Os 1.001 obituários de Henry Kissinger, por Ana Fonseca e Dalson Figueiredo

O propósito deste artigo é explorar um aspecto muitas vezes desconhecido: o impacto de Henry Kissinger por meio de indicadores bibliométricos.

Os 1.001 obituários de Henry Kissinger

por Ana Fonseca e Dalson Figueiredo

Uma das mais destacadas coletâneas de contos tradicionais do Oriente Médio, “Mil e Uma Noites” tece sua trama central em torno de Sherazade. A protagonista, diante da iminência de ser executada por seu esposo, o rei Xariar, engaja-se na arte da contação de histórias extraordinárias, cativando o monarca de maneira irresistível por dias a fio. Henry Kissinger, nascido em 1923, encerrou sua trajetória vital no centenário de sua existência, deixando um legado profundamente enraizado na política internacional. A amplitude de sua influência é vasta e mereceria uma análise contínua, com milhares de relatos. Destacam-se, por exemplo, sua contribuição para a retirada das tropas estadunidenses no Vietnã, reconhecida com o Prêmio Nobel da Paz em 1973, o apoio a golpes militares na América Latina e a formulação da política de distensão entre os Estados Unidos e a União Soviética durante a Guerra Fria. Seus feitos abrangem também a notável reaproximação diplomática com a China, seu papel consultivo no Tratado de Paz de Camp David em 1978 e sua liderança na política norte-americana durante o governo de Richard Nixon. Similarmente à Sherazade, é possível entreter leitores e leitoras com narrativas variadas, moldando a percepção sobre Kissinger de “Criminoso de Guerra” a “Genocida” e culminando em “estrategista extraordinário” e “diplomata renomado”.

O propósito deste artigo é explorar um aspecto muitas vezes desconhecido: o impacto de Henry Kissinger por meio de indicadores bibliométricos. Inicialmente, recorreremos ao N-Gram, uma plataforma do Google que cataloga menções semânticas na mais extensa amostra de livros já digitalizada. A influência de Kissinger na literatura tornou-se notável a partir da década de 1970, quando assumiu o cargo de chefe do Conselho de Segurança Nacional durante o governo Nixon. No entanto, é intrigante observar que foi nas últimas duas décadas que sua presença alcançou um destaque ainda maior, evidenciado por um expressivo aumento na frequência de sua aparição na literatura. O Gráfico 1 ilustra a prevalência de “Henry Kissinger” em livros publicados entre 1950 e 2019.

Podemos observar um cenário similar ao analisar a quantidade de publicações que fazem menção a Kissinger em seus títulos. Notamos um aumento significativo dessas referências a partir dos anos 1970, seguido por um declínio relativo até o final do século. A partir de 2010, há um ressurgimento da presença de Kissinger na literatura, como é perceptível através do Gráfico 2.

Outro ponto interessante diz respeito às palavras mais frequentemente empregadas nos títulos de trabalhos sobre Kissinger. No top 10, a liderança é ocupada por “foreign“, presente em 120 títulos, seguida por “american“, com 116 menções; “policy“, aparecendo em 112 títulos; “diplomacy“, em 70; “world“, em 66; “new“, em 51; “York“, em 46; “war“, em 45; e, por fim, “review“, em 39 títulos. O legado de Kissinger ecoa até os dias atuais, e as suas publicações continuam contribuindo para a compreensão da política e das relações internacionais. A Figura

3 ilustra a nuvem de palavras associadas à produção científica sobre um dos mais conhecidos secretários de estado dos Estados Unidos.

Tanto em suas obras quanto em sua atuação política, é evidente o foco de Kissinger nas questões ligadas ao poder e à segurança dos Estados, o que o torna um realista de carteirinha, por assim dizer. O realismo clássico surgiu entre as guerras do século XX como uma reação ao pensamento liberal. Inspirada em pensadores como Tucídides, Maquiavel e Hobbes, essa teoria destaca que os Estados, como principais atores nas relações internacionais, priorizam sua própria sobrevivência. Em um sistema internacional sem um Leviatã, os Estados buscam ampliar sua influência para garantir sua existência. Segundo essa perspectiva, a guerra é inevitável na busca pela sobrevivência dos Estados.

No final dos anos 1970, um novo pensamento começou a ganhar espaço nas relações internacionais. Foi Kenneth Waltz quem introduziu o neorrealismo por meio de sua obra “Theory of International Politics” (1979). Inspirado no realismo clássico, esse conceito coloca a segurança e o poder como os elementos cruciais no palco global. Waltz dizia que a estrutura anárquica do sistema internacional constrange os Estados e os leva a buscar poder como um mecanismo para assegurar sua própria existência.

Na teoria neorrealista das relações internacionais, há duas perspectivas fundamentais: a defensiva, proposta por Waltz, e a visão ofensiva, defendida por John Mearsheimer. Enquanto o neorrealismo ofensivo argumenta que a hegemonia de um Estado traria estabilidade ao

cenário global, o enfoque de Kissinger recai sobre o neorrealismo defensivo. Esse último destaca que a busca pela supremacia de um Estado não assegura a estabilidade do sistema. Segundo essa abordagem, a estabilidade é melhor preservada pelo mecanismo de equilíbrio de poder, a balança de poder, que visa manter o status quo. Isso implica que, quando um Estado começa a ameaçar outros ao ampliar seu poder, os demais Estados procuram formas de neutralizar esse crescimento para evitar desequilíbrios.

Nas suas análises, Kissinger não só reconhecia a importância central dos Estados no contexto global, mas também questionava a busca pela hegemonia dos Estados Unidos no sistema internacional. Ele entendia que, em um ambiente competitivo entre nações, os conflitos eram quase inevitáveis. Porém, enfatizava a importância de uma balança de poder para manter a estabilidade existente. Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos buscaram equilibrar a influência da União Soviética, seguindo a ideia da balança de poder. Isso se manifestou na corrida armamentista nuclear entre os dois blocos. Kissinger também defendeu a importância da negociação entre Estados, mesmo em momentos de conflito. Como um proponente da diplomacia, ele enfatizou o papel vital das negociações para fomentar relações estatais. Porém, ressaltou que, em circunstâncias críticas, os Estados estariam propensos a agir conforme seus próprios interesses, inclusive por meio da guerra.

Embora tivesse posições polêmicas, Kissinger entendia que, na política, como Maquiavel afirmava, a moral, muitas vezes, ficava em segundo plano. Para ele, a proteção dos interesses nacionais é primordial, o que faz com que a ética se torne um elemento figurativo diante das demandas do jogo político. Sua trajetória política serve como prova desse entendimento, destacando sua abordagem pragmática em relação aos dilemas éticos.

Em conclusão, a análise bibliométrica revela a persistente relevância de Henry Kissinger na literatura ao longo do tempo, destacando sua influência multifacetada na política internacional. O aumento notável de referências a partir dos anos 2000 indica um renovado interesse em seu legado e no paradigma realista das relações internacionais. Os dados apresentados, por meio de gráficos e nuvem de palavras, proporcionam uma visão ampla do impacto duradouro de Kissinger, cujas contribuições para a retirada das tropas estadunidenses no Vietnã, a distensão na Guerra Fria e as relações diplomáticas moldaram o cenário global. É evidente que a sua presença continua a ecoar nos debates contemporâneos, solidificando-o como uma figura incontornável no campo das relações internacionais e, um sujeito fascinante para futuras pesquisas.

Ana Fonseca (PPGCP/UFPE) – [email protected]

Dalson Figueiredo (PPGCP/UFPE) – [email protected]

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