao fez um bom trabalho na periferia. Quando se vai nas periferias, da pra ver de longe os CEUs feitos pela Marta, tanto que ela vanceu em alguns bairros periféricos.

    É muito cômodo para uma parte da esquerda culpar os “pobres de direita”, pela eleição do Dória do que reconhecer os seus  fracassos. Enquanto continuar assim, não retorna ao poder tão cedo.

    .

  8. De novo essa polêmica sobre

    De novo essa polêmica sobre periferia, direita e esquerda e votos no Dória ?

    Analisem, comparem e reflitam: o PSDB teve quase que a mesma votação de sempre na Prefeitura de SP.

    A diferença foi a votação que o PT deixou de receber, que não necessariamente migrou para o PSDB.

    Na candidatura do PSDB não houve defecções de 2012 para 2016. Já no PT foi o que ocorreu.

    Descobrir o enigma dessas defecções é a chave para a retomada do sucesso eleitoral pela esquerda.

    A crise econômica bate mais forte na periferia e nos setores médios da sociedade. O PSDB, no imaginário da população, está muito mais ligado ao Temer do que o PT. Logo, tendo em vista o tamanho da impopularidade de Temer, o que vocês acham que acontecerá ? Muitos pessoas desses segmentos começam a perceber a enrascada que se meteram ao endossar um impeachment nos termos em que o processo ocorreu. Diante de tamanha perda de direitos, deverão engrossar fileiras do candidato que melhor represente o combate a essas medidas. Adivinhem qual o candidato sintetiza melhor essas aspirações ?   

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador