Comida estragada e falta de remédios: presos em cadeia do litoral de SP fazem carta com ‘pedido de socorro’

'Não temos força para combater essa opressão sem ajuda de um órgão competente', afirmam presos do CDP de Caraguatatuba

Superlotado, o Centro de Detenção Provisória de Caraguatatuba foi inaugurado em 2008 – Defensoria Pública

do Brasil de Fato

Comida estragada e falta de remédios: presos em cadeia do litoral de SP fazem carta com ‘pedido de socorro’

por Gabriela Moncau, de São Paulo (SP)

“Pelo amor de deus, direitos humanos, inclinem seus ouvidos a esse grito de desespero”. Com essas palavras, presos do Centro de Detenção Provisória (CDP) de Caraguatatuba, no litoral de São Paulo, escreveram uma carta coletiva na qual relatam estar sob “condições desumanas” no cárcere.  

Tendo a falta de acesso à alimentação e à saúde como denúncias centrais, a carta a que o Brasil de Fato teve acesso explica que diversas vezes os presos tentaram fazer “uma paralisação pacífica para obter um diálogo com essa diretoria”. Se referem ao diretor da unidade, Alan Carlos Scarabel de Souza, e sua equipe. Sem sucesso, os homens presos se reuniram para redigir a “reclamação, com um diálogo inteligente”.

“Não temos força para combater essa opressão sem a ajuda de um órgão competente”, atesta a carta, que pede a visita de entidades de fiscalização e defesa dos direitos humanos. Superlotada, a unidade de Caraguatatuba tem 847 vagas para 934 presos. 

“A alimentação é incompatível com nossos direitos” 

“Motivo deste descontentamento e desespero é que estamos nos deparando com uma condição de alimentação incompatível com os nossos direitos”, afirmam os presos

“Sabemos que estamos dentro do sistema [prisional], mas não é por isso que a diretoria tem o direito de fazer cortes em devidos itens”, introduz a carta. “Ratos andam por todos os cantos da cozinha, deixando rastros, urina que cai na nossa alimentação, cocô de rato” denuncia o texto. 

“Ficamos um mês recebendo leite azedo, corte na nossa salada, corte no nosso suco. Redução extrema da quantidade da nossa comida, feijão com arroz que não supre a nossa necessidade. A mistura, muitas refeições estão vindo com ovos cozidos e restos da sujeira da carne estragada. Feijão podre três ou quatro vezes por semana, arroz cru sem nenhuma condição de comer”, descrevem os detentos. “Todos os dias, isso virou rotina.”


A carta foi redigida coletivamente por pessoas presas para tentar mudar as ‘condições desumanas’ por meio de uma denúncia para além dos muros / Reprodução

O filho de Marília* é um dos presos provisórios de Caraguatatuba. Segundo ela, a cada vez que o visita, ele está mais magro. “Diminuiu muito a comida, a fome deles está demais. Teve comida que chegou com caco de vidro já”, conta.  

“Alguns presos chegaram a trabalhar na cozinha, então eles viram o ambiente né? Insalubre, com rato”, diz. “Toda vez que eu vou lá os presos me falam: ‘tia, a comida que tem é só pra gente não morrer mesmo'”, resume Marília.   

Por conta das denúncias que chegaram ao Núcleo Especializado de Situação Carcerária (Nesc) da Defensoria Pública de São Paulo, dois defensores que atuam na região foram ao CDP de Caraguatatuba fazer um atendimento com algumas pessoas presas, uma conversa com o diretor e uma visualização rápida do presídio.  

“No espaço interno do CDP, foi verificada a existência de objetos destinados a controle de ratos. Contudo, na ala destinada ao trabalho dos presos, chegaram a ver um rato entrando no espaço. Em entrevista com presos, alguns indicaram que os raios 7 e 8 seriam os que possuem infestação”, informou o Nesc ao Brasil de Fato. “A Defensoria continuará realizando atendimentos no local e solicitando as informações pertinentes”, disse o órgão. 

No último ano, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo recebeu 74 denúncias de violações referentes ao CDP de Caraguatatuba. Destas, 39 dizem respeito à alimentação. Outras 13 são sobre maus tratos e oito sobre a falta de acesso à saúde.   

Procurada, a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) afirmou que “a alimentação da unidade é preparada pelos próprios custodiados e respeito um cardápio que foi elaborado por nutricionistas, com uma comissão formada por servidores da SAP para avaliar e fiscalizar as condições de higiene e limpeza do local”.  

Ainda segundo a pasta, que é chefiada pelo coronel da Polícia Militar Marcello Streifinger, uma inspeção da vigilância sanitária em março teria atestado “as condições da cozinha da unidade”. “O CDP conta com controle de pragas, dedetizações e aplicações mensais de inseticidas e raticidas. A última ocorreu no dia 17 de outubro”, informou a SAP. 

Negligência médica 

Além da comida, a carta afirma que há “questões que envolvem saúde, negligência médica, demora para socorrer, chegando a levar vários reeducandos a óbito!”. De fato, um homem sob custódia do Estado morreu no último 25 de setembro. 

De acordo com Marília, os presos contam que o homem era soropositivo e, sem fazer o tratamento, certo dia começou a vomitar sangue. Os seus colegas de cela teriam batido nas grades pedindo socorro. Depois de um tempo, o homem teria levado até o pátio e ficado horas ali antes de ser levado ao pronto socorro. 

Já na versão da SAP, o homem morreu na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Caraguatatuba. “Ele foi incluído no CDP daquele município 13 dias antes e na ocasião declarou que tinha uma doença crônica, mas havia abandonado o tratamento há quase dois anos”, informou a pasta. “O preso passou mal e foi levado à UPA, onde faleceu horas depois de uma broncopneumonia. A direção do presídio abriu Procedimento Apuratório e registrou Boletim de Ocorrência”, anunciou a secretaria.  

Na carta denúncia, os presos alegam que a unidade não supre a demanda de remédios e que é rara a comunicação com a enfermaria. “Você pode estar com qualquer sintoma, dores, até mesmo se quebrar alguma parte do seu corpo, você fica jogado hora mais hora esperando ser atendido. A maioria das vezes você volta para o raio com o mesmo problema que saiu”.   

“A cadeia está toda embolorada, é uma coisa assim… sabe?”, suspira Marília. “Quando pedem remédio, só tem dipirona”, afirma. Seu relato coincide com o da defensora pública Camila Tourinho. 

“Nas inspeções que realizamos no estado de São Paulo, vemos que as equipes de saúde são bastante reduzidas, têm um trabalho bastante precarizado e não dão conta de atender a população prisional do tamanho que ela é”, expõe Tourinho.  

“Além de não conseguirem atendimento médico, as pessoas presas reclamam da falta de medicamentos básicos. De maneira geral, qualquer tipo de queixa é remediada com dipirona ou um anti-inflamatório, independente do sintoma que apresentem”, narra a defensora pública do Nesc. 

Ao Brasil de Fato a SAP diz que os medicamentos “são ministrados conforme determinação médica e a unidade recebe remédios de acordo com a lista do SUS. O acesso à saúde é garantido pelo setor de saúde da unidade. Os casos mais complexos são atendidos via SUS e pelo Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário do Estado de São Paulo”.  

Denúncias que se arrastam 

A última vistoria feita pelo Nesc no CDP de Caraguatatuba foi em 2021. Na época, o diretor atual da unidade já ocupava o cargo. O relatório da inspeção apontou que o valor disponibilizado para cada refeição era de R$1,75. No dia em que a visita surpresa foi feita, o almoço foi macarrão com carne crua. 


Durante inspeção realizada pelo Nesc em 2021, defensores encontraram refeição com carne crua / Defensoria Pública

“As pessoas presas relataram abuso em instaurar sindicâncias na unidade prisional. Informaram que basta solicitar um atendimento médico para enquadrarem a conduta como inoportuna e qualificarem o pedido como desrespeito”, diz o documento a que a reportagem teve acesso. 


Cartaz confirmando a aplicação de castigo coletivo afixado na entrada do raio 7, flagrado em inspeção do Nesc em 2021 / Defensoria Pública

“Também houve muita reclamação sobre a ausência de medicamentos na unidade, bem como a ausência de individualização do medicamento fornecido, isto é, entrega-se medicamento na cela para uso coletivo, não se especificando os destinatários, tampouco para quais doenças são indicados. No mais, foi observada a entrega de medicamento vencido ou próximo do vencimento”, descreve a Defensoria Pública. Entre 2018 e 2020, seis pessoas morreram dentro do CDP de Caraguatatuba. 

Ressaltando que as denúncias relativas à saúde e alimentação são históricas e constantes, Camila Tourinho lembra que em 2022 a SAP lançou uma resolução unificando o cardápio das unidades prisionais do estado de São Paulo, que tem a maior população carcerária do país, com cerca de 195 mil pessoas.  

“Nesse documento se pretendia, ao menos formalmente, unificar o cardápio prevendo uma maior variedade de alimentos e de nutrientes. Com a previsão de fornecimento de salada, de legumes, de frutas, suco”, elenca Tourinho. “O que a gente tem visto, no entanto, é que esse cardápio não é cumprido pelas unidades prisionais”, atesta.  

“São diversos os problemas que a gente visualiza com relação à alimentação, mas me parece muito claro também que há uma falta de investimento da Secretaria”, avalia Camila. “No repasse do orçamento as unidades muitas vezes ficam reféns da falta de recursos para garantir a compra dos insumos necessários”. 

No último 17 de outubro, por meio do decreto 68.025, o governador Tarcísio de Freitas cortou R$27 milhões do orçamento da SAP e destinou o recurso para a Companhia de Trens Metropolitanos (CPTM). 

*Nome alterado para a preservação da fonte. 

Edição: Thalita Pires

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