Mulher, negra e da periferia: por trás do primeiro ouro do Brasil nas Olimpíadas

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
[email protected]

A judoca brasileira Rafaela Silva vence Dorjsürengiin Sumiya, da Mongólia, e conquista a primeira medalha de ouro do Brasil nos Jogos Rio 2016

Jornal GGN – Rafaela Silva conquistou a primeira medalha de ouro do Brasil nos Jogos Olímpicos, nesta segunda-feira (08). Além da conquista nacional, o primeiro lugar foi também uma vitória significativa para a judoca criada na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, e que leva a luta como motivação de vida, desde os cinco anos de idade.

Da Agência Brasil

Por Edgard Matsuki

A medalha de ouro conquistada pela judoca Rafaela Silva nessa segunda-feira (8) marcou o fim de um ciclo que começou no dia 30 de julho de 2012. Cotada como favorita nos Jogos de Londres, Rafaela foi eliminada nas oitavas de final naquele dia. Para piorar, teve de ouvir ofensas racistas de internautas descontentes com a derrota.

Os dias seguintes foram os mais duros para Rafaela, nascida e criada na Cidade de Deus, comunidade carente da zona oeste do Rio de Janeiro.

Após ser chamada de “macaca” e ler que “era uma vergonha para a família”, havia tomado uma decisão: parar de lutar. A escolha surpreendeu muitas pessoas. Não a seu pai. Luiz Carlos da Silva sabia do que a filha precisava. “Ela estava chateada. Não pela derrota, mas pelo que falaram. O pessoal [do Instituto Reação] pedia para conversar com ela, mas eu não perturbava. Dei um tempo para ela”.

A mudança foi percebida por pessoas do Reação. “Teve um tempo em que ela não treinou. Ela frequentava a academia só para olhar, mas não treinava. Toda vez que Rafaela ia no treino, víamos que estava com cara de choro, que não queria treinar. Dizíamos que em 2016 seria no Rio. Fazíamos tudo para ela treinar”, lembrou Bianca Gonçalves, judoca do Instituto e amiga de Rafaela.

Psicóloga

À época, Rafaela marcou no corpo o que sentia. Foi depois dos Jogos de Londres que ela fez uma tatuagem com a frase “só Deus sabe o que eu sofri e o que fiz para chegar até aqui”. “Eles não sabem o que eu vivia a cada treino, a cada superação, a cada lesão. O que eu tinha de fazer no meu dia a dia no tatame para ficar me criticando”, lamentou Rafaela. Foi nesse período que ela entrou em depressão.

“Foi um momento bem difícil. Andava na rua e pensava “vou lutar a Olimpíada”. Mas caía a ficha. Lembrava que tinha sido eliminada e ficava muito chateada. Assistia televisão e começava a chorar.”

O jogo começou a virar quando surgiu a figura de Nell Salgado. Raquel, também judoca e irmã mais velha de Rafaela, promoveu o encontro entre a judoca e a psicóloga. “A Nell começou a fazer um trabalho voluntário para o Instituto Reação e me perguntava se daqui a dois anos eu me via fora do judô. Aí eu dizia que o judô era minha vida e voltei a treinar”, disse Rafaela. Desde então, a psicóloga assumiu o posto de coach da judoca.

Luiz Carlos lembrou da época em que a filha voltou a treinar. “Ela não falou nada. Só um dia percebi que ela estava saindo com o quimono de casa”. Ela havia voltado. Raquel, a irmã, tinha certeza de que o momento da volta chegaria. “Ela chegou a dizer que não voltaria, mas guerreira nunca desiste. Cai e sempre levanta”.

“Todo mundo sabe que não gosto de treinar, mas esse foi um período em que me esforcei bastante. Treinava de dia, de tarde e de noite. No outro dia, estava toda doída, mas era o sacrifício que eu fazia. Saía chorando do treino, mas valeu a pena.”

Títulos

A “nova Rafaela” começou a dar resultado rápido. Em 2013, ela se tornou campeã mundial de judô. O título trouxe de volta a confiança perdida com a derrota em Londres e com as postagens ofensivas. Respeitada no circuito da arte marcial, só faltava uma conquista: a redenção olímpica.

Para os Jogos do Rio, desejava que nada fosse como em 2012. “Isso ficou guardado em mim. Só entrava na competição pensando no que passei em Londres, que era uma sensação que não queria passar novamente”.

Diferente da outra edição, ela não chegou aos Jogos do Rio como favorita. Na preparação, optou pela tranquilidade de Mangaratiba aos agitos da Vila Olímpica. “Fiquei só dois dias na Vila Olímpica. Era muita descontração, muito ídolo por lá. Preferi ter um foco e ficar treinando com a equipe de judô.”

Apesar dos cuidados, ela admitiu que foi difícil descansar. “No dia da competição, não consegui dormir direito. Saltei da cama cedo, pelas seis horas.”

Redes sociais

Fora do grupo de cabeças de chave, ela foi ganhando confiança vitória a vitória. “Quando ganhei a segunda luta contra a coreana, vi que poderia chegar, porque era realmente uma das adversárias mais difíceis. Quando ganhei da romena nas semifinais, vi que estava no pódio e ninguém poderia me tirar o título, porque eu estava dentro de casa.” A partir daí, foi ganhar o ouro e comemorar. Era a redenção de Rafaela.

O primeiro efeito foi nas redes sociais. Os mesmos que criticavam em 2012 aplaudiram em 2016. “Ganhei quase 50 mil seguidores no Instagram. Tinha 10 mil e foi para 60 mil. Ganhava no máximo 300 curtidas. Agora tem 30 mil. A primeira foto que vou postar é da minha medalha.” O segundo foi o assédio da mídia. Até o fim da primeira noite do título, ela havia conversado mais com jornalistas do que com a família.

Para fechar com chave de ouro, faltava só a resposta ao anônimo que, erroneamente, a julgou incapaz. Indagada sobre o que falaria à pessoa que a ofendeu, ela deu um Ippon em termos de classe. “Não precisa de mensagem, a medalha já diz tudo. Não é a cor ou o dinheiro que faz você conquistar uma medalha. É só a vontade, a garra e a determinação”, concluiu Rafaela.

Origem humilde

A história da judoca teve início na carente comunidade da Cidade de Deus. Começou a praticar judô aos 5 anos de idade, na associação de moradores da região. Aos 8 anos chegou ao Instituto Reação, onde treina até hoje. A iniciativa é um  projeto do medalhista olímpico Flavio Canto. Lá, a atleta conheceu Geraldo Bernardes, seu técnico e amigo. Com pouco tempo de treino, a menina começou a dar resultados.

Aos 16 anos, foi campeã mundial júnior, na Tailândia. Em 2009, ficou em quinto lugar no mundial de Roterdã, na Holanda. Dois anos depois, foi vice-campeã do Pan-Americano de Guadalajara, no México, e vice-campeã mundial adulta em Paris. Em 2012, nos Jogos Olímpicos de Londes, foi eliminada nas oitavas de final.

No ano seguinte, derrotou por ippon (pontuação máxima no judô) a americana Marti Malloy. Se tornou, assim, a primeira brasileira campeã mundial de judô. A medalha olímpica de ouro na Rio 2016 coroou os méritos da atleta de origem humilde. Rafaela Silva tem 24 anos e é 3º Sargento da Marinha do Brasil.

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

10 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Só que……

    Só que depois das olimpíadas essa: mulher, negra e da periferia verá seus direitos trabalhistas e suas conquistas sociais irem pro vinagre, por conta a plutocracia que se assenhorou do poder, sem votos, nesse país, ou seja, através de um GOLPE.

    Aí cairá a ficha, que pra essa corja  lugar de pobre, negro ou branco, mulher ou homem é na senzala, e então, veremos que apenas para dar manchete e proselitismo é que serviu essa medalha….nada mais.

  2. Grito de guerra no Twitter

    Chora, machista
    Essa Olimpíada é feminista

    Em 2012, Folha e Estadão endossaram as agressões racistas que Rafaela sofreu. Na época, posicionaram-se a favor dos agressores e contra a forma como ela procurou se defender. Postei os links no “Fora de pauta”.

    Hoje, novamente (até onde isso vai chegar, meu Deus?), mais uma esportista brasileira, a nadadora Joana Maranhão, foi violentamente agredida nas redes sociais. Misoginia, ódio, nojo, aversão e medo de mulher: só pode ser.
     

    1. grito….

      Ganhou porque se esforçou, trabalhou, teve seriedade e os resultados apareceram por seus méritos. É a famosa “meritocracia”, que os intelectualóides esquerdopatas tupinquins gostam tanto de contestar. Nasceu depois da redemocratização produzida pela centro esquerda brasileira. Viveu e cresceu em governos ininterruptos desta mesma centro esquerda. Então porque a pobreza continuava na sua porta. A falta de escolas. A falta de apoio. Porque continuava a morar na favela ou em bairro sem infraestrutura alguma? O que fizeram Brisola, Benedita sa Silva, FHC, Lula, Dilma, Cabral, filho de perseguido politico? Mais trabalho, que isto já mostrou que dá resultado, não é Rafaela? E menos deste ” trauma de coitados”, qua alguns não querem deixar o país largar.

  3. Eliminada e xingada, Joanna Maranhão desabafa

    “Brasil é racista, machista e homofóbico”

    A atleta, conhecida pelo desempenho nas piscinas e por suas posições políticas, foi alvo de ataques machistas após a eliminação na Olimpíada do Rio. Nas redes sociais, chegou a ler que merecia morrer afogada e até mesmo ser estuprada, resgatando o trauma que sofreu na infância. Em entrevista, nadadora garantiu que processará seus agressores, criticou o preconceito contra a medalhista Rafaela Silva e deixou claro que não vai parar de se posicionar. “Quero um país para todos”. Confira seu desabafo 

    Por Redação*

    joannam

    A nadadora Joanna Maranhão concedeu, no início da tarde desta terça-feira (9), uma entrevista que acabou se transformando em um depoimento representativo de uma atleta brasileira mulher contra a cultura do ódio e do machismo no Brasil. Após ser eliminada da fase classificatória dos 200 metros borboleta dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, Maranhão revelou os ataques preconceituosos e machistas que vem recebendo através das redes sociais.

    “Ontem à noite foi o dia mais difícil para mim. Tentei ficar fora de rede social, mas fui no Facebook e vi uma enxurrada de críticas, ataques. Alguns dizem que eu merecia ser enxutada, que minha história é uma grande mentira. Eu tentei segurar a onda, mas agora eu desabafei. E muito duro receber”, desabafou.

    Conhecida pelo seu desempeno nas piscinas, Joanna já foi alvo de inúmeras críticas por se posicionar politicamente contra o conservadorismo, a redução da maioridade penal e figuras como Eduardo Cunha e Jair Bolsonaro. Na entrevista que deu há pouco, a nadadora revelou que voltou a ser xingada pelas suas posições políticas e chegou a sair em defesa do governo da presidenta afastada Dilma Rousseff quando comentou a medalha de ouro da judoca Rafaela Silva.

    “Esses perfis que nos atacam não sabem o sufoco que passa o atleta brasileiro. A Rafaela Silva, há quatro anos, não tinha nada, mas com a ajuda dos programas assistenciais, conseguiu essa medalha”, comentou.

    Outro ponto alto de sua entrevista coletiva foi quando tratou da questão do estupro, já que a atleta já havia revelado anteriormente ter sofrido abusos sexuais quando criança. De acordo com Joanna, após a eliminação ela chegou a se deparar com mensagens desejando sua morte ou ainda que fosse estuprada.

    “Desejar que eu seja estuprada é passar dos limites”, disse.

    Confira, abaixo, os principais trechos da fala da nadadora.

    “O Brasil é um país muito racista, preconceituoso, racista, homofóbico, voltado ao futebol, e os ataques que são feitos lá as pessoas pensam que não afeta. Eu sempre me posicionei politicamente, porque sinto que todo ser humano tem um papel a fazer, mas eu quero um país para todo mundo. Não quero que a Tais Araújo seja chamada de ‘macaca’, que a Rafaela Silva seja chamada de ‘decepção’, amarelona’”.

     

    “Felipe Kitadai, Charels Chibana, Sarah Menezes não entraram para perder. É muito difícil as pessoas entenderam isso. Mas passar para a linha do desrespeito é difícil. Treinei muito para ser a melhor nadadora do Brasil e não sucumbir à minha depressão, e de repente as pessoas me questionando, questionando minha história”.

     

    “Nem todo mundo entende a dificuldade que é [estar aqui nas Olimpíadas]. Mas desejar que minha mãe morra, que eu me afogue, que eu seja estuprada, que a história da minha infância seja algo que eu inventei para estar na mídia já ultrapassa. Eu falo sobre coisas que a maioria dos atletas não fala, eu aguento porrada, mas tudo tem limite. Quando tem desrespeito por eu ser mulher ou ser do Nordeste, aí eu vou tomar as medidas jurídicas”.

    http://www.revistaforum.com.br/2016/08/09/eliminada-e-xingada-joanna-maranhao-desabafa-brasil-e-racista-machista-e-homofobico/

  4. Parabéns Rafaela

    Bela coroação por tanta dedicação. Louvor também para nossas forças armadas que acolhem acolhem nossos atletas de alto nível.

  5. Brasileira que me fez ganhar

    Brasileira que me fez ganhar o dia…

    Sua história de vida ENGRANDECE O SER HUMANO!

    É uma história semelhante a de milhões de Brasileiros e a sua se torna ímpar pela FORÇA DE VONTADE E DETERMINAÇÃO de alcançar tal feito…

    Tenha mais força, pois este feito abre portas e NÃO PERCA ESSA HISTÓRIA LINDA QUE É SUA e que certamente emocionou muita gente…

  6. Rafaela Silva

    Nassif, 

    Imaginar que uma pessoa que cresceu em Cidade de Deus, RJ, possa chegar a participar de uma Olimpíada já é um completo delírio, e se esta pessoa cravar no peito uma medalha de ouro, é tão provável quanto um leão ser engolido por uma formiga – Aqueles que conhecem in loco a rotina de Cidade de Deus certamente compreendem o que eu digo.

    Este feito impressionante da extremamente competente Rafaela Silva serve para mostrar, de modo inequívoco, que o brasilsil só não faz diversos atletas olímpicos porque os dirigentes esportivos não conseguem enxergar um palmo adiante do nariz.

    A iniciativa privada já mandou atletas de ponta às Olimpíadas por mais de uma vez, o caso da Universidade Gama Filho, que montou uma forte equipe de atletismo, tendo sido Robson Caetano o maior destaque; o extinto Bingo Arpoador montou uma estrutura que, em dois tempos, permitiu a ida de alguns atletas para os Jogos,e outros casos devem ter ocorrido, e o Estado, e os clubes ? 

    Rafaela começou pelo projeto idealizado pelo ótimo Flávio Canto, campeão dentro e fora das quadras que, com seus mais de tres neurônios, iniciou pela Rocinha o seu Instituo Reação, isto há mais de dez anos. Dali o projeto ganhou asas e já se estabeleceu em outras localidades, todas elas com população humilde. Por lá, a molecada luta judô e, principalmente, se torna cidadão, pois tem que cumprir um rol de exigências para poder frequentar as aulas do Reação.

    Se o Reação de FCanto, que já pode ter tido uns 2 ou 3 mil alunos desde o seu início consegue um ouro olímpico, quantas rafaelas existiriam caso existisse Governo de Estado e dirigentes capazes de somar dois mais dois ? Só nas escolas municipais do RJ são mais de 400 mil crianças, logo, quantos atletas de ponta poderiam sair daquele universo ?

    Nestes Jogos foi feito investimento $$$, mas 90% dele foi direcionado para quem já está no baile, ou seja, jogaram com os pés a melhor oportunidade que o esporte brasileiro teve em sua história, pois Olimpíada é uma só. 

    Enquanto isto, numa ilhota chamada Cuba, há anos chove atletas de ponta em vários esportes olímpicos. Tem alguém bastante ignorante nesta história, brsilsil ou Cuba. 

    E os jornalistasm, talvez todos eles, a ressalter os resultado obtidos no Pan, poderiam ser avisados que ganhador de ouro em Pan pode, perfeitamente, não se classificar para uma final dos Jogos. O ufanismo lé com cré é inteiramente ridículo.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador