Resoluções da ONU amparam declaração de António Guterres atacada por Israel

Renato Santana
Renato Santana é jornalista e escreve para o Jornal GGN desde maio de 2023. Tem passagem pelos portais Infoamazônia, Observatório da Mineração, Le Monde Diplomatique, Brasil de Fato, A Tribuna, além do jornal Porantim, sobre a questão indígena, entre outros. Em 2010, ganhou prêmio Vladimir Herzog por série de reportagens que investigou a atuação de grupos de extermínio em 2006, após ataques do PCC a postos policiais em São Paulo.
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Desde 1967, a ONU emite resoluções pedindo para que Israel pare de expandir suas fronteiras e reconheça os direitos do povo palestino

Secretário-geral da ONU António Guterres visita o cruzamento de Rafah, na fronteira do Egito com a Faixa de Gaza. Foto: Mohamed Elkoossy/UN Egypt

Há um conflito geopolítico enredado a este envolvendo Israel e Palestina. Os recentes ataques do governo de Israel às Nações Unidas e ao seu secretário-geral, António Guterres, não foram uma reação, senão um método. Endossados pelos Estados Unidos e União Europeia, que costumam dar de ombros às resoluções do organismo internacional para pautar intervenções, os ataques atingem a perspectiva multilateral das relações exteriores entre as nações justamente porque rechaçam o papel da ONU de mediação ponderada – o que parece só ter tido serventia para a criação do Estado de Israel. 

Na última terça-feira (24), durante a abertura da sessão do Conselho de Segurança da ONU, Guterres disse que “é importante reconhecer que os atos do Hamas não aconteceram por acaso. O povo palestino foi submetido a 56 anos de uma ocupação sufocante. Eles viram suas terras serem brutalmente tomadas e varridas pela violência. A economia sofreu, as pessoas ficaram desabrigadas e suas casas foram demolidas”. 

O secretário-geral está em acordo com a característica multilateral do organismo. Após a primeira resolução da ONU envolvendo os dois países, em 1947, com a criação do Estado de Israel, o organismo internacional passou a emitir resoluções buscando limites a Israel em suas intenções de expansão do país sobre os territórios da Palestina, reduzida drasticamente desde então, o que colocou os palestinos em condição de refugiados em sua própria terra e em diáspora. 

A Resolução 242, de 1967, foi emitida após a Guerra dos Seis Dias e pediu a retirada israelense dos territórios ocupados durante o conflito e o reconhecimento dos direitos políticos dos palestinos. A resolução também enfatizou a necessidade de uma paz justa e duradoura na região. Israel nunca a seguiu.

O que se deu a partir de então foi que Israel seguiu empurrando suas fronteiras para a Palestina e passou a sufocar o povo com força medida pelo governo de plantão: se mais ligado aos ultranacionalistas, caso do governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, o aperto é maior; mais à centro-esquerda, caso dos trabalhistas, tendo como ícone Ytzhak Rabin, que ao lado de Yasser Arafat ganhou o Prêmio Nobel da Paz pelos Acordos de Oslo, a corda afrouxa no pescoço dos palestinos. 

Tanto Israel não cumpriu a resolução que em 1973, durante a Guerra do Yom Kippur, a ONU emitiu a Resolução 338, que reiterou a importância da implementação da Resolução 242 e pediu um cessar-fogo imediato.

Poucos anos depois, em 1980, mais uma vez como consequência da negação de Israel em cumprir as resoluções anteriores, veio a Resolução 478, que condenou a Lei de Jerusalém, aprovada por Israel, que declarou Jerusalém como a capital “eterna e indivisível” de Israel. A resolução pedia que todos os países que haviam estabelecido embaixadas em Jerusalém as retirassem.

Resolução de paz

O século XXI começa com a Resolução 1397, de 2002. Esta resolução pediu o estabelecimento de um estado palestino independente, lado a lado com Israel, e expressou apoio ao Plano de Paz do Quarteto, que foi proposto pelos EUA, Rússia, União Europeia e ONU. Sem efeito, a Resolução 1860, de 2009, é mais uma delas que pedia o fim das hostilidades de Israel contra a Palestina. Esta foi emitida durante a Operação Chumbo Fundido e pediu um cessar-fogo imediato e o acesso humanitário à Faixa de Gaza. Algo muito semelhante com o que ocorre agora, em 2023, e ocorreu em 1973. 

Por fim, entre as resoluções de maior destaque, está a Resolução 2334, de 2016, e nela a ONU condenou a construção de assentamentos israelenses na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental como uma violação do direito internacional. Ela também pediu o fim de todas as atividades de assentamento israelense. Tel Aviv não só não cumpriu como este ano Netanyahu anunciou a maior expansão de assentamentos da história.

As estimativas da ONU indicam que cerca de 700 mil colonos vivem em 164 assentamentos e 116 postos avançados na Cisjordânia ocupada. Desde o início deste ano, se intensificou a resistência dos palestinos a essa expansão, um capítulo pouco falado da recente escalada do conflito no Oriente Médio. 

No último dia 20 de junho, o secretário-geral da ONU afirmou que os assentamentos são entraves para uma solução de dois estados com paz duradoura. “A expansão dos assentamentos é um importante impulsor das tensões e da violência e aprofunda as necessidades humanitárias”.

O governo israelense havia anunciado dias antes novas licitações para construir 4.500 unidades de assentamentos em assentamentos já existentes na Cisjordânia. Diante dos planos, os palestinos que vivem nos territórios ocupados reagiram.

Dados da ONU deste ano apontam que quase 6 milhões de palestinos vivem dentro e fora de 58 campos de refugiados em Gaza, Cisjordânia, Jordânia, Líbano e Síria, nestes últimos países em condições muito precárias, dada a tensa situação nacional. A esta realidade concreta António Guterres se referiu em seu discurso, com base no histórico de resoluções da ONU, conforme ele mesmo explicou após os ataques sofridos pelo governo de Tel Aviv (leia abaixo). 

Israel reage ignorando resoluções 

A fala gerou a revolta do governo israelense que por intermédio de seu representante na ONU, Gilad Erdan, exigiu a demissão de Guterres e informou que todos os vistos de representantes do organismo serão negados por Israel. Esta se tornou um nova frente da guerra travada pelo país, que ensaia para os próximos dias a entrada por terra à Faixa de Gaza, na Palestina, onde os bombardeios israelenses já mataram mais de 6 mil pessoas desde a intensificação das hostilidades em resposta ao ataque do Hamas, no dia 7.  

Israel diz agora com todas as letras que “é tempo de ensinar uma lição” à ONU e insiste na demissão do secretário-geral da organização.

“Penso que o secretário-geral tem de se demitir. Porque a partir de agora, todos os dias que ele estiver neste edifício, a não ser que peça desculpa imediatamente, não há justificação para a existência deste edifício. Este edifício foi criado para evitar atrocidades,” disse Erdan aos jornalistas na sede da ONU em Nova Iorque. 

Membros dos governos britânico e italiano vieram a público dizer que discordam dos comentários do secretário-geral da ONU sobre Israel e as alegadas violações dos direitos humanos. União Europeia e Estados Unidos não se posicionaram a respeito da fala de Guterres, mas as atitudes de ambos, integrantes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), assim como no que tange a guerra na Ucrânia, tem sido a de agir por conta própria, a partir de diretrizes conjugadas, impondo a visão unilateral do bloco à multilateral da ONU, incluindo o poder de veto no Conselho de Segurança – caso recente do veto estadunidense à proposta de cessar-fogo apresentada pelo Brasil.  

EUA questionam mortes

O presidente dos EUA, Joe Biden, admitiu nesta quarta-feira (25) que os ataques israelitas contra a Faixa de Gaza causaram a morte de pessoas “inocentes”, embora tenha questionado o número de mortos fornecido pelas autoridades da Palestina, comprovados pelos agentes da ONU que acompanham de perto o desenrolar dos fatos na Faixa de Gaza. 

Quando questionado, numa conferência de imprensa conjunta com o primeiro-ministro australiano, Anthony Albanese, se o número de mortos palestinos indica que Israel “está ignorando” o aviso de Washington para “minimizar as vítimas civis”, o presidente disse que não tem ideia “sobre a veracidade das informações sobre as vítimas fornecidas pelos palestinos”, embora tenha afirmado que “tem a certeza de que morreram pessoas inocentes”, especificando que este é o “preço de travar uma guerra”.

Neste contexto, Biden exortou Israel a “ser extremamente cuidadoso”, certificando-se de que vai atrás “das pessoas que estão espalhando esta guerra contra Israel”. Ele reiterou que “não confia” no número de mortos que “os palestinos administram”.

Dias antes, Biden declarou que só é possível pensar em um cessar-fogo após o Hamas libertar todos os reféns israelenses que ainda mantém. Além disso, os EUA têm enviado equipamento militar para Israel e um general especialista em guerra urbana para ajudar nos preparativos da ofensiva terrestre contra a Faixa de Gaza.  

De acordo com os últimos dados do Ministério da Saúde da Autoridade Palestina, os bombardeamentos israelitas contra a Faixa de Gaza desde a escalada das hostilidades com o ataque do Hamas, deixaram 6.546 mortos, incluindo 2.704 crianças, e 17.439 feridos até o momento.

Guterres se diz chocado

Nesta quarta-feira (25), o secretário-geral da ONU declarou estar “chocado com as interpretações erradas” do governo de Israel a respeito de algumas das declarações feitas por ele no Conselho de Segurança. Guterres destacou que sua fala deixava clara a condenação inequívoca dos “atos de terror horríveis e sem precedentes de 7 de outubro cometidos pelo Hamas em Israel”. 

O líder da ONU ressaltou sobre o Hamas que “nada pode justificar o assassinato, o ferimento e o sequestro deliberados de civis, ou o lançamento de mísseis contra alvos civis”.

Ele também esclareceu que “as queixas do povo palestino não podem justificar os terríveis ataques do Hamas”. O chefe das Nações Unidas disse acreditar que “foi necessário esclarecer as coisas, especialmente por respeito às vítimas e às suas famílias”.

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Renato Santana

Renato Santana é jornalista e escreve para o Jornal GGN desde maio de 2023. Tem passagem pelos portais Infoamazônia, Observatório da Mineração, Le Monde Diplomatique, Brasil de Fato, A Tribuna, além do jornal Porantim, sobre a questão indígena, entre outros. Em 2010, ganhou prêmio Vladimir Herzog por série de reportagens que investigou a atuação de grupos de extermínio em 2006, após ataques do PCC a postos policiais em São Paulo.

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  1. Gilad Erdan, embaixador de Israel na ONU, disse, em discurso na Onu, que “é impensável aprovar uma resolução para o fim do conflito sem ao menos citar o Hamas” e que “nada disso [a guerra] é contra os palestinos e, sim contra o grupo terrorista”. Ora, como Usrael já perpetrou a carnificina de 3.000 crianças, das duas, uma: Ou o massacre não é contra o Hamas, mas contra os Palestinos, ou então as cerca de três mil crianças mortas são terroristas, e não Palestinas.
    Quanto a mim, faço minhas as palavras do Poeta Castro Alves:

    “(…)
    Senhor Deus dos desgraçados!
    Dizei-me vós, Senhor Deus!
    Se é loucura… se é verdade
    Tanto horror perante os céus?!
    Ó, Mar, por que não apagas
    Co’a esponja de tuas vagas
    De teu manto este borrão?…
    Astros! Noites! Tempestades!
    Rolai das imensidades!
    Varrei os mares, Tufão!

    Quem são estes desgraçados
    Que não encontram em vós
    Mais que o rir calmo da turba
    Que excita a fúria do algoz?
    Quem são? Se a estrela se cala,
    Se a vaga à pressa resvala
    Como um cúmplice fugaz,
    Perante a noite confusa…
    Dize-o tu, severa Musa,
    Musa libérrima, audaz!…
    São os filhos do deserto,
    Onde a terra esposa a luz.
    Onde vive em campo aberto
    A tribo dos homens nus…
    São os guerreiros ousados
    Que com os tigres mosqueados
    Combatem na solidão.
    Ontem simples, fortes, bravos.
    Hoje míseros escravos,
    Sem luz, sem ar, sem razão. . .
    São mulheres desgraçadas,
    Como Agar o foi também.
    Que sedentas, alquebradas,
    De longe… bem longe vêm…
    Trazendo com tíbios passos,
    Filhos e algemas nos braços,
    N’alma — lágrimas e fel…
    Como Agar sofrendo tanto,
    Que nem o leite de pranto
    Têm que dar para Ismael…”

  2. A criminosa invasão de Gaza pelos pistoleiros de Netanyahu também tem um efeito desagradável para a direita no Brasil. Ela expõe a hipocrisia programática dos Bolsonaro e dos pastores evangélicos brasileiros que apoiam Israel. Eles dizem que os judeus têm direito à terra porque os antepassados deles viveram lá, mas nunca aplicam o mesmo raciocínio no caso dos índios brasileiros. Apesar dos antepassados dos indígenas terem colonizado o Brasil 7,5 mil antes de 1500, os bolsonazistas exigem um marco temporal posterior (que obviamente beneficiaria os palestinos, pois os judeus foram derrotados e expulsos da Judeia no século I dC).

  3. A ONU sempre esteve limitada por esse RIDÍCULO “poder de veto” dado a 5 de quase 200 países (193). Qualquer outra organização que se crie não será potencialmente melhor do que a ONU, porque em princípio ela representa TODOS os países. Que houvesse algum critério de ponderação de peso de voto como PIB, população, ou mesmo relevância (votada pelos demais membros), ainda se aceitaria, mas direito a VETO é INACEITÁVEL. É por isso que a ONU vem perdendo relevância, desmoralizada exatamente por estes mais poderosos, que acabam substituindo-na por “clubes e patotas” como a UE, OTAN, o extinto Pacto de Varsóvia, BRICS, Mercosul, Nafta, Aliança do Pacífico, OMC, Tribunais Intenacionais e outras que até poderiam existir uma vez subordinadas a um poder maior da ONU como uma instituicão verdadeiramente e democraticamente mundial. Mas cada “poderoso” adere, desadere, respeita e desrespeita na hora que convém, a História do Mundo vai se repetindo como na fábula do Lobo e do Cordeiro: que razão, bom senso e civilização que nada…o que vale é quem pode dar porrada (a rima foi sem querer).

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