Panelaços sem carestia, por Miguel de Tormes

 

Artigo do Brasil Debate

Por Miguel de Tormes

A política adora carimbos. Facilita a troca de acusações entre adversários. Elite branca, pobre emergente, petralha, tucanalha golpista, direita truculenta, esquerda populista, petrolão, trensalão, valerioduto tucano, mensalão e seguem os carimbos. Não creio que tenha sentido negar o mal-estar na sociedade brasileira que gera tanta adjetivação, ele é denso como o ar de Macondo, flutua no ar como os peixes do Caribe de Garcia Marques.

Uma eleição polarizada como a última revela os humores desse ambiente. Mas não é nesses momentos que a democracia testa as convicções militantes em seus limites? Não é justamente quando há equilíbrio relativo entre os que apostam em um projeto político e entre os que o repelem que se conhece um democrata?

Reduzir o debate aos carimbos e frases suculentas, coisa que não atribuo só aos discursos de políticos, mas também ao nível do ruído vazio de substância, mas pleno de silêncios quanto aos interesses não expressados.

O que incomoda de fato esse segmento insatisfeito e que se mostrou relevante nas eleições? A corrupção? Não o creio, pois mesmo os espíritos mais sectários ou crédulos já veem que ela está dispersa no sistema político e vem de longa data, muito longa data e está finalmente exposta e em investigação. A falta de oportunidade na política? Mas há governos nas mãos dos mesmos partidos da oposição há muitos lustros em vários estados do País.

Falta de empregos? Mas eles foram criados aos milhões na última década e são formais. Falta de renda? Mas ela subiu em termos reais. Falta de lucros? Mas as empresas não sabem o que fazer com os seus e os metem em papéis financeiros. Falta de lazer da classe média? Mas nunca viajaram tanto pelo mundo. Falta de água? Mas essa é abastecida por estados e prefeituras e não pelo governo federal. Falta de luz? Mas pouco há e é por falta de água. Déficit público maior, déficit externo? Isso não mobiliza panelas. Inflação? Mas os paneleiros não as batem por carestia.

Há um mal-estar de quem quer impor seus limites ao lado que o governo federal tomou na luta pela superação da pobreza e da desigualdade. Tanto que um articulista, cristão novo na direita, pediu à Presidente que governe para todos ou renuncie. Outros são contra as políticas sociais por doutrina, acham que isso desestimula o espírito empreendedor e a disciplina laboral. Muitos por ignorância e acham que é pobre quem não trabalha, quando esse rasga a pele de tanto trabalhar. Os pobres, em todo lugar, trabalham e poucos ganham o suficiente para comer. Por isso os bolsa-família e minha-casa-minha-vidas e tantos mais.

Mas há os que se sentem diminuídos porque o pobre melhorou de vida. Os que acham uma ofensa gente diferenciada em seus bairros e shoppings, como eles chamam os recém saídos da pobreza. É como a cena de Mississipi burning, em que o agente do FBI conta que seu pai branco e pobre matou a mula do vizinho negro. Sentiu-se fracassado e matou por ódio. Há os que matavam os próprios negros. Ódio é coisa difícil de se criar, mas uma vez no lugar, diz a história que ele só gera uma coisa. Mais ódio. Pois que baixem o tom odiento, já que a história não tem sempre Gandhis à mão.

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Redação

1 Comentário

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  1. Quem é que sente o mal-estar,

    Quem é que sente o mal-estar, e por quê?

    Aqui a resposta:

    “as empresas não sabem o que fazer com os seus [lucros] e os metem em papéis financeiros”

    Quem se sente mal, hoje, é o capital. É o capital que está sobreacumulado, que não encontra investimentos produtivos em perspectiva, que se agita em busca de oportunidades de lucro fácil.

    E para que o capital volte a encontrar amplas oportunidades de desenvolvimento, é preciso destruir o que existe, como no poema de Drummond:

    O progresso não recua.

    Já transformou esta rua
    em buraco.

    E o progresso continua.
    Vai abrir neste buraco
    outra rua.

    Afinal, da nova rua,
    o progresso vai compor
    Outro buraco.

    Daí o ódio, que não é simplesmente ódio, mas uma vontade concreta de destruição. O capital, não tendo braços nem pernas, faz seus os braços e pernas dos homens e mulheres comuns, e os arrasta numa luta insana pela destruição, combinando-se com as pulsões de morte presentes no id de cada um, e potencializando-as.

    Por isso o ódio a quem constrói ruas: para construir sempre mais e mais ruas, é preciso transformá-las em buracos.

    Domingo se reúne o pessoal que quer fazer desta rua um buraco.

    Assim se choca o ovo da serpente.

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