Reformas institucionais e consenso democrático, por Valter Carvalho

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Reformas institucionais e consenso democrático

por Valter Carvalho

Thomas Jeferson e Thomas Paine, esposando forma republicana e liberal de governo, travaram um debate fecundo em torno dos limites do Constitucionalismo e da democracia no final do século XVIII (Holmes, 2001). Seu interlocutor mais expressivo era Edmund Burke, para quem a fundação de constituições não era tarefa da mente abstrata, mas produto da história e do legado das gerações (Burke, 1997). De certa forma, a democracia e o governo republicano eram entendidos por eles como instrumentos de guerra contra o passado aristocrático; uma guerra que os levou a decretarem a independência de uma geração em relação a outra (Holmes, 2001). Assim, as gerações presentes deveriam ter o direito de se libertarem do passado reformando ou mudando a Constituição a cada 20 ou 30 anos; isso porque, não seria moral ou democraticamente aceitável que uma geração amarrasse às mãos das gerações futuras com uma Constituição.  

O debate colocou, pela primeiro vez, o dilema básico entre constitucionalismo e democracia. Rechaçado pelos Federalistas, que anteviram os perigos de tal proposta, as constituições se firmaram como pré-compromisso geracional (Holmes, 2001; Elster, 2009), dando um cunho conservador ao constitucionalismo. Assim, a Constituição, à maneira de Ulysses nos poemas de Homero, ata as mãos das gerações presentes, evitando assim que elas caiam no canto da Sereia, representado pela tentação para suprimir as liberdades em nome da vontade da maioria (Elster, 2009).

Dessa forma, constitucionalismo e democracia são conceitos que se contrapõem. A democracia – na visão clássica – supõe a primazia da vontade majoritária sobre as minorias (O,Donnell, 1998). O constitucionalismo, por sua vez, impõe barreiras e limitações às decisões majoritárias, tornando as constituições rígidas e resistentes ao poder reformador das maiorias, assegurando, assim, uma gama de liberdades aos indivíduos da incerteza das decisões de governo (Holmes, 2001; Elster, 2009).

No entanto, longe de ser um debate simples, as barreiras impostas ao poder das maiorias asseguram a existência da democracia no longo prazo (Holmes, 2001; Elster, 2009). O suposto é que as limitações impedem que as gerações presentes suprimam valores básicos – como as garantias fundamentais – para gerações futuras.

Empiricamente, o grau em que as constituições são democráticas depende da combinação de elementos da tradição política – como tradição democrática, liberalismo e republicanismo – em arranjos institucionais positivos que constrangem, mais ou menos, o poder do demos, conforme as particularidades de cada sociedade (O’Donnell, 1998; Lijphart, 2003).

Nos regimes democráticos atuais, incluído o Brasil, poucos temas estão fora do poder de reforma, inclusive o sistema de governo, conferido à maiorias governantes sagradas nas urnas. Os limites constitucionais impostos ao poder de reforma das maiorias, como já dito, dizem respeito às garantias fundamentais e, no nosso sistema constitucional, as chamadas cláusulas pétreas, que incluem, além das liberdade civis, a forma federativa e divisão triparte dos poderes.     

No entanto, prudência e responsabilidade, necessárias aos homens de governo, recomendam que se observe os limites impostos a um mandato governamental quanto à legitimidade para tomar decisões sensíveis e de resultados incertos. Se uma das características do governo representativo é a autonomia dos governantes frente aos governados quanto ao ato de agir segundo a própria consciência, a liberdade de expressão e opinião, também uma de suas marcas, é um incentivo ao ajustamento das decisões de governo aos anseios e opiniões dos governados (Manin, 1995).

Ao que nos parece, esse ajustamento das decisões de governo à opinião pública e aos governados, tem faltado ao atual governo federal, que não foi eleito e impõe, sem pudor, uma agenda de reformas tão radicais e de efeitos incertos à sociedade.

Dentre essas reformas, figura a do sistema de governo, cujo último “balão de ensaio”, depois do parlamentarismo, é a proposta do semipresidencialismo, repercutida positivamente entre ministros do STF – como Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso – e membros do PSDB.

Importa compreender, em linha gerais, o semipresidencialismo, suas virtudes e defeitos, e as possíveis consequências que seu transplante para contextos políticos e sociais, como nosso, pode acarretar, tendo em vista que as virtudes e defeitos de modelos normativos, sejam quais forem, precisam ser mediadas pelo contexto e social e cultura política peculiares a cada país (Zimmerling, 1991).

O regime semipresidencialismo é um sistema de governo misto que combina atributos do presidencialismo puro e parlamentarismo puro, adotado em Repúblicas como de Weimar (1919), atualmente em Portugal, França, Rússia, Ucrânia, Romênia, Egito, etc. A característica básica do sistema é a eleição direta do presidente, como no presidencialismo puro, e a manutenção de certos poderes, que vão além da condição de Chefe de Estado e funções simbólicas, como no parlamentarismo puro (Sartori, 2001). Em outros termos, o semipresidencialismo comporta compartilhamento de poder entre o presidente diretamente eleito e o parlamento, na figura do Primeiro-Ministro (Sartori, 2001; Zimmerling, 1991; Alencastro, 1993).

No semipresidencialismo, Primeiro-Ministro e presidente têm funções que coexistem e se complementam. Primeiro, o presidente nomeia o Primeiro-Ministro. Embora o parlamento possa destituir o Primeiro-Ministro, por meio do voto de desconfiança, o presidente pode dissolver o parlamento, o que significa um contrapeso à tendências precipitadas de maiorias parlamentares com intenções de veto por motivações não programáticas. O presidente tem atribuições importantes, como: gerir a política externa, chefiar as forças armadas, nomear funcionárias, vetar leis, etc. Se no parlamentarismo puro o parlamento tem poder de destituir o governo por meio do voto de desconfiança, no semipresidencialismo há esse poder também, mas o poder presidencial funciona como instrumento de indução à cooperação e estabilidade do governo, já que a dissolução do parlamento imediatamente à destituição do Primeiro-Ministro constitui em forte incentivo à cooperação – uma nova eleição lança incertezas aos parlamentares sobre o retorno ao poder.   

Umas das virtudes do semipresidencialismo é que ele, por atribuir papel de poder moderador ao presidente, evita arremessá-lo no seio do conflito-político partidário, como é exemplo do presidencialismo puro (Sartori, 2001; Mainwaring e Shugart, 1993). A solução de eventuais crises, a maneira do parlamentarismo puro, será menos dramática e sem riscos institucionais se comparado ao presidencialismo puro, cujo mandato fixo constitui um empecilho à resolução dos impasses.     

Assim, por ser um sistema com duas cabeças, o semipresidencialismo impõe à coabitação entre chefe de Estado e chefe de governo (Sartori, 2001). Há o risco de maiorias divididas, como há no presidencialismo puro (Congresso e Executivo), mas a solução das crises de forma menos traumática – algo que o impeachment no presidencialismo puro não permite – pode ser conseguida mediante a atribuição de formar e demitir governo do chefe de Estado, o presidente.

No entanto, o que é virtude em dado pais, pode ser problema em outro. Isso porque, instituições, para funcionarem a contento, não prescindem da adesão e respeito aos seus ritos por parte dos atores em competição. É importante frisar que, como dito antes, modelos normativos, uma vez instituídos, são sempre mediados pelas condições contextuais e cultura política própria de cada país (Zimmerling, 1991; Alencastro, 1993).

A crise de 1961 e a reforma casuísta do sistema de governo nos oferece exemplos preciosos de como a coabitação entre presidente eleito diretamente, com poderes relativamente fortes, e Primeiro-Ministro, é passível de redundar em conflitos e incertezas tão agudas quanto a atual. O parlamentarismo instituído em 1961, em meio à crise da renúncia de Jânio Quadros e o veto militar ao seu sucessor constitucional, João Goulart, se caracterizou pela coabitação em termos de atribuições entre chefe de Estado e Primeiro-Ministro (Figueiredo, 1993). O sistema instituído nos parece mais próximo do “tipo ideal” do semipresidencialismo que do parlamentarismo.  

No exemplo de 1961, merece destaque os poderes do chefe do Estado e do Primeiro-Ministro. Dentre as atribuições do chefe de governo (Primeiro-Ministro), destacam-se: proposição de leis, orçamento federal, intervenção federal e decretar estado de Sítio. Já o chefe de Estado (presidente), manteve poderes importantes, dentre os quais nomear ministros, dispor de cargos públicos federais e vetar projetos de leis.  

Porém, dispositivos que geram disputas e expressavam a coabitação entre os dois chefes, algo que não está descartado hoje, foram introduzidos e paralisaram o governo. Primeiro, todos os atos do presidente deveriam ser chancelados pelo Primeiro-Ministro e pelo ministro da pasta a qual o presidente tomasse decisões (Figueiredo, 1993).  Segundo, por exigências dos militares, impediu-se o presidente de exercer a prerrogativa de dissolver o Congresso em caso de perca de confiança. Ora, sem essa prerrogativa a principal virtude do modelo, que é solucionar de forma rápida e menos traumática as crises, fica comprometida.

Se em 1961 as disfuncionalidades constitucionais, que acirrou o conflito, resultaram do veto militar aos ditames do modelo normativo, no atual contexto elas podem ocorrer em função dos interesses conjunturais e da forma apressada como se quer decidir questão tão complexa. Um desenho institucional falho, e isso é possível em função da pressa, pode conter deficiências e criar sobreposições de funções propensas à disputas predatórias entre os dois chefes. Isso se tornará ainda mais agudo quando a implantação do semipresidencialismo é visto hoje como casuísmo contra os potenciais presidenciais de 2018.

Não obstante o modelo de coabitação entre presidente e parlamento no semipresidencialismo propiciar a preservação do presidente mediante suas prerrogativas de demitir o Primeiro-Ministro, solucionando de forma mais ágil e menos dramática as crises, não é precisa muito esforço imaginativo para se aventar a hipótese de que um presidente eleito diretamente, com poderes relativamente fortes, não necessariamente estará alinhado à mediana ideológica do Congresso. Assim, se o mandato fixo do presidente no presidencialismo puro é reputado como propenso à engessar e prolongar as crises (Mainwaring e Shugart, 1993), o poder de demitir o chefe de governo atribuído ao presidente no semipresencialíssimo não nos assegura de que as crises serão solucionadas, tampouco que o recurso ao casuísmos cessará. Há o sério risco, considerando nossa cultura política, de essa atribuição se transformar em um gatilho armado para apear governos não alinhados com o presidente e o consenso social em torno dele, bem ao estilo do que assistimos no caso Dilma.

Ademais, eleito de forma direta por um eleitorado nacional, o presidente continuará a despertar na nação o sentimento de mudança que sempre caracterizou nossa cultura presidencialismo (Lamounier, 1992; Alencastro, 1993).  É bem provável emergir situações em que a agenda de mudanças presidencial esteja em assimetria com a do parlamento. Nessas condições, o primeiro-Ministro será visto como resultante de tramas palacianas e interesses regionais. Ou, como se observa hoje, o parlamento se transforma no baluarte dos interesses mais conservadores e retrógados do pais contra presidentes progressistas, instalando crises que exigem dos atores mais que escolhas instituições, mas compromisso com o consenso democrático.

Mais que reformas globais das instituições, torna-se necessário à crença na democracia como institucionalização da incerteza, expressa na submissão de todos os interesses à lógica da competição, regulada pelas liberdades básicas, como expressão, organização e sufrágio inclusivo (Przeworski, 1994; Dahl, 2012). Incerteza não quer dizer, absolutamente, império do impossível e imprevisível, e sim que os atores não sabem o que vai acontecer, mas sabem o que é possível, porque está inscrito no arranjo institucional; arranjo esse que produz a estabilidade e regularidade necessárias às ações (Przeworski, 1994; Peters, 1999). Mais que reformas das instituições, que devem ser incrementais, é premente que os atores se curvem à lei de ferro da democracia: a alternância de poder, bem como respeito aos seus respectivos resultados circunstâncias que garantem a aposta democrática.     

Por fim, é preciso atentar para as condições de legitimidade do atual governo para realizar reformas que regulam o conflito. Temer chegou ao poder depois de uma trama ardilosa que levou ao impeachment a presidente legitimamente eleita.  Embora legais, aos olhos do público mais amplo e de parte dos atores políticos, as reformas soam como fraude e casuísmo; mesmo se nos abstermos de questionar a legitimidade do governo, elas não estavam na agenda da chapa Dilma-Temer, eleita em 2014.  Elas expressam os interesses conjunturais de uma elite política e empresarial que chegou ao poder por meio de processo não democrático e nele pretende se manter, às expensas da estabilidade da democracia e suas consequências socioeconômicas.

Valter Carvalho é doutor em ciência política pela PUC-SP, professor e pesquisador na Universidade Federal do Piauí e Uninassau. Autor de “Atores partidários e entrada estratégica em competição eleitoral de múltiplas arenas: a experiência brasileira”. Edufpi, 2014. Trata-se de um estudo sobre os efeitos da verticalização das coligações entre 2002 e 2006.

 

Bibliografia

Alencastro, Luiz Felipe. Cultura democrática e presidencialismo no Brasil. Novos Estudos Cebrap, 1993.

Burke, Edmund. Reflexões sobre a revolução na França. Brasília. Editora Unb, 1997.  

Peters, B. Guy. El nuevo institucionalismo. Barcelona. Editorial Gedisa, 1999.

Elster, Joe. Ulysses liberto: estudos racionalidade, pré-compromisso e restrição.   Unesp, 2004.  

Figueiredo, Argelina. Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise política de 1961. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1993.

Holmes, Stepphen. El precompromisso y la paradoja de la democracia. In. Elster. Joe y Slagstad, Rune. Constitucionalismo e Democracia. México, Ed. Fondo de Cultuta Econômica, 2001.

Lamounier, Bolívar. Brasil: rumo ao parlamentarismo? In. Valenzuela, Arturo e Lamounier, Bolívar. A opção parlamentarista. Editora Sumaré, 1992.

Lijphart, Arend. Modelos de Democracia: desempenho e padrões de governo em 36

paises. Civilização Brasileira, 2003.

Mainwaring, Scott e Shugart, Matthew. Juan Linz, presidencialismo e democracia: uma avaliação crítica. Novos Estudos Cebrap, 1993.

Manin, Bernard. As Metamorfoses do Governo Representativo”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 29, 1995.

O’Donnell, Guillermo. Accountability e novas poliarquias. Lua nova. Nº 44, 1998.  

Przeworki, Adam. Democracia e mercado. Rio Janeiro. Editora Relume Dumará, 1994.

Sartori, Giovanni. Ingeniería Constitucional Comparada: una investigación de estructuras, incentivos y resultados. México, Ed. Fondo de Cultuta Econômica, 2000.

Zimmerling, Ruth. Alemanha: parlamentarismo e fantasma de Weimar. Lua Nova. Nº 24, 1993

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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