Libertação e Prosperidade, duas palavras, duas teologias, duas políticas

Em 1979,  a editora Brasiliense publicava um livro de Marcio Moreira Alves chamado A Igreja e a Politica no Brasil, com prefácio de Frei Betto, expoente da chamada teologia da libertação no Brasil. O termo “igreja”, nesse estudo, significava, estritamente, igreja católica apostólica romana – e isso não suscitava qualquer estranhamento.  Na bibliografia e documentação, a simples referência ao protestantismo  aparecia em apenas dois estudos não publicados – e, mesmo assim, diziam respeito ao protestantismo dito mainstream. Hoje, qualquer estudo que tivesse titulo similar faria o leitor – mesmo o escassamente informado – pensar em outra direção: a avalanche neopentecostal. A data de publicação do livro não podia ser mais simbólica. Em 1979 o catolicismo era sacudido pela emergência de um novo papa, claramente inclinado para o conservadorismo e que desde logo desencadeou uma campanha de deslegitimaçao e esvaziamento da chamada igreja progressista no mundo inteiro, incluindo no Brasil, onde ela tivera papel decisivo na reconstrução do movimento operário e popular e na reconfiguração da esquerda social e politica. Ao mesmo tempo, em 1977, era fundada aquela que hoje é a maior e mais emblemática representação do neopentecostalismo conservador, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), chefiada pelo pastor Edir Macedo. Descendente do neopentecostalismo norte-americano, em 1985 essa vertente, originada em um pequeno templo num bairro do Rio de Janeiro, alcançava já duas centenas de templos, em 15 estados do país. Em 1989, possuia milhares de centros e comprava a Rede Record, uma poderosa rede de rádio e TV, de âmbito nacional. A IURD já era ladeada por um conjunto significativo de “co-irmãs”e concorrentes dentro do mesmo segmento do mercado de almas. Algumas delas eram dissidências que haviam rompido com a liderança de Edir Macedo. Todas, quase sem exceção, mimetizavam o televangelismo norte-americano – e com ele mantinham relações de cooperação e intercâmbio. O neoconservadorismo da “teologia da prosperidade”, baseada no empredorismo individualista, começava a criar o solo ideológico para confrontar a teologia da libertação, coletivista e solidarista. Se hoje alguém visse numa estante um livro com aquele título de 1979 – Igreja e Politica no Brasil – certamente pensaria, sem pestanejar, nesses novos atores.

Seria difícil exagerar os efeitos provocados por tais mudanças no subsolo da sociedade brasileira. Se um observador atento visitasse bairros populares do Brasil, nos anos 1970, encontraria ali, muito provavelmente, uma igreja ou pequena capela (católica), possivelmente liderada por um “padreco” progressista. Em torno desse modesto templo circulariam variados movimentos e grupos: pastoral operária, pastoral da saúde, clubes de mães da periferia, grupos de jovens, comunidades eclesiais de base e assim por diante. Essa seria a cementeira de grande parte dos fundadores do futuro Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), no início dos anos 1980. Se o mesmo observador voltar hoje aos mesmos bairros, ali encontrará numerosos templos evangélicos neopentecostais, redirigindo os desesperos e esperanças da classe trabalhadora reconfigurada e fragmentada pelas reformas macroeconômicas neoliberais e pela reengenharia das empresas. E encontrará uma outra cementeira, agora de candidatos ultraliberais, neoconservadores. Uma eventual e elementar consciência de classe transformou-se em ressentimento de classe.

É preciso prestar atenção a tais mudanças. Com frieza e sem congelar a análise. Sem carimbar todos os “crentes” como “direitistas”, mas sem ignorar a óbvia convergência da bancada da bíblia com a bancada da bala. Ambas acreditam numa estranha idéia, visível quando discutem temas como maioridade penal e aborto. Uma criança pobre (e negra) merece a “defesa da vida” enquanto ainda é feto. Mas passa a ser candidato preferencial à pena de morte e à prisão logo que nasce.

Redação

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