Michel Aires
Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.
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Nietzsche e Foucault: como o homem se tornou civilizado, por Michel Aires de Souza Dias     

A originalidade da tese de Foucault foi mostrar que dessas novas práticas judiciárias e penais, surgiu um novo tipo de sociedade

Nietzsche e Foucault: como o homem se tornou civilizado

por Michel Aires de Souza Dias     

No livro Genealogia da moral, Nietzsche procurou compreender como o homem se tornou civilizado. Como os impulsos animais se transformaram em impulsos humanos? Como surgiu uma memória dos deveres, do senso de responsabilidade e de justiça no ser humano? “Esta é a longa história da origem da responsabilidade. A tarefa de criar um animal capaz de fazer promessas” (NIETZSCHE, 2005, p. 59). O que Nietzsche descobriu foi que o homem não se tornou bom e sociável pelo progresso do pensamento, pelo avanço da cultura ou da educação, mas por meios terríveis e cruéis. Foi pelos rituais mais cruéis de todos os cultos religiosos e pelas leis penais que o homem aprendeu a se tornar bom e sociável: “Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória” (NIETZSCHE, 2005, p. 61).  Foi por um imenso trabalho sobre si mesmo que o homem se tornou responsável e capaz de cumprir promessas. Para que ele se tornasse um ser moral e respeitável foi preciso muitas mutilações, castrações, sofrimentos e sacrifícios. Foi com a ajuda da moralidade dos costumes e com a ajuda das coerções sociais que ele se tornou uniforme, constante e confiável: “Quanto pior ‘de memória’ a humanidade, tanto mais terrível o aspecto de seus costumes; em especial a dureza das leis penais nos dá uma medida do esforço que custou vencer o esquecimento e manter presentes, nesses escravos momentâneos do afeto e da cobiça, algumas elementares exigências do convívio social” (NIETZSCHE, 2005, p. 62).

Em sua obra Nietzsche se opõe à ideia de origem do sujeito e passa a compreender este através de uma genealogia, que o concebe emergindo através de relações de poder, através de um turbilhão de forças que o atinge. Não existe uma entidade metafísica, o ser humano não é algo pronto e acabado, não possui uma natureza fixa. O sujeito se constitui no terreno dos acontecimentos históricos, das contradições, das relações de força e poder. O conceito de genealogia concebe o sujeito enquanto um ser no mundo, onde o corpo se torna visível e um efeito dos embates de força.

A tese nitzscheana procura mostrar que as faculdades superiores como a razão e a faculdade de julgar surgem a partir das relações de intercâmbio material entre os homens, ou seja, surgem por relações de poder entre credor e devedor. Essa tese foi mostrada na segunda dissertação do seu livro “Genealogia da Moral”. Na avaliação do filósofo, a relação entre credor e devedor tem um caráter civilizador. Foi por meio dessa experiência que se estabeleceu a consciência e os valores morais na espécie humana. O indivíduo que não pagasse uma divida ou não cumprisse um contrato poderia sofrer uma experiência cruel nas mãos do seu credor. Aquele que não pagasse uma divida poderia perder uma parte do seu corpo; poderia ser fervido em óleo quente; poderia ser dilacerado por cavalos; ou poderia perder sua própria esposa. Existiam inimagináveis castigos para se punir um devedor ou um criminoso. Nietzsche nos dá alguns exemplos desse sistema de crueldades: “Pense-se nos velhos castigos alemães, como a apedrejamento (-a lenda já fazia cair à pedra sobre a cabeça do culpado) a roda (a mais característica invenção, a especialidade do gênio alemão no reino dos castigos!), o empalamento, o dilaceramento ou pisoteamento por cavalos (o ‘esquaterjamento’), a fervura do criminoso em óleo ou vinho (ainda nos séculos quatorze e quinze), o popular esfolamento (‘corte de tiras’), a excisão da carne do peito; e também a prática de cobrir o malfeitor de mel e deixá-lo às moscas, sob o sol ardente. Com a ajuda de tais imagens e procedimentos, termina-se por reter na memória cinco ou seis ‘não-quero’, com as quais se fez uma promessa, a fim de viver entre os benefícios da sociedade – e realmente! com a ajuda dessa espécie de memória chegou-se finalmente a ‘razão’!” (NIETZSCHE, 2005,  p. 63).

Para que o homem adquirisse consciência foi preciso muitas mutilações, castrações e sacrifícios. Foi por meio de castigos cruéis que surgiu a faculdade de julgar, discernir e comparar. A razão tornou-se relação calculada entre meios e fim; tornou-se cálculo, operação e procedimento eficaz. O homem aprendeu “a distinguir o acontecimento casual do necessário, a pensar de maneira casual, a ver e antecipar a coisa distante como sendo presente, a estabelecer com segurança o fim e os meios para o fim, a calcular, contar, confiar – para isto, quanto não precisou antes se tornar ele próprio confiável, constante, necessário…” (NIETZSCHE, 2005,  p. 59).

A relação entre credor e devedor desenvolveu o senso moral no ser humano, levando-o a distinguir entre o certo e o errado, entre o útil e o prejudicial, entre o bem e o mal. Foi a partir das relações comerciais entre os homens que a memória foi treinada para a recordação dos deveres, das obrigações, dos contratos e dos compromissos. O não cumprimento dos deveres criou a memória da má consciência, da culpa e do pecado. Na avaliação de Nietzsche (2005), o conceito moral de culpa teve origem no
conceito concreto de “dívida”. Ele compreendeu a origem da justiça e da moralidade
dos costumes nas relações contratuais entre credor e devedor. A originalidade do pensador alemão foi mostrar que culpa não surge ligada à autonomia da vontade ou ao pecado religioso. Ela surge das relações de comércio e troca de bens e serviços. Ela surge da dívida. Através do medo e do terror das penalidades se fomentou a culpa na espécie humana. O não pagamento da dívida produz o castigo e a consciência do castigo produz a culpa. O indivíduo se sente culpado. Ele sabe que sua falta pode lhe causar o prejuízo de uma parte de seu corpo ou a perda de sua mulher. Foi dessa forma que surgiu o homem moral, responsável, capaz de cumprir promessas.

Foi seguindo os rastros de Nietzsche que Foucault desconstruiu a ideia de um sujeito constituinte, entendido como um eu lógico, fixo, acabado e fechado em si mesmo. Foi a partir de Nietzsche que ele desenvolveu uma genealogia do sujeito: “É preciso se livrar do sujeito constituinte, livrar-se do próprio sujeito, isto é, chegar a uma análise que possa dar conta da constituição do sujeito na trama histórica” (FOUCAULT, 1989a, p. 7).  Em suas obras, Foucault procurou mostrar historicamente a constituição de um sujeito que não é dado definitivamente, mas de um sujeito que se constitui no interior da história, e que a cada instante é fundado e refundado pela história: “Coloca-se deste modo, o conceito de sujeito em Foucault também como resultado de práticas históricas” (ALVAREZ, 2015, p. 23).

Na história da civilização, a punição sempre representou o meio privilegiado de vingança social, assim como um instrumento de dominação e controle social dos indivíduos. São os castigos e os suplícios que estão na origem dos nossos sistemas penais. Foi por meios cruéis e terríveis que a humanidade procurou incutir o medo para que as pessoas respeitem a ordem e as leis. No processo civilizatório, o corpo sempre foi punido: os castigos, a tortura e o encarceramento sempre tiveram um caráter pedagógico. O criminoso “era torturado até a morte, para incutir na massa da população o respeito pela ordem e pela lei, porque o exemplo da severidade e da crueldade educa os severos e cruéis para o amor” (ADORNO; HORKEIMER, 1985, p. 186).

Em toda alta idade média não existia um sistema de punição estatal. O crime era visto como uma ação de guerra, por conflitos privados. A vingança pessoal era comum em casos de conflitos ou crimes. Em razão disso, a grande parte dos litígios era resolvido pela indenização (penance) ou fiança. A pena pecuniária constituía um direito que regulava as ações entre iguais em status e bens. O direito criminal visava preservar a hierarquia social, determinado por um sistema de dependências sociais. Se por alguma razão alguém cometia um crime ou uma ofensa contra a moral ou a religião, haveria uma reunião de homens livres para proceder ao julgamento.  Essa reunião deliberava sobre o pagamento ou a expiação da culpa, de modo que a vingança das partes em litígio não evoluísse para a vingança pessoal. Contudo, como a maioria da classe subalterna era incapaz de pagar fianças em moeda, levou à substituição por castigos corporais, pelo suplício. Desse modo, o sistema penal tornou-se, progressivamente restrito apenas a uma parcela da população (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004).

Na sua obra seminal “Vigiar e Punir”, o filósofo Michel Foucault buscou evidenciar que a evolução da história do direito penal teve como propósito principal estabelecer um controle mais acentuado sobre os estratos sociais menos favorecidos e indesejados. A partir do século XVI, com o surgimento das monarquias absolutas, as penalidades e tormentos públicos tinham como meta instigar o terror e o temor através da imposição de punições rigorosas. Nas cerimônias de castigo, a intenção era instruir a sociedade por meio de exemplos, não apenas fomentando a consciência de que até mesmo a menor infração acarretaria em sérias punições, mas também provocando um efeito aterrorizador ao exibir o poder triunfante sobre os transgressores: “Procurava-se dar o exemplo não só suscitando a consciência de que a menor infração corria sério risco de punição; mas provocando um efeito de terror pelo espetáculo do poder tripudiando sobre o culpado” (FOUCAULT, 2014, pp. 58).

Para Foucault (2014), o suplício era uma parte integrante de um ritual que atendia a duas demandas fundamentais. Em primeiro lugar, deveria deixar uma marca na vítima por meio da cicatriz que infligia ao criminoso. Por outro lado, sua função era ostentar e difamar o criminoso aos olhos da sociedade, mesmo que este já tivesse pago por seus atos. A ideia era que, mesmo após cumprir a pena, o criminoso não deveria ser reintegrado à sociedade, uma vez que o suplício tinha a responsabilidade de deixar sinais indeléveis no condenado. O indivíduo seria permanentemente rotulado e classificado como criminoso. Como destaca o pensador francês (2014, p. 37): “A memória dos homens, em todo caso, guardará a lembrança da exposição, da roda, da tortura ou do sofrimento devidamente constatados”. A segunda demanda relaciona-se à natureza espetacular do suplício do ponto de vista da justiça, onde este deveria ser um evento visível a todos. Todos deveriam testemunhar o triunfo da lei, que se manifestava em toda a sua magnitude: “O próprio excesso das violências cometidas é uma das peças de sua glória” (FOUCAULT, 2014, p. 37).

As mudanças institucionais no regime político, no final do século XVIII, fez aparecer uma nova mecânica do poder. O poder deixou de ser uma força centralizada nas mãos do Estado, não pertence mais ao soberano, mas agora se dissemina por todo o corpo social, de forma descentralizada.  Como avalia o próprio Foucault (1989b, p. 131): “Mas quando penso na mecânica do poder, penso em sua forma capilar de existir, no ponto em que o poder encontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos, vem a se inserir em seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida quotidiana” (FOUCAULT, 1989b, p. 131).

A punição desde o advento do mundo moderno sempre esteve associada a um maior controle sobre o corpo, mas no final do século XVIII, ela vai desaparecendo e deixa de ser um espetáculo. A partir disso é a alma do indivíduo que passa a ser objeto de controle e dominação. Foi analisando as principais práticas jurídicas, judiciárias e penais na história da civilização, que Foucault (1989b) descobriu no século XIX, um certo saber do homem, da individualidade, do indivíduo normal e anormal, saber este que aparece a partir de certas práticas sociais de controle e vigilância. É a prisão que surge e se torna o instrumento moderno de penalidades, parecendo cada vez mais com as escolas, os hospitais, as fábricas e os quartéis. Todas essas instituições também se parecem com as prisões. A hipótese do pensador francês é a de que “a prisão esteve desde sua origem, ligada a um projeto de transformação dos indivíduos” (FOUCAULT, 1989b, p. 131).

Como argumenta Foucault (2002), a penalidade não visa mais a defesa da sociedade, mas a reforma psicológica e moral dos homens. A instituição penal surge de modo muito diferente em relação às outras, que a antecedem. Ela não está mais nas mãos de um poder autônomo. A vigilância não é mais exercida por um poder jurídico central. Ao lado da justiça surge uma pluralidade de outros micropoderes que procuram vigiar e corrigir os indivíduos. A polícia para vigiar; as instituições psicológicas, psiquiátricas, criminológicas, médicas, pedagógicas para corrigir. Por toda a sociedade aparecem instituições como a escola, o asilo, o hospital e a polícia que buscam corrigir e disciplinar os indivíduos ao longo de sua existência. Tal como a prisão, a finalidade dessas instituições é transformar a vida dos homens em força produtiva.

A originalidade da tese de Foucault foi mostrar que dessas novas práticas judiciárias e penais surgiu um novo tipo de sociedade, que ele denominou se sociedade disciplinar, em oposição às sociedades penais anteriores. Desse modo, apareceu uma pluralidade de micropoderes que atuam como uma rede de instituições pedagógicas, médicas, penais ou industriais, que se encarregam de toda dimensão temporal da vida dos indivíduos: “É preciso que o tempo dos homens seja oferecido ao aparelho de produção; que o aparelho de produção possa utilizar o tempo de vida, o tempo de existência dos homens” (FOUCAULT, 2002, p. 119). Torna-se necessário que o corpo seja disciplinado, adestrado, subjulgado, ou seja, “deve ser formado, reformado, corrigido, e que deve adquirir aptidões, receber um número de qualidades, qualificar como um corpo capaz de trabalhar” (FOUCAULT, 2002, p. 119). Outra característica importante, é que essas instituições devem produzir certos conhecimentos, deve extrair dos corpos subjulgados certo saber. É uma saber do trabalho, da produtividade, das práticas, das aprendizagens, das técnicas, das inovações, das invenções. É também um saber da observação dos próprios indivíduos, de sua classificação, de seu registro, da análise do seu comportamento. Foucault chama esse último  de saber clínico, uma vez que são produzidos pela psiquiatria, psicologia, sociologia, criminologia, etc. Do ponto de vista político e econômico, essas instituições desenvolvem mecanismos para que o corpo e a mente sejam dóceis e úteis para a produtividade. Assim, surge uma das teses fundamentais da genealogia foucaultiana: “O poder é produtor de individualidade. O indivíduo é uma produção do poder e do saber”.

Com Nietzsche e Foucault podemos entender que o indivíduo não é uma entidade metafísica, com uma natureza fixa e acabada, mas que se desenvolve por relações de poder no interior das práticas sociais. Assim como uma criança se tornam dócil e boa por meio dos castigos, o homem como animal de rapina aprende a ser bom e civilizado por um sistema de crueldades que perpassa toda história da civilização. Como ironicamente conclui Nietzsche: “Ah, a razão, a seriedade, o domínio sobre os afetos, toda essa coisa sombria que se chama reflexão, todos esses privilégios e adereços do homem: como foi alto o seu preço! Quanto sangue e quanto horror há no fundo de todas as ‘coisas boas’!…” (NIETZSCHE, 2005, p. 63).

Referências

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

ALVAREZ, Marcos César. Michel Foucault e a sociologia: aproximações e tensões. Estud. sociol. Araraquara v.20 n.38 p.15-33 jan.-jun. 2015.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Trad. Raquel Ramalhete, 42. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2002

FOUCAULT, Michel. Verdade e poder. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições. Graal, 1989a.

FOUCAULT, Michel. Sobre a prisão. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições. Graal, 1989b.

NIETZSCHE, F. W. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César Souza. São Paulo, Brasiliense, 2005.

RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004.

Michel Aires de Souza Dias – Doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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Michel Aires

Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.

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