Machado copidescado

do blog de Gilberto Cruvinel

de O Globo

José Miguel Wisnik

.A demagogia social é um álibi inconsciente para copidescar o escritor

A trapalhada é tamanha que fica difícil decidir por onde começar. Mas trata-se de oferecer gratuitamente a novela “O alienista”, de Machado de Assis, para trabalhadores pobres não habituados à leitura. Como enfatiza a autora do projeto, Patricia Engel Secco, a tiragem de 300 mil exemplares, com o selo do Ministério da Cultura e da Lei de Incentivo à Leitura, quer chegar a esses não leitores, privados dos benefícios da literatura.

Diríamos que a causa, de um ponto de vista genérico, é nobre, e o dia em que ela se cumprir será o da redenção do país desigual e mal letrado (mal letrado na média, fique bem claro, e em todos os níveis sociais). Mas a edição propõe-se a resolver, num desastrado salto mortal, a quadratura do círculo: pessoas que nunca leram nada lerão Machado — esse autor deveras fascinante, capcioso, sibilino, cujos textos não se reduzem à anedota, e que pressupõem certa convivência anterior com a leitura. A solução encontrada foi a de facilitar o texto original expurgando-o das supostas dificuldades: palavras difíceis são substituídas por outras corriqueiras; construções sintáticas enviesadas, tornadas mais diretas; alusões de duplo sentido e passagens que exigem uma leitura relacional menos linear, eliminadas.

O argumento dos que são a favor, que se soma ao da serventia social, é o de que essa não é a primeira nem será a última adaptação de textos clássicos. Quem não leu algum “Moby Dick”, “Dom Quixote”, a “Odisseia” ou Shakespeare em alguma versão condensada e facilitada? Quem negaria que essa prática promove de alguma maneira o incremento da leitura, e o acesso a outros textos e a obras originais? Uma linha influente da teoria literária critica, por sua vez, o chamado cânone literário, o panteão das obras “imortais”, a sacralização dos textos e a sua transformação em fetiches intocáveis, ligados a privilégios de classe que também se querem intocáveis. Essa concepção pragmática vem geralmente acompanhada, no entanto, da dificuldade de identificar propriedades singulares dos textos literários que são inerentes à sua composição, ao ritmo, ao corpo da linguagem, e que os fazem insubstituíveis e irredutíveis a qualquer outra forma que não a sua. Mas, para não cair na pendenga sem saída entre o purismo e o completo relativismo, o melhor é analisar cada caso concreto.

O caso da adaptação de “O alienista” é muito diferente do das outras obras clássicas citadas, em que se faz uma redução genérica da estória, claramente distinta do original. Em vez disso, trata-se aqui de uma intervenção linha a linha sobre o estilo, a pontuação, o ritmo, o vocabulário e a sintaxe, e como se nada disso estivesse acontecendo. É escandaloso que a informação “texto facilitado para incentivo à leitura” apareça apenas no final do volume, sem nenhum destaque, perdida entre outros créditos menos relevantes (produção, concepção, projeto gráfico, imagens e tiragem), e onde a referência (nem digo reverência) à autenticidade do texto original vira pó.

Nas primeiras linhas, “filho da nobreza da terra” vira “filho de nobres”, “regendo a universidade” vira “dirigindo a universidade”, “o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas”, vira “da Espanha”. O pretexto, discutível em todos esses casos, é o de que palavras mais usuais deixam o texto mais compreensível, mas junto com isso vem, na verdade, a mentalidade da padronização, praga generalizada e generalizante que não faz senão tirar o travo, o gosto e o sabor de qualquer texto. Prova disso é que, na primeira linha, a adaptadora insere vírgulas inexistentes no original (“dizem que, em tempos remotos, vivera ali um certo médico”), que não se explicam senão pela pulsão de copidesque que quer adequar textos a normas editoriais, atropelando o que vier pela frente. Chego a pensar que a demagogia social envolvida no projeto é um álibi inconsciente para copidescar Machado. Tanto assim que, mais adiante, “achou-se a mais desgraçada das mulheres” vira “considerou-se a mais desgraçada das mulheres”. A palavra “achou-se” era simples demais, dessa vez, e fez-se necessário procurar outra menos usual? Qual é afinal o critério? Aqui e ali pinga uma nota de rodapé, mas uma citação de Dante Alighieri em italiano passa batida.

Literatura nos pega ao pôr em contato o que somos com o que não somos — tempos, experiências individuais e coletivas, linguagens e valores que se tornam nossos sem serem nossos. É preciso passar pela diferença a que o texto nos submete. O narcisismo contemporâneo reage a isso querendo facilitação, padronização e autorreconhecimento. Ironicamente, Machado de Assis é um dos mais incríveis analistas do narcisismo, em toda a literatura universal. Não há como chegar a ele sem chegar a ele. Há modos e modos: o livro organizado por Marcos Bagno, “Machado de Assis para principiantes”, por exemplo, faz uma boa introdução antológica sem precisar alterar uma vírgula do original.

Num país de analfabetos funcionais, como o nosso, uma verdadeira política de leitura é crucial para todas as políticas. O episódio é um índice gritante da falta disso. Machadiano.

 

José Miguel Soares Wisnik é músico, compositor e ensaísta. É também professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo. Graduado em Letras pela mesma universidade, onde também fez mestrado e doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada. 

O Globo – 17/05/2014

Redação

10 Comentários

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  1. O que o autor esta

    O que o autor esta descrevendo NAO eh o que a reescrita prometia, ele esta falando a verdade!

    Isso eh copidescar mesmo!

  2. A quadrqatura do círculo

    A quadratura do círculo

    ” Literatura nos pega ao pôr em contato o que somos com o que não somos — tempos, experiências individuais e coletivas, linguagens e valores que se tornam nossos sem serem nossos. É preciso passar pela diferença a que o texto nos submete. O narcisismo contemporâneo reage a isso querendo facilitação, padronização e autorreconhecimento. Ironicamente, Machado de Assis é um dos mais incríveis analistas do narcisismo, em toda a literatura universal. Não há como chegar a ele sem chegar a ele. “

  3. A leitura de O Alienista foi

    A leitura de O Alienista foi um marco para mim. Lembro até hoje o dia em que, por força de uma tarefa escolar, comecei a lê-lo sentado em uma escada de cimento que levava à casa de meus pais e não consegui parar mais.

    Tinha 12 ou 13 anos e a partir dali nada sera a mesma coisa.

    Não saberia precisar o quanto a narração machadiana influecia na idéia central e sua capacidade de fazer refletir dobre o que é normalidade, o que é moral e imoral, o que é correto e incorreto, o que é socialmente aceitável ou não e por aí vamos, e principalmente, sobre quem tem o poder de decidir sobre tudo isso e o que lhe dá legitimidade para isso.

    Será um experiência nova e interessante conhecer esse novo texto e analisar se, a facilitação da leitura de Assis, que por ora acho plenamente dispensável, será um bom caminho, mantendo-se a idéia original. 

  4. Literatura fast-food

    Brilhante análise. Se querem oferecer boa literatura aos que nunca leram por falta de condições esse é o pior caminho. Desfigura o autor e  a literatura. A ignorância literária do Brasil (em todos os segmentos sociais: pobres, camadas médias e altas)  está na escola. O Ministério de Educação é que precisa atualizar. Por que as escolas européias e americanas dão ênfase à boa literatura em todos os níves? Porque é o caminho para formar leitores e ensinar a língua pátria. Escola é a chave. Mas aqui quem se interessa por isso? É mais fácil dar dinheiro às editoras para publicar e o Ministério da Cultura comprar. Simples seria imprimir Machado (e outros) na íntegra e fazer uma introdução sobre a época em que viveu e sobre seu estilo (mais vinculado ao que se fazia em Portugal). Ou, iniciar a leitura de Machado (para criar interesse) pelos textos que escreveu para jornais (fáceis de ler, até atuais, carregados da ironia e bom humor do autor).

  5. Machado para

    Machado para principiantes,melhor   seria,Ana Maria Machado,excelente   autora de obras  juvenis e  até adultas.

    Com  sua originalidade  o mais avesso a leitura   se sentiria atraído pelo seu estilo,tema e técnica narrativa.

    Apostou-se no domínio público  para baratear a obra ?  Os velhos ditados  me ocorrem,”O barato sai caro”, ou ”  quem não cria  copia”. E , mal…

  6. Confessional

    Acho uma boa. Se a moda pega vou ler inteiro o “Ulysses”, do Joyce, pela primeira vez, após bem mais de duzentas tentativas frustradas ao longo da vida. 

    1. No caso, provavelmente você

      No caso, provavelmente você lerá tudo, menos Ulysses de Joyce. A experiência da leitura não é feita somente de uma história, um conteúdo. É também uma experiência estética, de forma. As histórias que Machado conta são banais, absolutamente comuns e batidas. A forma como conta é que vale a pena e provoca estranhamento. Shakespeare recontava clássicos que todos já conheciam. Mas ninguém contou como ele. E a forma como se conta joga nova luz sobre o que se conta. Essa esperiência os textos facilitados eliminam.

  7. A boa política, no caso, seria oferecer textos bons, mas + fácei

    Simplificar Machado é um absurdo. Incentivar a leitura seria oferecer algo mais próximo ao interesse dos potenciais leitores; uma vez habituados a ler, poderiam ir lendo textos mais complexos. Começar com livros de crônicas, por ex. Ou romances policiais de boa qualidade. 

    E é muito difícil alguém se tornar um leitor já adulto, até por questoes de automatizaçao cerebral. Importante é oferecer BOA LITERATURA INFANTO-JUVENIL para crianças e jovens. 

  8. Como é?!

    Reescrever uma obra literária é adulterá-la. As traduções quando não muito boas já são alvo de pesadas críticas que dirá uma coisa dessas? Se for o caso de fazer uma versão do texto do Machado para o teatro, cinema ou TV aí sim… necessário e justificável…

    Honestamente? Se for pra afastar alguém pra vida toda do abito da leitura faça-a ler Machado de Assis. Principalmente os jovens, é preciso envelhecer ou ter já ter contato com outras tantas obras pra ter o espírito pronto pra achar graça no velho carrancudo

     

  9. Porque não! “Os Miseráveis” de Victor Hugo, na edição trilíngue?

    “Mas trata-se de oferecer gratuitamente a novela “O alienista”, de Machado de Assis, para trabalhadores pobres não habituados à leitura.”

    Se é para oferecer almoço grátis para pobres trabalhadores brasileiros não habituados à leitura, antes do prato feito na obra, da Bíblia Sagrada adaptada, facilitada, mastigada, interpretada, resumida para concurso universal de prosperidade e cura de unha encravada, mais melhor apropriado de tudo seria entonces a leitura gratuita do livro afins dos trabalhadores pobres do MinC afrancesado, ou seja, a obra prima “Os Miseráveis” de Victor Hugo, capa dura em tecido, 2 volumes in box: um luxo só! (pobre “se vira nos trinta” gosta de luxo; intelectual estatizado é que gosta da pobreza de leitura do mundo…), na edição trilíngue do regime da Dilma: francês original, português abrasileirado e na novilíngua (orwelliana) copidesque do MinC da Marta. 

    (do Wiki: Novilíngua ou Novafala¹ é um idioma fictício criado pelo governo hiperautoritário na obra literária 1984, de George Orwell. A novilíngua era desenvolvida não pela criação de novas palavras, mas pela “condensação” e “remoção” delas ou de alguns de seus sentidos, com o objetivo de restringir o escopo do pensamento. Uma vez que as pessoas não pudessem se referir a algo, isso passa a não existir. Assim, por meio do controle sobre a linguagem, o governo seria capaz de controlar o pensamento das pessoas, impedindo que ideias indesejáveis viessem a surgir.

    Não se deve confundir novilíngua com simples tabu a respeito de palavras. A ideia aqui consiste em restringir as possibilidades de raciocínio, não o simples proibir a menção a coisas, fatos ou pessoas indesejáveis.)

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