“Perseguição a cristãos” é o tema mais recorrente em desinformação para eleitores religiosos na campanha eleitoral 2022, por Magali Cunha

Manipula-se, neste caso, a noção de combate a inimigos para alimentar disputas no cenário religioso e político.

Agência Brasil

do Observatório das Eleições

Perseguição a cristãos” é o tema mais recorrente em desinformação para eleitores religiosos na campanha eleitoral 2022

por Magali Cunha

Desde as eleições de 2018, chama atenção que campanhas eleitorais alinhadas ao ultraconservadorismo busquem convencer eleitores cristãos recorrendo à desinformação, na forma de conteúdo falso e enganoso ou moralista ou que dissemina pânico. O Coletivo Bereia, que realiza checagem de conteúdo em ambientes digitais religiosos, verificou os principais temas disseminados entre 2021 e 2022 em busca do eleitorado cristão.

Bereia, única iniciativa de fact-checking especializada em religiões, monitora sites gospel e mídias sociais de personagens com identidade religiosa considerados influenciadores digitais. Recebe também indicação de postagens suspeitas pelo público por meio de seus canais de comunicação, incluindo um número de WhatsApp exclusivo para receber sugestões. São produzidas matérias com checagens e classificação do conteúdo (verdadeiro, falso, enganoso, impreciso, inconclusivo)  de publicações que viralizam em mídias sociais ou que ganham forte repercussão nos ambientes monitorados.

Nas 100 checagens realizadas sobre eleições, o tema mais recorrente foi “perseguição a cristãos”. A totalidade das abordagens relacionadas a pautas eleitorais – que foram agrupadas em temas como covid-19; perseguição a cristãos; tópicos específicos referentes às eleições; ideologia de gênero/moral sexual; Supremo Tribunal Federal (STF); e feitos de Jair Bolsonaro – representam desinformação com conteúdo majoritariamente enganoso, seguido do que foi classificado como falso e impreciso. As incidências de classificação “verdadeiro”, que não caracteriza desinformação, estão todas no grupo dos “outros temas”. Estas são apenas 7.

Observa-se a exploração do “terrorismo verbal” em torno da perseguição a cristãos como o tema mais abordado, questão central das 26 reportagens de checagem publicadas pelo Bereia. É registrada maior incidência deste tema a partir de agosto de 2021, quando pesquisas eleitorais passaram a mostrar a força da campanha do Partido dos Trabalhadores (PT) e maior rejeição a Jair Bolsonaro. Cresceu, então, o número de publicações verificadas pelo Bereia que enfatizam a ameaça de fechamento de igrejas com a possível vitória das esquerdas, mais supostas tentativas de silenciamento de lideranças religiosas e de diretores de escola e professores cristãos opostos a pautas referentes à diversidade sexual e à pluralidade religiosa.  

A perseguição a cristãos no Brasil, sob o rótulo de “cristofobia”, é uma retórica que afeta o imaginário evangélico do cristão perseguido como prova de fidelidade ao Evangelho. Porém, o termo “cristofobia” não se aplica a um país com predominância cristã, onde há plena liberdade de prática da fé para este grupo. Manipula-se, neste caso, a noção de combate a inimigos para alimentar disputas no cenário religioso e político.

Além disso, configura-se uma estratégia de políticos e religiosos extremistas que pedem mais liberdade e usam desta expressão para garantir voz contra os direitos daqueles que consideram “inimigos da fé”. Ou seja, contra ativistas de direitos humanos, partidos de esquerda, movimentos por direitos sexuais e reprodutivos, religiosos não cristãos e, inclusive, cristãos progressistas que defendem pautas contrárias a valores tradicionais e conservadores do repertório evangélico hegemônico. Nem os da mesma família da fé são poupados. Muitos são os casos de repressão a fiéis e lideranças religiosas alinhadas a pautas progressistas e de esquerda neste 2022.

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Os cinco temas mais abordados para desinformar nestas eleições

Na campanha eleitoral, a ideia de que Lula e o PT planejam o fechamento de igrejas após uma possível vitória nas urnas ganhou muitos compartilhamentos em diferentes formatos de publicações, ficando com o primeiro lugar entre os temas. Frases como: “É preciso falar de política agora para não sermos impedidos de falar de Cristo amanhã”,  “a esquerda odeia os valores cristãos e farão leis que vão nos perseguir”, “se ganhar Lula vai fechar as igrejas” seguem alimentando estes materiais.

O segundo tema com mais abordagens desinformativas, bem próximo em número de publicações ao da “cristofobia”, é a pandemia de covid-19, com 20 matérias. Desde o início da disseminação do coronavírus, a pandemia foi alvo de desinformação questionadora das medidas de isolamento social, divulgadora de tratamentos preventivos e curativos, acusatória à China e à Organização Mundial de Saúde e opositora à campanha de vacinação.

É fato que a maior incidência se deu em 2021, em especial durante o período de atuação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da covid-19. No fim daquele ano, com os indícios de um controle da disseminação do coronavírus, o número de publicações diminuiu.  No contexto da campanha eleitoral em 2022, o tema ganha nova evidência por conta das críticas à responsabilidade do governo de Jair Bolsonaro em relação ao alto número de mortos e com as sequelas que permanecem entre quem adoeceu e sobreviveu. Apoiadores do presidente produzem conteúdo para rebater as denúncias, reacendendo abordagens desinformativas.

Supostos feitos do presidente Jair Bolsonaro são outro tema relacionado à propagação desinformação com forte expressão em espaços digitais cristãos no contexto do pleito de 2022. Foram 19 matérias a partir de checagens do Bereia em 2021 e 2022 sobre este assunto. É próprio de campanhas eleitorais em busca de reeleição ou de políticos que buscam retornar ao poder o uso da apresentação de seus feitos para convencer. Não obstante, o que torna o discurso da campanha de Bolsonaro permeado por conteúdo falso e enganoso é que ele não é um governante de realizações e de projeto de país. Pelo contrário, é extensa a lista de fracassos de governança, desde desfeitos, como a retirada de direitos e o desastre do enfrentamento da covid-19, a atuações medíocres em suas aparições públicas e na arena diplomática.

Uma forma de defesa das críticas e de amenização da imagem de péssimo governante (vide os altos índices de avaliação negativa da população em pesquisas de opinião), em especial entre apoiadores (evangélicos e católicos entre eles), é a publicação de conteúdo que apresenta feitos do seu governo. São apresentados ações positivas nas áreas da economia, de infraestrutura e de direitos de mulheres, principalmente, com manipulação imprecisa e enganosa de dados. Enfrentamento da covid é outro tema que aparece, como mencionado acima. Em 2022, Bolsonaro é também falsamente apresentado como o “Pai do Pix’ (operação eletrônica de transferência de valores popular e gratuita).

Os tópicos específicos referentes às eleições aparecem em quarto lugar na cobertura do Bereia neste período referente ao pleito 2022. Ataques a candidatos e figuras públicas (em especial relacionadas a candidaturas de esquerda, sendo o ex-presidente Lula o mais destacado), falsidades sobre ações do Tribunal Superior Eleitoral e sobre urnas eletrônicas e desqualificação e manipulação de dados sobre pesquisas de opinião e de voto estão presentes em abordagens desinformativas em 18 checagens produzidas pelo Bereia, classificadas como falsas e enganosas. Destas, apenas duas são de autoria de grupos de esquerda.

O tema gênero e moralidade sexual (“ideologia de gênero”, aborto, erotização de crianças, “defesa da família tradicional”) é o quinto colocado nas checagens do Bereia em 2021 e 2022, com 11 matérias. Eles têm um apelo permanente em ambientes religiosos, pois conteúdo que envolva “sexo” e “sexualidade” afeta o imaginário dos cristãos e provoca muitas emoções.

É fato ainda que os avanços nas políticas que garantem mais direitos às mulheres e a LGBTI+, e ampliam a participação destas populações no espaço público, causam desconforto às convicções e crenças de grupos que defendem, por meio de leituras religiosas, a submissão das mulheres e a cura dos LGBTI+. Uma moralidade ressentida.

A “ideologia de gênero” é uma invenção católica dos anos 2000, que foi abraçada por evangélicos, a partir da rejeição à categoria científica “gênero”, que questiona os papéis sociais binários estabelecidos a homens e mulheres e negam orientações sexuais diversas. Como já estava um pouco desgastado, o tema ressurgiu nas eleições de 2018 como a “ameaça do ensino de pedofilia e erotização das crianças em escolas públicas”.

Em unidade estratégica contra os avanços na justiça de gênero a mulheres e LGBTI+, católicos e evangélicos se juntaram a grupos políticos obscurantistas que criam obstáculos a estas pautas sociais e espalham o medo. A base do discurso é a defesa da família. Tais abordagens em torno da moralidade sexual, contra a justiça de gênero, foram base das campanhas eleitorais de 2018 e 2020. No pleito municipal foi acionado novamente para impor medo e controlar eleitores que tendiam a dar votos a candidatos de esquerda, em especial no segundo turno das eleições municipais (casos mais expressivos do Rio de Janeiro e de Recife).

A moralidade sexual ocupar a quinta colocação indica que este é um tema que não desaparece, mas não é o foco da desinformação nas eleições 2022, diferentemente do que ocorreu em 2018. As mazelas provocadas na vida das pessoas cristãs, em especial a maioria evangélica que é mulher, pobre, negra e de periferia, colocam uma preocupação com a “defesa da família” que está para além da moralidade sexual. A condenação do aborto e o temor de que crianças e jovens “se percam” nos meandros da sexualidade são elementos fortes que permanecem na cultura religiosa. Porém, a sobrevivência da família com alimentação, saúde, moradia digna, emprego, salário para pagar as contas do mês tem falado mais alto durante os anos Bolsonaro.

Isto pode explicar o tema da “cristofobia”, o medo da perseguição e do fechamento das igrejas, que são porto seguro para muitas pessoas diante das dificuldades da vida, estar estrategicamente alocado em primeiro lugar entre os temas desinformativos propagados nestas eleições 2022.

Para concluir, é importante reafirmar que o uso de desinformação para convencer não é novidade eleitoral. O que se faz novo no contexto da onda conservadora que se espalhou pela Europa, pelos Estados Unidos e pela América Latina nos anos 2010 é a intensificação da desinformação como estratégia política que aposta na ingenuidade religiosa de uma parcela de fiéis cristãos em disputas de poder dentro e fora de contextos eleitorais.

Magali Cunha é jornalista, doutora em Ciências da Comunicação e editora–geral do Coletivo Bereia

Esse material foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições 2022, uma iniciativa do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação. Sediado na UFMG, conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras. Para mais informações, ver: http://observatoriodaseleicoes.com.br

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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Observatório das Eleições

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