Keynes e a Concorrência Capitalista: a liberdade de escolha para além da vida material, por Nathan Caixeta

As falhas de mercado que permitem a concentração de poder sobre preços e custos são fruto das deficiências no compartilhamento de informações entre produtores e consumidores.

Keynes e a Concorrência Capitalista: a liberdade de escolha para além da vida material

por Nathan Caixeta

Na teoria econômica tradicional, a temática da concorrência segue sendo tratada pela ótica do equilíbrio, como eixo do progresso econômico e da distribuição de seus frutos para a sociedade. Nesse breve artigo, apresentarei a problemática da concorrência como espaço de realização da liberdade de escolha, arriscando uma visão distinta da teoria tradicional a partir de John Maynard Keynes.

A ideia de que a concorrência “iguala” as condições de acesso dos participantes do mercado, ainda que partam de contextos sociais desiguais, nasce do preceito do mérito individual como produto da disputa dos indivíduos que se submetem às mesmas condições para competir.

Os manuais de microeconomia, ao divulgar a sistematização teórica sobre como funcionam as estruturas de mercado, estabelece uma clara relação entre poder de mercado na definição dos preços e custos pelas empresas líderes em detrimento da livre competição entendida como espaço de escolha entre os competidores ao assumirem as mesmas condições na formação de suas decisões.

As falhas de mercado que permitem a concentração de poder sobre preços e custos são fruto das deficiências no compartilhamento de informações entre produtores e consumidores. As deficiências do mercado são concessões da teoria tradicional aos casos não explicados pela ideia de que a intervenção do Estado perturba o equilíbrio das condições de competição ao privilegiar uns em detrimento de outros.

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Os modelos de equilíbrio modernos são estrelados pelas ações do agente-principal, aquele que incorpora o conhecimento do passado, otimizando suas estratégias de decisão ao assumir que além dos governos, o mercado também erra. Diante das ineficiências, o agente-principal ergue sua fortaleza defensiva pela composição de riscos calculados pela probabilidade de que ou as falhas de mercado seguem padrões previsíveis, ou ocorrem de forma tão caótica que o caos é o padrão.

De uma forma, ou de outra, a liberdade de escolha dos agentes produtores e consumidores que, no limite, se não garante o equilíbrio geral, conduz à tendência de um equilíbrio parcial das ações individuais. Percurso esse reforçado pela reforma das condições de competição com o Estado assumindo o papel de promotor da concorrência pela demarcação e garantia do espaço de escolha individual a partir da propriedade privada sobre a vida, a consciência e os frutos do progresso material.

Os economistas tradicionais, ensinados nessa tradição, conjugam a compreensão da concorrência como ‘espaço de livre curso da ação humana ao tomar decisões mediadas racionalmente entre a vontade individual e as oportunidades disponíveis a todos os participantes do mercado’. O direito de propriedade fixa-se como um valor capaz de nuclear os códigos morais que regem as ações humanas, tornando-se, portanto, elemento inalienável para o funcionamento da concorrência.

Uma visão alternativa desse reducionismo microeconômico, é obtida a partir de Schumpeter, Sraffa, Sylos-Labini e Steindl que assumem os aspectos inter-relacionais envolvidos nas ações individuais, forjando uma concepção do mercado como produto de assimetrias na disposição de recursos e para o qual a concorrência funciona como meio de reforço dessas assimetrias.

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Antes ainda, Keynes havia oferecido um exemplo de como o processo concorrencial contém em sua lógica impulsos que inviabilizam a igualdade de oportunidades na ausência de anteparos sociais que tornem possível essa igualação. No artigo O fim do Laissez-Faire de 1926, Keynes ilustra o argumento com a metáfora das girafas. Abrindo aspas para Lord Keynes:

“[em concorrência], como o objetivo é colher as folhas dos galhos mais altos, a maneira mais provável de alcançá-lo é deixar que as girafas com os pescoços mais longos façam morrer à míngua as de pescoços mais curtos […] Dessa forma, se pelo menos deixarmos as girafas à vontade: 1) seria colhida a máxima quantidade de folhas, porque as girafas de pescoços mais longos chegariam mais perto das árvores, à força de matar as outras de fome; 2) cada girafa dirigir-se-ia às folhas que considerasse mais suculentas entre as que estivessem a seu alcance; e 3) as girafas cuja atração por determinada folha for maior, esticarão mais o pescoço para alcançá-la. Desta maneira, mais folhas e as mais suculentas serão engolidas, e cada folha, individualmente, atingirá a garganta que achar merecedora devido a seu maior esforço.”[1]

Keynes está declarando que, ao serem deixadas à vontade (em concorrência), a disputa entre o bando de girafas acabaria por privilegiar as de pescoço mais longo não pela simples vantagem anatômica, mas pelo impulso de acabar com as demais candidatas às folhas mais suculentas da árvore para afirmação do mérito em atingir as melhores folhas.

Na visão tradicional da concorrência, a eliminação dos menos prodigiosos, ou privilegiados, é justificada porque todos os participantes da disputa aceitam as condições estabelecidas (as disposições das folhas na árvore), e nisto reside a igualdade fundamental entre os agentes individuais: na livre escolha de participar do processo de concorrência, como esforço natural para atingir o mérito da sobrevivência. A dotação inicial de recursos, preservada de anteparos que igualem a disposição desses recursos, garante que o máximo esforço será empregado sem prejuízo para o equilíbrio, pois uma vez saciada a fome das girafas de pescoço longo, as folhas sobrantes saciarão as demais.

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Entretanto, a afirmação do mérito na captura das melhores oportunidades, não implica no máximo esforço individual, mas na utilização da vantagem inicial para a eliminação da concorrência, pois quanto maior o progresso material acumulado (ou folhas ingeridas), maior a demonstração do mérito em relação aos menos merecedores. A ideia do mérito preserva ainda uma demonstração moral ligada à liberdade de escolha: ao escolherem as melhores oportunidades, os merecedores exibem a justa recompensa do esforço ao se dedicarem à separação entre o melhor e pior, justificando a propriedade sobre sua dotação inicial e a vantagem obtida ao eliminar a concorrência.

O justo torna-se, portanto, sinônimo do mais apto e vice-versa. Desse modo, a distribuição desigual entre os participantes é justificada pela necessidade natural de eliminação do menos apto para a garantia do equilíbrio entre a disposição de oportunidades e o esforço individual dos merecedores.

Ao comentar sobre o regime soviético nos tempos do Leninismo, Keynes admite no artigo A Short View of Russia (1925) que: a despeito do modelo econômico e político implementado pela Revolução Comunista – o qual Keynes deplorava – a transformação cultural a partir da valorização do homem comum e do espírito de comunidade modificaram a relação do homem comum com a esfera material objetiva ao suprimir, parcialmente, o Amor ao Dinheiro como valor moral que orienta as ações individuais nas sociedades capitalistas.

Keynes constata que a mudança do regime de propriedade e supressão da liberdade de escolha não é pressuposto para a transformação dos valores mercantis em valores humanistas, isto é, de valorização das esferas subjetivas da vida humana, como norteadores das relações sociais.

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A concorrência capitalista, por outro lado, na ausência de mecanismos que igualem as condições de acesso às oportunidades, implica no aprofundamento das desigualdades e na eliminação dos menos privilegiados. A criação de anteparos para a igualação do acesso dos menos privilegiados às oportunidades supõe o oferecimento de uma liberdade de escolha que opere além do campo material, como Keynes defenderia mais tarde no artigo As Possibilidades Econômicas para os Nossos Netos (1930).

Não se trata, tão somente, de corrigir os mecanismos de concorrência, nem mesmo de eliminá-la, mas da transformação da vida social a partir de valores humanistas que suplantem os valores mercantis, isto é, a ética da concorrência baseada na eliminação do mais fraco para exibição do mérito como sinônimo de justiça.

Maynard, então, deixa as pistas para efetiva transformação social baseada na garantia das liberdades e direitos fundamentais assobradados pelos valores do humanismo no último capítulo de sua Teoria Geral do Emprego, dos Juros e da Moeda (1936):

“A tarefa de modificar a natureza humana não deve ser confundida com a de administrá-la. Embora na comunidade ideal os homens possam ser acostumados, inspirados ou ensinados a desinteressar-se do jogo[…] a sabedoria e a prudência da arte política devem permitir a prática do jogo, embora sob certas regras e limitações, em se considerando que o homem comum, ou mesmo uma fração importante da comunidade, é altamente inclinado à paixão pelo lucro”.[2]

Keynes revela que a transição da base da vida social centrada nos valores mercantis para uma base calçada nos valores humanitários não significa a eliminação do Amor ao Dinheiro, mas a subordinação das inclinações aos desejos particulares de apropriação da riqueza pela ‘inspiração ao desinteresse do jogo’ e a valorização do espírito de comunidade mediante regras que garantam uma esfera de liberdade de escolha desembaraçada das necessidades materiais elementares.

Tais regras de garantia para a superação das necessidades materiais elementares não asseguradas pelo livre curso concorrencial requerem a busca do pleno emprego, isto é, a situação em que uma parcela substancial de pessoas estejam empregadas e suas necessidades materiais elementares saciadas. Para isso, Keynes assegura que tal condição requer que: “Os controles centrais necessários para assegurar o pleno emprego exigirão, naturalmente, uma considerável extensão das funções tradicionais de governo”.

Keynes aponta que a expansão das tarefas do Estado para o atingimento do pleno emprego exigiriam: 1) o direcionamento ativo do crédito e da liquidez por parte do Estado como desincentivo às práticas improdutivas de acumulação da riqueza financeira (que não estimulam o investimento e o emprego); 2) a manutenção de um orçamento de capital pelo Estado, financiado com tributação progressiva sobre renda e patrimônio, para prevenir oscilações abruptas da demanda através do direcionamento do nível de investimento agregado da Economia; 3) cooperação entre nações para prevenção de instabilidades externas que inviabilizem a busca do pleno emprego no plano interno, garantindo autonomia de política econômica às nações.

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Essas proposições de Keynes marcaram com sucesso, em alguns pontos mais do que em outros, o estilo de desenvolvimento empreendido no após Guerra, influenciando decisivamente o rumo da Economia global ao longo dos Trinta Anos Gloriosos (1950-1980). O filósofo de Cambridge atento aos caminhos obscuros que envolvem a mudança das estruturas de poder em face à força das ideias, alertou:

“Os insensatos, que ocupam posições de autoridade, que ouvem vozes no ar, destilam seus arrebatamentos inspirados em algum escriba acadêmico de certos anos atrás. Estou convencido de que a força dos interesses escusos se exagera muito em comparação com a firme penetração das ideias. É natural que elas não atuem de maneira imediata, mas só após certo intervalo; isso porque, no domínio da filosofia econômica e política, raros são os homens de mais de vinte e cinco ou trinta anos que são influenciados por teorias novas, de modo que as ideias que os funcionários públicos, os políticos e mesmo os agitadores aplicam aos acontecimentos atuais têm pouca probabilidade de ser as mais recentes. Porém, cedo ou tarde, são as ideias, e não os interesses escusos, que representam um perigo, seja para o bem ou para o mal.”[3]

Keynes não ousou garantir a perenidade de sua influência, embora suas ideias estejam mais vivas hoje do que quando as elaborou. A teoria tradicional tratou  de ajustar as ideias de Keynes aos modelos de equilíbrio, descartando as implicações de sua teoria social para reafirmar a predominância da ética da concorrência. Indo além, os herdeiros do Laissez Fairrez, pregaram a transformação do Estado em: promotor dos mecanismos de competição; e salvaguarda quando a liberdade de escolha estrita ao circuito material se demonstra ilusória, revelando as interconexões entre as ações humanas, entre os riscos assumidos pelo impulso concorrencial ao lucro, expondo as garras do individualismo baseado no mérito.

Keynes, por outro lado, alertou para a possibilidade de outra liberdade desvencilhada dos abusos da ordem material mediante a qual as escolhas sejam baseadas nos valores da igualdade, da fruição do tempo-livre, da imaginação e da diversidade:

“Porém, acima de tudo, o individualismo, se puder ser purgado de seus defeitos e abusos, é a melhor salvaguarda da liberdade pessoal, no sentido de que amplia mais do que qualquer outro sistema o campo para o exercício das escolhas pessoais. É também a melhor salvaguarda da variedade da vida, que desabrocha justamente desse extenso campo das escolhas pessoais, e cuja perda é a mais sensível de todas as que acarreta o Estado homogêneo ou totalitário. Essa variedade preserva as tradições que encerram o que de mais seguro e auspicioso reuniram as gerações passadas, dá cor ao presente com os diversos matizes de sua fantasia, e servindo a experiência, bem como a tradição e a imaginação, é o mais poderoso instrumento para conduzir à melhoria do futuro.”[4]

A liberdade de escolha é suposto da concorrência capitalista. Também é conquista inalienável da modernidade e base da democracia, mas quando restrita ao campo material, como impulso natural ao mérito da sobrevivência, é ilusória, pois afirma a força dos privilegiados pela eliminação dos demais e justifica as desigualdades sociais.

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A efetiva liberdade de escolha, entretanto, ocorre quando a escolha não se resume entre a fome e o trabalho, mas mediante a garantia do direito ao trabalho e à renda, ultrapassa a objetividade material, abrindo espaço para que as pessoas escolham aquilo que melhor satisfaz seus afetos, seu lazer, suas vontade e sua felicidade.

Não se trata, portanto, de uma oposição à concorrência, mas da modulação do processo concorrencial segundo valores que preservem a igualdade de acesso às oportunidades. Certamente, essa é uma tarefa para uma ou mais gerações que requer paciência, reflexão e luta, diria mestre Keynes:

“O próximo passo à frente deve vir, não da agitação política ou de experimentos prematuros, mas da reflexão. Através de um esforço da mente, precisamos esclarecer nossos próprios sentimentos. Atualmente, nossa simpatia e nossa razão estão sujeitos a ficar em lados diferentes, o que constitui um estado de espírito doloroso e paralisador. No campo da ação, os reformadores não terão êxito até conseguirem firmemente seguir um objetivo claro e definido, formulado através da sintonia de seus intelectos e sentimentos […] A pobreza material fornece estímulos à mudança precisamente em situações em que existe muito pouca margem para experiências. A prosperidade material remove tais estímulos justamente quando seria seguro tentar realizá-los.”[5]

Nosso tempo demonstra a emergência dessa transformação cujas vias são incertas, pois nosso tempo registra um nível de prosperidade material e de progresso técnico nunca vistos em contraste com uma miséria material nunca atingida em proporção aos patamares de concentração da riqueza que vivenciamos.


[1] KEYNES, John Maynard. O fim do “Laissez-Faire”. In: SZMRECSÁNYI, Tamás (org.) Keynes (Economia). São Paulo: Ática, 1983, pp. 106-126

[2] KEYNES, John Maynard. A Teoria Geral do Emprego, dos Juros e da Moeda (Coleção Os Economistas). São Paulo: Abril, 1996, pp. 342

[3] Idem, pp. 349

[4] Idem, pp. 346.

[5] KEYNES, John Maynard. O fim do “Laissez-Faire”. In: SZMRECSÁNYI, Tamás (org.) Keynes (Economia). São Paulo: Ática, 1983, pp. 106-126

Nathan Caixeta, pós-graduando em desenvolvimento econômico no IE/UNICAMP e pesquisador do núcleo de estudos de conjuntura da FACAMP (NEC-FACAMP).

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  1. A centralidade do mercado como suficiência na tarefa de atender todas as expressões de demanda apresentadas, condiciona a concorrência à fatores de limitação, oferecidos pela lei dos mais fortes. Que impedem o surgimento e/ou crescimento de concorrência que ameacem a condição ocupada por eles. A disputa entre competidores traz um estímulo para a busca por maiores capacidades de realizar o objeto da disputa. O que em tese faria dessas instituições, funcionalmente melhores. São os descaminhos, através do uso do poder e influência econômicos, que desequilibram o cenário da livre concorrência. Partes poderosas e influentes atingem um dado domínio, que torna a elas desinteressante continuar competindo; e ao invés disso passam a atuar para interferir a evolução dos concorrentes. Seja pela aquisição de concorrentes competentes que surgem ou do uso de outros meios, limitam a capacidade de oferta de oportunidades que uma ação permanente de busca por preferência ocasionaría. Esse tipo de defesa, que incorre concorrência desleal, se expressa em vários tipos de concorrência. Barrar o progresso do que possa ameaçar o status atingido. Ninguém deseja abrir mão do que alcançou, e reduzir a concorrência acaba sendo um caminho; que impede maior interatividade que possibilite o ganho de oportunidade para os indivíduos e para as instituições. Mesmo que fantasiosamente, a boa disputa evita a acomodação e impulsa a criatividade e inventividade.

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